Foi num hotel de Tashkent, capital do Usebequistão. A minha passagem por ali, em 2004, como embaixador português junto da OSCE, em Viena, coincidiu com o cocktail de despedida do representante da organização no país. Havia sido convidado para a festa. O ambiente estava divertido, com muitas garrafas a abrirem-se e uma barulheira que se pressentia ir prolongar esse fim de tarde pela noite.
Eu, contudo, não estava disponível para ficar por ali muito tempo. Sentia-me bastante cansado, depois de uma longa jornada. Por aqueles dias, seguindo uma prudente regra que me tinha sido aconselhada em Viena, antes da minha partida para aquelas paragens, para evitar surpresas com as comidas locais, beberricava um pouco de vodka, algumas vezes ao dia, a começar no pequeno almoço! O meu fígado teria ainda de aguentar uns dias mais esse regime, até porque a “receita” estava a funcionar. Companheiros meus de viagem, menos crentes nas virtudes profiláticas da vodka, tinham tido já problemas. Eu evitara-os por completo. Tinha, assim, um alibi íntimo para ir experimentando vodkas, bebida de que gosto muito. Pura, gelada, sem misturas.
Ainda antes de “sair à francesa” da festa, e até para poder comer alguma coisa que me parecesse menos perigosa, fui em busca de um balcão onde servissem uma vodka. Aí chegado, tive o embaraço da escolha. Havia três ou quatro marcas, todas locais, e eu não conhecia nenhuma. (Informo que há magníficas vodkas na Ásia Central!)
Ao meu lado, um cavalheiro, grande e com ar eslavo, apontou para uma das garrafas, para que o empregado o servisse. Perguntei-lhe, em inglês, se aquele era o melhor vodka, ele confirmou e assim iniciámos uma curta conversa. Era russo, empresário, já vivia por ali há décadas, podia imaginar que então com funções menos privadas, desde os tempos em que o Usebequistão fazia parte da União Soviética.
O país mantinha uma boa relação com Moscovo, embora as facilidades militares concedidas aos americanos, para apoio à ação no Afeganistão depois do 11 de setembro, tivessem provocado algumas reticências por parte da Rússia. Mas esse fora o preço pago pela ditadura local para tentar diluir a pressão internacional que se projetava sobre o seu sinistro regime.
O russo com quem eu falava, porém, não comentou nada disso. E o que eu pretendia perceber dele era algo mais simples: como é que a comunidade russa no Usebequistão vivia aquele novo tempo, que tipo de relação mantinha com a sociedade local, depois da mudança ocorrida com a independência do país. E perguntei-lhe pelo seu caso pessoal: como se sentia agora por ali, que expetativas tinha quanto ao seu próprio futuro.
O homem falou-me com o que me pareceu ser uma grande abertura dos novos equilíbrios que a independência induzira. E, a certa altura, disse qualquer coisa como isto: “Nós não sabemos bem como é que isto vai evoluir, não é muito claro se o país vai estabilizar, há várias tensões que ameaçam o regime. Eu vou tentando fazer os meus negócios, mas estou a preparar o meu regresso à Rússia. Já mandei a minha família para lá e eu próprio, mais cedo ou mais tarde, acabarei por juntar-me a ela”.
Ao ouvir aquilo tive, subitamente, um lampejo de “déjà vu”. Onde é que eu ouvira, tantas e tantas vezes, aquele tipo de discurso?
Não foi preciso fazer um grande esforço para recordar onde: na Guiné-Bissau, em Angola, em Moçambique. Era a narrativa típica dos portugueses que tinham feito as transições do tempo colonial para as independências, que sentiam que o vento estava a mudar, mas que se iam deixando ficar, a “ver onde paravam as modas”. O discurso de quem transitava do “tempo do colono”, como se diz na África portuguesa, para as novas e frágeis independências, era, afinal, muito parecido, naquele imenso espaço que resultara da implosão do mundo soviético.
4 comentários:
para evitar surpresas com as comidas locais, beberricava um pouco de vodka, algumas vezes ao dia
Não entendo. Que mal têm as comidas locais? E de que forma contraria o vodka o efeito desse mal?
Curioso, não o imaginava a beber vodka ao pequeno-almoço. De vez em quando, também o faço, para acalmar o estômago e os nervos, neste tempo em que andamos todos, mormente os pequenos empresários, a fazer contas negras à vida e a ver em que param as modas. Gosto imenso destas suas crónicas, já lhe disse? Obrigado.
É ir à net, caro sr. Lavoura, está lá tudo. Dizem.
Caro Lúcio Ferro. Muito obrigado.
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