terça-feira, julho 06, 2021

Andorra e os humores de Sarkozy


Há histórias que só o tempo permite que sejam contadas. Esta é uma delas.

Um dia, ao tempo em que era embaixador em Paris, pediu para me fazer a tradicional visita de cortesia o recém-chegado embaixador de Andorra. Era uma pessoa que já tinha conhecido noutras circunstâncias, pelo que tinha um especial gosto em revê-lo.

Andorra é um dos mais pequenos Estados europeus, encravado entre a Espanha e a França. Há por lá, desde há muitos anos, uma importante comunidade portuguesa. Isso chegou a levar Portugal a abrir um dia uma efémera embaixada na sua capital, Andorra-a-Velha.

Devo começar por confessar que tenho um “fraco” por Andorra. Sempre achei admirável a sabedoria de resistência daquele pequeno Estado, na difícil equação que deve ser a sua relação com os dois poderosos vizinhos.

Esta afetividade vem de longe. Para algumas pessoas da minha geração, a Rádio Andorra foi uma estação que marcou o imaginário, nos anos 60 do século passado. Com uma seleção musical magnífica, nos seus programas em francês e espanhol, a Rádio Andorra, desaparecida em 1981, chegou a ser um marco no panorama radiofónico europeu. A frase "Aqui, Radio Andorra!" é uma das memórias fortes que conservo das madrugadas da minha juventude. Na primeira vez que fui a Andorra, fiz questão de visitar os seus estúdios. Mas, para minha grande desilusão, já não encontrei por lá Maria de los Angeles, a voz maviosa que apresentava os programas que enchiam as minhas noites de Vila Real.

Mas voltemos a Paris e ao colega andorrenho que me visitava. Notei-o um tanto abalado e pouco otimista, nesse início de funções. E, como me revelou, tinha razões para isso.

Dois ou três dias antes, quando apresentava a suas cartas credenciais a Nicolas Sarkozy, este tinha parado em frente a ele e, de uma forma brusca e nada elegante, sob o olhar de todos os outros novos embaixadores, disse-lhe: “Eu não aceito as cartas credenciais de um embaixador de Andorra!” A sala terá gelado. E Sarkozy, antes de consumar o ato de recusa, explicou: “Essas cartas credenciais vêm assinadas por mim. Não as recebo! Não tem sentido!” E passou à frente, deixando o embaixador andorrenho com as cartas na mão e numa situação muito delicada.

Por que razão Nicolas Sarkozy tomara essa atitude? 

Andorra é um país que tem, como chefes de Estado, na qualidade de “co-príncipes”, o presidente francês e o bispo da cidade espanhola de Urgel. É uma decorrência da História, que não cabe aqui desenvolver.

As cartas credenciais são missivas formais que o chefe de Estado de um país remete ao seu homólogo do Estado que vai receber o embaixador, indicando ser essa a pessoa que aí o vai representar. Os embaixadores, se bem que escolhidos pelos governos, são, formalmente, representantes dos titulares máximos dos Estados.

Acontece que o presidente francês acaba por ser chefe de dois Estados. (A rainha britânica também é chefe de Estado de vários países da Comunidade Britânica). E esse “co-príncipe” de Andorra, que não tem poder executivo e só é uma figura formal, deve co-dirigir as cartas credenciais dos enviados andorrenhos a todos os chefes dos Estados onde o governo soberano do país deseje acreditar os seus embaixadores. Como é o caso do chefe de Estado francês. Por acaso, ele próprio! 

Ao colocar em causa, como o fez, a legitimidade do embaixador andorrenho, Sarkozy, com a sua aparente “birra”, estava a questionar a própria existência de uma embaixada de Andorra em Paris - aliás uma das poucas que este país tem no exterior. No fundo, com esse seu gesto, Sarkozy contestava a existência de uma soberania que ocupa um lugar de membro pleno da ONU e que tem um estatuto especial nas suas relações com a União Europeia, embora dela não seja membro - como o não são pequenos Estados como Mónaco, São Marino ou a Santa Sé.

O meu colega ficara bastante abalado com a cena, e tinha razões para isso. O facto dela se ter passado diante de vários colegas tornara-a mais penosa. Como se tinha resolvido o assunto? Depois de uma parlamentação discreta com funcionários do Eliseu, acabou por entregar as cartas credenciais ao serviço do protocolo, assim se sanando o incidente, “fazendo de conta” de que nada se tinha passado e dando as cartas por recebidas.

Dei-lhe, naturalmente, a minha solidariedade e comunguei do comentário de que o comportamento de Sarkozy fora, no mínimo, de grande indelicadeza, independentemente da questão política de fundo. 

Mas fiquei sempre a pensar no assunto. Sabia-se que Sarkozy frequentemente “se passava”, com explosões de fúria, mas, sendo ele um jurista e tendo-o pessoalmente visto atuar em diversas ocasiões, não me parecia pessoa para ter uma leviandade desta dimensão em questões de Estado. A França não é uma “república de bananas”!

Meses mais tarde, relembrei o incidente, durante um almoço, a alguém da estrutura diplomática do Eliseu. A história, como constatei, era amplamente conhecida. E foi-me então dito que o presidente francês fizera aquele “número” deliberadamente, para mostrar a sua irritação com algumas reticências que o executivo andorrenho estaria à época a colocar na resolução da questão dos “paraísos fiscais”, um tema que então mobilizava bastante a França e que levara a uma tensão idêntica com Mónaco. Segundo me foi explicado, a cena que tinha apanhado o meu amigo e colega de Andorra seria, afinal, um “recado” às autoridades do seu país. Seria?

1 comentário:

albertino ferreira disse...

Também eu ouvia a Rádio Andorra, Emissora del Principado de Andorra- Circule por la derecha disco obrigatório! Era o programa da melhor música do anos 60!

Sai um Kennedy!

Kennedy na equipa de Trump! Ouviram-no durante a campanha? Tudo isto pode vir a ser dramático, mas lá que vai ter piada de observar, lá isso...