sábado, julho 17, 2021

José Carlos Serras Gago


Era uma voz débil. Da cama do hospital. Quis falar com amigos, pressentindo, com certeza, que seria a última vez que o fazia. Foi há poucos dias.

Fico sempre sem saber o que dizer nestas situações e, invariavelmente, saem-me expressões tontas, pouco ajustadas ao momento. Uma vez mais, foi isso que aconteceu.

Conheci o José Carlos Serras Gago em Paris, há quase meio século. Ele vivia na Casa do Líbano, na Cidade Universitária. 

Foi-me apresentado pelo Joaquim Pais de Brito e, logo nessa noite, num jantar num "bistrot", trocámos notas sobre os muitos amigos que tínhamos, em comum, em Lisboa. E, como era natural nesse pequeno mundo em que nos tinhamos movido, das Avenidas Novas a algum Chiado, tínhamos estado em "cenas" (à época, o termo não se utilizava) comuns: "O quê?! Também estiveste naquela Assembleia Geral da Livrelco? E foste para o Canas, fugido à polícia, no enterro do António Sérgio?"

Depois, em alguns dias de turismo livresco e intelectual, andei com o José Carlos pela universidade de Vincennes, onde me levou a uma aula do Nicos Poulantzas e me foi introduzindo a outras vedetas do esquerdismo em moda. Eu, intimamente, prestes a fardar-me de verde em Mafra, sem lho dizer, invejava-lhe aquela jornada parisiense.

Depois do regresso do José Carlos a Portugal, após Abril, tentámos fazer um livro a duas mãos. O projeto morreu, e guardo a minha quota de culpa nisso, depois de três reuniões numa casa no Alto da Barra. O José Carlos passou a andar pela Sociologia, eu passei a andar por fora.

Um dia, coincidimos no MNE. Ele na OCDE, outra vez em Paris, eu por Lisboa. Encontrávamo-nos a espaços. Lembro-me de que tivemos algumas discussões, em regra pela avaliação diferente que fazíamos de algumas figuras políticas em voga. Mas navegávamos nas mesmas águas.

Isso ficou muito mais patente nos últimos anos, quando uma das mais ruidosas e animadas tertúlias almoçantes lisboetas nos reunia com alguma regularidade. O José Carlos, numa regra sempre confirmada, era o último a chegar à mesa. E trazia sempre um sorriso aberto, uma graça na ponta da língua, uma história divertida - e sempre inteligente e culta - para contar. Às vezes, não poucas, a sua cara traduzia uma saúde frágil, mas ficava a ideia de que o regresso ao grupo o animava, lhe dava um sopro de vida. Um dia, mais pálido, confessou-me: "Vim do hospital para aqui".

Nos longos meses da pandemia, suspensas as refeições do grupo, falámo-nos, de quando em quando, para saber como estávamos a aguentar a chatice coletiva. Nunca o vi esmorecer, mas, sem grandes pormenores, pressenti que as coisas se estavam a agravar, para os lados da saúde dele.

Naquela nossa última conversa, pelo telefone, a uma frase de ânimo, da minha parte, respondeu de uma forma que me deixou entrever o que aí vinha: "Não sei se vou ter força para aguentar isto". Não teve.

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