domingo, abril 25, 2021

Há 20 anos, dia por dia


Eu estava em Nova Iorque há menos de dois meses. Nesse dia, saí de casa, muito cedo, diretamente para a sede da ONU, onde tinha reuniões, umas a seguir às outras.

Com alguma ingenuidade, algo “stakhanovista”, eu tinha decidido encontrar-me pessoalmente com todos os colegas estrangeiros embaixadores na ONU! Todos! Os 189, à época! Toda a gente achou que era uma loucura, mas eu só cheguei a essa conclusão ao final de quase três meses.

Com uma “vingança” pessoal: ganhámos todas as eleições para todos os cargos a que concorremos, algumas ditas impossíveis. É verdade que eu tinha uma equipa “eleitoral” de luxo, herdada do meu colega António Monteiro, mas ter a “lata” de ir ver o embaixador de Vanuatu, seguido do de Saint Kitts and Nevis e o do Burkina Faso e, depois, nos dias seguintes, mais 185, não terá deixado de contar alguma coisa para isso. Foram longas semanas nisto!

Cheguei assim, nesse dia, à nossa Missão, já depois do almoço. Ainda não tinha entrado no gabinete e já as minhas secretárias me avisavam da lista das “chamadas em atraso”. Nas Nações Unidas, está sempre alguma coisa em atraso! E havia ainda a lista dos colaboradores que tinham feito “reserva” para me verem, com “telegramas” para eu dar “luz verde”, antes de seguirem para Lisboa, onde já eram umas horas mais tarde, com informações ali aguardadas, o que aumentava a angústia.

Só quando me sentei na secretária é que dei por ele: um ramo de cravos vermelhos. Era 25 de abril! E eu nem me lembrara da data! Nas embaixadas bilaterais era feriado! Ali, em Nova Iorque, era um dia de trabalho, como os outros!

“Cristina! Quem trouxe estes cravos?”, perguntei, imagino que com o sentimento de ter ganho o meu dia. “Foi a Dra. Clotilde Mesquita!” A Clotilde era uma funcionária da Missão, que eu conhecia já de Lisboa.

Quis a sorte, ou o azar (hoje a minha doutrina interior divide-se sobre o assunto) que só tivesse mais um 25 de Abril em Nova Iorque.

No ano seguinte, em 2002, também no dia 25 de Abril, organizei um jantar em casa em que juntei Xanana Gusmão e Mari Alkatiri, para lhes apresentar aquele que iria ser o sucessor de Sérgio Vieira de Mello em Timor, o indiano Kamalesh Sharma, até ali meu colega como embaixador da Índia junto da ONU.

A minha mulher, que não estava presente no jantar, tinha posto um cravo vermelho em frente de cada convidado. Xanana e Alkatiri sorriram muito. Ao indiano tive de explicar o porquê da flor.

Mas, também nesse dia, já de manhã, a Clotilde me tinha deixado cravos sobre a minha mesa de trabalho na Missão portuguesa. E, depois disso - e já passaram quase duas décadas - esses cravos passaram a virtuais, em Viena, em Brasília, em Paris e, finalmente, aqui em Lisboa. Em todos os 25 de Abril.

Obrigado, querida Clotilde! E viva o 25 de Abril! Sempre! 

Já passou!

 


As quintas da empregada





Renato Janine Ribeiro é um intelectual brasileiro que, há uns anos, ocupou o cargo de ministro da Educação do Brasil. É um figura serena, dialogante, com uma sabedoria amável, a que, seguramente, não será alheia a sua formação em filosofia. Um democrata e um amigo.

Tenho o gosto de, com ele, ser membro de uma agremiação “do bem”, o Forum Demos, uma estrutura animada por Álvaro de Vasconcelos, que Portugal se habituou a conhecer como a alma do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI) e que, mais tarde, ajudou as instituições europeias a pensarem-se no mundo.

O Renato enviou-nos hoje, a propósito do 25 de Abril, uma data que os nossos amigos além do Atlântico saúdam connosco a cada ano, este delicioso testemunho que, com sua autorização, me atrevo a partilhar:


ANIVERSARIO DA REVOLUÇÃO DOS CRAVOS

Penso que nunca relatei este episódio de que fui testemunha.

Hoje, aniversário da Revolução dos Cravos, que tornou possível falar em público de liberdade e democracia na língua portuguesa, até então presa de vis tiranos, eu a conto.

Estive em Portugal todo o mês de agosto de 1974, conhecendo o vigor de um povo que se libertara. Voltando a Paris, onde eu era bolsista (não, não fui exilado), recebi um convite de um amigo de meu pai que ia dar uma recepção pequena, em seu apartamento, para o 7 de Setembro. Era o adido cultural em Paris, Clovis Graciano, um dos grandes pintores brasileiros.

De vez em quando, aliás, ele me chamava a almoçar em sua casa, onde ele e a esposa me recebiam. Seu filho Paulo trabalhou com meu pai, ainda jovem, na editora Banas de publicações econômicas. Mais tarde, meu pai assessoraria Paulo, quando este foi presidente do Instituto Brasileiro do Café, o IBC. Havia, então, uma discreta amizade de família.

Paulo Graciano era um pintor vigoroso, que tinha militado à esquerda. Agora, era adido cultural do embaixador Delfim Neto.

Pois a certa altura, numa destas rodas que se formam e dissolvem num coquetel, todos de pé, um jovem filho de dono de jornal importante começou a contar sua viagem a Portugal, dias antes, e o descontentamento que ouvira dos motoristas de taxi. Clovis Graciano então disse o que sua empregada, portuguesa como era muito comum em França naquela época, lhe afirmara:

- Dr Clovis, os comunistas estão a tirar as quintas, as herdades de quem as tem!

Os circunstantes, dois além de mim, ficaram animados, esperando a frase fatal anticomunista que deveria arrematar esse depoimento da senhora portuguesa. Mas Clovis:

- Minha filha, tu tens quintas? Tens herdades? Não? Então tens é que estar com os comunistas!

O silêncio foi sepulcral. Os dois outros circunstantes saíram da roda, ressabiados. Clovis ria. Eu exultava.

O Fado do Chicão

Do cravo negro do Ventura (sponsorizado, podemos imaginar, pela Servilusa) ao cravo branco do Chicão do Caldas, na manhã a-preto-e-branco deste “pas de deux” da direita, qual será a verdadeira distância? O tempo o dirá!

Aqui fica este oportuno poema de Luís Filipe Castro Mendes, revisitando Pedro Homem de Mello e o seu “O Rapaz da Camisola Verde”:

“O Fado do Chicão”

De olhos nas câmaras e de olhar afoito,
jeito de marinheiro ou de soldado,
era um rapaz da direita moderna,
negra madeixa ao vento, cravo branco de lado.

Perguntei-lhe quem era e ele disse
“sou a direita e por mim vai tudo mudado”.
Pobre rapaz da direita moderna,
negra madeixa ao vento, cravo branco de lado.

Porque me assaltam turvos pensamentos?
Que queres tu mudar no nosso fado?
Diz-me rapaz da direita moderna,
negra madeixa ao vento, cravo branco de lado?

Ouvindo-me, quedou-se altivo o moço
e respondeu com o cravo branco empinado
“De vermelho tornei branco este cravo,”
negra madeixa ao vento, olhar arregalado.

Soube depois que tivera tantos votos
quantas ideias tinha apresentado.
Ai do rapaz da direita moderna,
negra madeixa ao vento, cravo branco murchado!


E agora vou comprar cravos...


 ... porque “o 25 de Abril é à hora que um homem quiser” (citação de um “late riser” anónimo)

Pois é, Sophia...

 


... o “dia inicial inteiro e limpo” está assim! Mas dias melhores virão!

Há 200 anos


Faz hoje precisamente 200 anos, dom João VI, que ganhara o título real já no Brasil, deixava definitivamente aquela terra, ao final de 13 anos, para onde a corte se transferira em 1808, acossada pela primeira invasão napoleónica de Portugal. O efeito do período joanino sobre o Brasil foi imenso, como o reconhece quem se debruça com seriedade sobre os múltiplos impactes da presença tropical da corte, os quais, a curto prazo, vieram densificar a massa crítica que deu lugar à posterior independência da colónia. Mas porque as relações coloniais são sempre o que são, há um Brasil que não resiste a pontuar a evidência do salto qualitativo dessa centralidade conjuntural do império português com algumas notas caricatas e depreciativas sobre a imagem e os hábitos do rei. Esse tipo de discurso a propósito de dom João VI iniciou um recorrente ciclo de lusofobia, umas vezes mais acentuado, outras vezes mais atenuado, que se converteu numa espécie de doença infantil a que a brasilidade raramente consegue escapar. Um artigo na “Folha de S. Paulo” de hoje segue, com naturalidade burocrática de pensamento, essa “politicamente correta” dualidade de leitura. Nada de novo, a Sul.

A eterna maiúscula

Eu sigo o Acordo Ortográfico. Mas a palavra Abril do nosso 25 de Abril é o único mês que, em exceção à regra do Acordo, deve ser sempre escrita com uma imensa maiúscula.

Os tempos

Todos sentimos que o 25 de Abril já foi há muitos anos. Grande parte da atual população portuguesa nem sequer era ainda viva nessa data. 

E já pensaram que a ditadura, que nesse dia foi derrubada, exerceu o seu poder totalitário (com polícia política, pessoas presas pelas ideias que professavam, torturas, assassinatos deliberados, guerras coloniais, ausência de liberdades mínimas, fraudes eleitorais permanentes, etc.) por tantos anos quantos aqueles -tambem já imensos! - que hoje nos separam do 25 de Abril?

sábado, abril 24, 2021

É pena!

Começa a ser muito evidente que algumas - repito, só algumas! - das pessoas da direita democrática que, há uns tempos, assinaram um belo manifesto em que, num ato de assinalável decência, se afastavam abertamente da extrema-direita, estão já arrependidas de o terem feito. É pena!

24 de abril

Um (agora bem mais conhecido) diplomata português, um dia, algures no mundo, numa conversa comigo, num tom que recordo cordial:

- Ó Francisco, desculpe lá! Você anda sempre a dizer às pessoas que eu sou um reacionário “de primeira”, quase um fascista, só porque sempre fui um conservador...

- Ó homem! Você não tem culpa nenhuma! Foi a vida que assim quis! Em que dia e mês é que nasceu? 

- 24 de abril... 

- Eu não dizia?! É a vida!

- Mas como é que sabe isso? 

- Leio muito! Até o Anuário, lá das Necessidades...

Viva o 25 de Abril!

Houve anos em que eu andava já cansado de ser sempre a mesma coisa: o MFA, os cravos, a Grândola, o Otelo, o Tarrafal, a Pide, a censura, o Maia, o Carmo, o ”povo unido” & parafernália idêntica.

Afinal, eu estava errado. Com a neo-fachalhada por aí, cada vez é preciso berrar mais alto: Viva o 25 de abril!

sexta-feira, abril 23, 2021

Salazar no 25 de Abril


“Senhor professor! Senhor professor! Telefonou o general Kaúlza a dizer que estão tropas nas ruas. Diz que, desta vez, não conseguiu impedir o golpe”. 

À dona Maria, com os olhos esbugalhados, parecia que ia dar qualquer coisa má. O roupão, até aos pés, dava-lhe um ar de espantalho, de assombração, com a luz tépida, vinda do corredor, a surgir-lhe por detrás, quebrando a escuridão do quarto de Salazar.

Silencioso, Salazar permanecia, pelo menos aparentemente, calmo. Levantou-se, pijama às riscas e abriu a cortina da janela que, do quarto, dava para a calçada da Estrela. Não viu qualquer movimento. 

Pôs os chinelos, saiu para a sala ao lado e ligou para casa do Barbieri Cardoso. É que o Silva Pais, chefe deste, nunca sabia nada de nada. A mulher do número dois da Pide respondeu que ele estava em Paris, numa visita aos colegas de lá. Sereno, Salazar agradeceu. Parou a olhar o teto, por um instante. Seria desta?

Lembrava-se do que fora a agitação pelo país quando ele caíra, lá no forte, já há quase seis anos. Na Cruz Vermelha, depois de semanas de dúvidas, tinham-no dado quase como morto. Mas as as contas tinham saído furadas aos que já o pensavam ir ver pelas costas. Ao que apurara, Marcelo Caetano até tinha andado a consultar gente para um governo. Muito se tinha rido! No fim, foi ele quem riu melhor! Mas Tomás portara-se bem, fora firme e tudo voltara à normalidade. 

O telefone que acabara de utilizar tocava agora. Era Paulo Rodrigues, um seu homem de confiança. “Senhor presidente! Algumas unidades militares atacaram vários pontos estratégicos! Há tropa por todo o lado! Tem de sair daí da residência! Podem ir prendê-lo!”

Salazar deu uma gargalhada nervosa: “Mas vou para onde? Fujo para Santa Comba?”. E logo inquiriu: “Mas quem é que manda nesse tal golpe? Não me diga que o Costa Gomes está outra vez envolvido? E o ministro da Defesa, o Bettencourt Rodrigues, por onde é que anda?” 

Paulo Rodrigues sabia pouco. As informações eram escassas. Estava tudo ainda muito confuso. Apenas lhe constara, dias antes, mas não teria querido incomodá-lo, que o Venâncio Deslandes andava algo agitado, em contactos.

Salazar ficou atónito! Não era possível! O Venâncio, sempre tão mesureiro! O próprio chefe do Estado-Maior das tropas deixara-se seduzir pela hipótese de derrubar o regime? Mas porquê? Bem, já tudo era possível! Paulo Rodrigues ficou de inquirir algo mais e ligar de volta.

Mal a chamada terminara, logo o telefone voltou a tocar. Desta vez era o Silva Pais. 

Salazar tinha cada vez menos paciência e confiança num homem que, sendo chefe da sua polícia, não conseguira evitar que a filha fosse viver para a Cuba de Fidel de Castro. Era uma suprema ironia! 

“Diga lá, Silva Pais. O que é que você sabe?” O homem engrolou-se em desculpas. Falou que, de facto, havia rumores de que o general Deslandes tinha andado a fazer uns contactos, mas nada indicava que um movimento sedicioso estivesse iminente. Tinha pensado falar do assunto a Salazar numa conversa aprazada para a semana seguinte.

As últimas informações, disse Silva Pais, eram de que, pela rádio, estava a ser transmitida uma espécie de senha musical, que pusera várias unidades em movimento. Uma música que estava a dar de hora a hora. “O senhor presidente, se quiser, pode ligar agora o Rádio Clube, vão ser quase seis horas. Dizem que dá mesmo antes das notícias. Os revoltosos seguem aquilo, porque a música lhes transmite uma indicação”.

Uma música? Está tudo doido? Salazar estava mais do que irritado! O Rádio Clube?! Seria outra vez o Botelho Moniz? Não podia ser. A verdade é que ele era cunhado do Deslandes...

Ligou o Telefunken. Estava a dar uma marcha militar! Mau mestre!, pensou para si! Não era bom sinal.

E logo surgiu a voz do locutor: “Faltam cinco minutos para as seis da manhã. Convido agora os nossos ouvintes, pelo país inteiro, a ouvirem a canção “A vida toda”. Uma melodia interpretada pela bela voz de Carolina Deslandes”.

Pronto, era mesmo o Deslandes!

Da cepa torta à boa nova

                           


Alguns podem detetar algo de gastronómico no título deste artigo. Têm e não têm razão.

Rui Paula, hoje um “chefe” mais do que credenciado, iniciou o seu percurso no ‘Cepa Torta’, em Alijó, atravessou o Douro para a Folgosa, aportou depois no Porto, andou pelo Recife e por Lisboa, e hoje, estrelado sem favores pela Michelin, oficia grande qualidade na Casa de Chá da Boa Nova, um pouco além de Matosinhos.

Neste entretanto, conseguiu, apenas à custa do seu esforço e mérito, romper barreiras e entrar na aristocracia gastronómica dominada por Lisboa e por algum Algarve feito para a estranja. Ele é, assim, a prova provada de que se pode sair da Cepa Torta…

Mas não, não era do Rui Paula que eu queria falar hoje. Era do país.

Portugal evoluiu muito. Somos muito diferentes do que éramos há décadas. As pessoas vivem, em geral, bem melhor, houve um salto imenso na sua qualificação. A sociedade (infraestruturas, saúde, educação, bem-estar) deu um grande passo adiante, as mentalidades abriram-se, há novas oportunidades.

Foi o 25 de Abril? Foi a entrada para as instituições europeias? Se não tivesse havido uma Revolução naquele dia, alguma coisa teria acontecido tempos mais tarde, embora provavelmente com mais sangue e mais lágrimas. Se não tivéssemos aderido às Comunidades em 1986, teríamos, com toda a certeza, chegado lá tempos depois, mas seguramente em condições mais desvantajosas. Portugal não ficaria parado no tempo. A única coisa que me parece certa é que a Revolução chegou tarde demais mas que, face a esse calendário, a entrada para o projeto europeu foi no momento certo.

Mas, aqui, começa a minha perplexidade: por que razão, com toda a liberdade e com fortes ajudas, não obstante os avanços que se produziram, o país continua a perder terreno face aos seus pares europeus? Há quantos anos ouvimos falar de planos, de projetos, de metas e, depois, tudo o que é concretizado acontece tarde, e sempre numa escala mais modesta?

Vem agora por aí a ‘bazuca’. Magnífico! Mas por que é que será que muitos não acreditam que “agora é que é”, que o passo adiante no nosso desenvolvimento pode, afinal, ser mais uma oportunidade falhada?

“Também tu alimentas o pessimismo?”, estou já a ouvir alguns amigos a inquietarem-se com estas minhas interrogações. Sou um otimista por natureza, mas, confesso, já estou tão “escaldado” que, de quando em vez, tenho quebras no meu ânimo.

Custa-me muito ter a sensação de que, por muitos esforços que façamos, não saímos da mediania, do “assim-assim”, de um resultado apenas razoável. Não consigo encontrar alguém que, de forma convincente, me diga, sem eu ter de fazer um esforço voluntarista para acreditar, que é desta que vamos deixar de ser o país mais pobre da Europa ocidental, que vamos parar de exportar mão-de-obra qualificada “chave-na-mão”, que vamos aproximar-nos, decisivamente, da média de crescimento e de riqueza da União. Gostava de ouvir alguém que me desse a boa nova de que vamos sair da cepa torta.

A América mexe com o mundo


Já por aqui se refletiu sobre o caráter determinante que a mudança de um presidente americano assume sempre na ordem global. Nenhuma alteração de liderança, em qualquer outro país do mundo, cria tanta expetativa e concita tanta atenção. A razão por que isso acontece é óbvia: muitas das orientações oriundas de qualquer que seja o titular da Casa Branca refletem-se nos vários cenários estratégicos internacionais.

Biden foi acolhido com o alívio de quantos esperam ver a América regressar a uma certa forma de “business as usual”. A maioria anseia ter uns EUA previsíveis na sua postura, face às grandes questões mundiais, ao invés dos humores cíclicos de uma figura, que oscilava entre o caricato e o irresponsável.

Dito isto, convém nunca esquecer que um presidente americano é, essencialmente, um presidente dos americanos e dos seus interesses - e esses interesses nem sempre coincidem com os dos outros. Por isso, para além da simpatia e da expetativa amável, o mundo vai ter que se confrontar, adaptando-se ou não, a uma nova ordem que aí virá. E os EUA, podendo conversar com os seus aliados, habituaram-nos já a não pactar as suas grandes decisões estratégicas.

No campo internacional, já se começaram a perceber algumas coisas essenciais.

Desde logo, que a China é o inimigo estratégico e que os EUA tudo farão para coligar, à sua volta, o conjunto de vontades que possa ajudar a isolar o poder de Beijing. Tendo criado a noção, provavelmente certa, de que, no tempo de Trump, a América perdeu tempo, que a China utilizou para reforçar o seu poderio e capacidade de afirmação, Biden não quer desperdiçar a oportunidade de se colocar, muito rapidamente, à frente dos aliados asiáticos da América, na resistência à nova assertividade chinesa. Quando utiliza, cada vez mais, a expressão “indo-pacífico”, Washington assinala querer cooptar para esse seu esforço o parceiro essencial que é a Índia. É por aqui que, tudo o indica, vai passar o esforço político, diplomático e militar, que estará no centro da administração Biden.

Deixar de ter “boots on the ground” (botas no chão) é também, já desde há muito, um objetivo tendencial de Washington. As memórias do Vietnam ou do Iraque não fazem parte de um património afetivo do imaginário americano, ao contrário da Segunda Guerra mundial.

As ameaças aos adversários são feitas, cada vez mais, de outra forma e Biden - como já tinha acontecido com Obama e mesmo com Trump - pretende corresponder à vontade, que se sabe muito expressiva, da opinião pública americana de ter o mínimo possível de tropas no exterior, em especial em zonas de risco efetivo ou potencial. A confirmação da decisão de sair do Afeganistão, que se soma ao continuado “desengajamento” no Médio Oriente, vai nesse sentido. Isso compensará, com certeza, a necessidade de presença em outros teatros simbólicos, como a Alemanha ou a Coreia do Sul.

Interessante, neste desenho estratégico, é, contudo, a conflitualidade - que quase parece estimulada - com a Rússia. Onde Trump mostrava tibieza e até uma estranha cumplicidade, Biden faz renascer aquilo que foi a linguagem mais jingoísta do tempo de Obama. O regresso da Ucrânia à primeira linha de alguma mobilização, retórica e não só, acarreta, contudo, consequências que não são despiciendas para a própria unidade das vontades europeias. Sabemos bem que, no seio da União Europeia, o discurso face à Rússia não é necessariamente unívoco. A questão do gasoduto Nordstream 2, que é uma obsessão estratégica americana, é, por exemplo, um problema sério de decisão para uma Alemanha que atravessa um complexo ano eleitoral. Mas há bastante mais.

Ainda na Europa, e tendo começado por sossegar os seus aliados quanto à continuidade do seu interesse na Nato, os Estados Unidos irão, quase como contrapartida, forçar uma maior clareza face à questão chinesa. A ausência do Reino Unido no processo de debate intraeuropeu neste domínio não facilita as coisas para Washington, mas este promete ser um tempo nada fácil em Bruxelas.

Trump deu à Europa muitas dores de cabeça? Biden vai-nos colocar equações bem complicadas para resolver. Vão ver!

Diplomacia e informação


A convite do Centro de Formação de Jornalistas, de Angola, farei hoje uma palestra dedicada aos profissionais da diplomacia angolana que estão ligados às questões da informação e da imprensa, com especial ênfase nas área da comunicação digital e do apoio à diplomacia económica.

quinta-feira, abril 22, 2021

Voltar


A chuva, que caiu quase de manhã à noite, tinha tornado muito pesado e longo o dia de viagem de ontem, de norte a sul. Chegar a Lisboa foi quase uma bênção. Desmalado e arquivado o carro, abri a caixa do correio, atulhada de coisas, depois de mais de uma semana de ausência. E dei então com o envelope. Sentei-me a ver snooker sem som na televisão - desde há muito funciona, para o meu descanso psicológico, como imagino que o Baby TV deva ajudar os consumidores a que se destina - e comecei a ler o “Voltar”, o novo livro de poemas que o Luís Filipe Castro Mendes nos tinha enviado, com uma amiga dedicatória. Fez-me muito bem, ajudou-me a acordar o fim de um dia, em que estava já entorpecido, o poder saltitar por aqueles versos, escritos a pretexto de muitos lugares e com o amor como frequente mote. Li mesmo alguns dos textos em voz alta, como aprendi a fazer com o meu pai.

Não me considero um leitor perspicaz para pescar sentimentos alheios (desde logo, nem sequer os meus próprios) mas, ousando, por uma vez, ir por aí, diria que a poesia mais recente do Luís me surge atravessada (mas isto, repito, vale o que vale!) por uma suave e assumida nostalgia, às vezes com um toque, aqui ou ali, de algum bem esboçado desencanto, a meu ver mais buscado (mas nada rebuscado) do que real. Trata-se de poesia, não esqueçamos! Mas ela é oriunda de quem, estando muito bem reconciliado com a vida, cuida bastante em revisitar as suas geografias afetivas - as humanas e as propriamente geográficas, estas sempre muito ligadas à sua memória cultural. Logo ele, que teve a sorte de ter muita sorte e de saber procurá-la e vivê-la tão bem! Às vezes, contudo, só numa segunda leitura se me torna evidente (cada um lê o que quer ler, não é?) que a poesia do Luís tem muito de uma radiografia, contida e muito serena, da sua óbvia felicidade pessoal. E isso resulta muito bom para o leitor. Pelo menos, resulta para mim.

Fica aqui um “amuse bouche”, com os cumprimentos do chefe poeta, este “Ao lembrar”:

Cada cidade que recordamos
trai a nossa memória dela, ao ser outra
a cada dia.
Só nos são fiéis as cidades desconhecidas
com que não chegámos a sonhar
.”

Vacina (2)

Nota 20 para a administração das vacinas! Serviço bem personalizado: bela hora, só ao final da manhã, e local adaptado ao "cliente": logo ali ao lado, estava a Livraria da Travessa, uma das melhores de Lisboa. E como, ao contrário dos bolos do José Severino, "eu é mais livros..."

Vacina

Fui convocado para, daqui a horas, tomar a primeira dose da vacina anti-covid. “Qual das vacinas vais tomar?” foi a pergunta que ouvi, da parte das pessoas a quem anunciei o espetamento que me aguarda. ”Sei lá! Nem me interessa”, respondi, para espanto de todos. E é pura verdade!

quarta-feira, abril 21, 2021

“A Arte da Guerra”


Esta semana, “Arte da Guerra”, o podcast para o Jornal Económico que semanalmente faço com o jornalista António Freitas de Sousa, é dedicado à América Latina: falamos dos reajustamentos na liderança cubana, das novas hipóteses políticas que as decisões judiciais oferecem a Lula da Silva no Brasil e do relativo “esquecimento” em que parece ter caído o governo de Nicolás Maduro na Venezuela.

Pode ver essa conversa aqui

terça-feira, abril 20, 2021

Nos 80 anos de Roberto Carlos



Foi em 2008. Ia numa longa viagem de trabalho pelo Ceará adentro, tendo ao meu lado uma senhora brasileira. Era uma mulher com responsabilidades na área da cultura, com sólida formação universitária. 

Muitas coisas vieram à conversa e, a certo ponto, surgiu o nome de Roberto Carlos, que ontem fez 80 anos. Perguntei-lhe como é que, depois de tantos anos de exposição pública, o cantor ainda era visto no país. A sua reação foi espontânea: "O rei? É o ídolo de todo o Brasil, adorado por todos! É o maior!".

Cometi o erro de não levar o comentário à letra e, um tanto brutalmente, disse-lhe o que pensava. 

Roberto Carlos fora um cantor muito popular em Portugal nos anos 60, com êxitos que, à época, muitos conhecíamos de cor, como "O Calhambeque" e coisas assim. Depois, ao que eu observara, a sua popularidade entre nós fora declinando progressivamente. A meu ver, isso ficava a dever-se ao facto de ele ter enveredado por um romantismo possidónio, quase "pimba" (terei dito "cafona"), num certo período com letras de cariz religioso, numa linha melódica repetitiva e, para o meu gosto, nada criativa, A tudo isto se somava uma imagem pública ridícula, típica de um canastrão irreconciliado com a idade, com um cabelo de arrepiar e trajes "retro", quase anos 70. Estranhava muito, por isso, ouvir expressada uma admiração pelo cantor, por parte de uma pessoa como ela. Lembro-me de não ter sido muito subtil...

A minha paciente interlocutora explicou-me então uma coisa que eu, apesar de estar no Brasil há vários anos, não entendera. Roberto Carlos estava "para além" das gerações, era uma figura mítica que unia todos os brasileiros, que tinha tido uma vida familiar trágica, com um comportamento que lhe grangeara um grande respeito público. Todos os anos - e acabou por ser a minha segunda grande surpresa - fazia pelo Natal um espetáculo que dava origem a um disco, o qual, por tradição, era uma das prendas dadas nessa época, por todo o Brasil.

"Mas... e aquela música? O que é que aquilo tem a ver com a fantástica riqueza da vossa música, de Tom Jobim a Chico Buarque, de Milton Nascimento a Gilberto Gil, de Ivan Lins a Caetano?" A minha acompanhante, com serena pedagogia, explicou-me que essa música, que eu ridicularizava, continuava a ser apreciada por muitos milhões de brasileiros, coexistindo, sem dificuldade, com as outras sonoridades que eu tanto apreciava, como era o caso da música sertaneja, que eu lhe gabara muito. O romantismo de Roberto Carlos era parte da alma brasileira e a religiosidade, que marcara fases da sua vida, era bem entendida e respeitada por todos. "No Brasil, há espaço para toda a música e nela haverá sempre um lugar eterno para o nosso "rei", para Roberto Carlos". Embatuquei.

Com o tempo, fui testando a mesma questão com outros amigos brasileiros. Nem um só, dentre todos eles, deixou de concordar, no essencial, com a opinião da minha interlocutora do Ceará. Aprendi assim que, às vezes, devemos relativizar em público os nossos gostos e, em particular, temos de fazer um esforço maior para entender os dos outros. Por muito que, no íntimo, continuemos a pensar o mesmo, claro.

O autoretrato das minhas estantes e também o do Rui Knopfli

Há muito tempo que as minhas estantes de livros são um caos. Mas não um caos relativo, alguma desarrumação: é um caos que se aproxima muito de ser total. 

Vou dar um exemplo elucidativo, para que não achem que estou a exagerar. Descobri hoje, aqui em Vila Real, o segundo volume de “O Homem sem Qualidades”, de Robert Musil. Em Lisboa estão os dois outros volumes e - sei que não vão acreditar! - vivem em estantes opostas, a metros um do outro!

Não me perguntem porque é que isto acontece! Há muitos anos, há mais de vinte (juro!) que não tenho a menor paciência para arrumar livros, nomeadamente os que vou comprando (e compro bastantes). Antes disso, lembro-me que as coisas andavam mais ou menos arranjadas, por áreas temáticas. Creio que foi desde que me mudei para a casa onde vivo, em 1997, que se instalou este pandemónio na minha “biblioteca” (nem lhe ouso chamar isso!). Assumo isto, sem o menor problema, talvez com a atenuante de ter transitado entre 14 casas diferentes e de que estamos a falar, entre coisas nas estantes e em caixotes, à volta de oito ou nove mil livros. (Desde há uns anos, com bastantes deles já recolhidos na Biblioteca Municipal de Vila Real, para onde vai “andando”, ao ritmo dos meus humores, o meu espólio livresco).

Mas, ao longo de todos estes anos, nunca tentei, algum dia, pôr alguma ordem naquilo? Claro que sim. Imensas vezes! Arregacei as mangas, deitei mãos à obra, por uma boa meia hora fiz pilhas de livros, que deviam ficar juntos, desarrumei salas e ocupei o soalho. Só que, num determinado instante (e isto aconteceu-me em bem mais de uma dezena de ocasiões), caiu-me nas mãos algo que me interessava ler logo. E, claro, zarpei para um sofá, onde me alapei para, aí por uma hora ou duas, ler esse livro, até que o acabei ou me cansei dele, coloquei-o de parte. Depois, fui trabalhar (porque trabalho bastante, para que conste), ou fui ver a internet, dali passei a um programa de televisão, escrevi entretanto um tweet ou um texto para o blogue, agarrei num jornal ou numa revista. E, a certa altura, porque viver cansa, decidi ir deitar-me. E logo peguei noutro livro da pilha que, na mesa de cabeceira, começa de novo a subir e abeirar-se de um quadro que é o seu limite em altura. E fui dormir, coisa que também faço, por muito que alguns não acreditem. (Há um ano, no meu quarto, havia cento e tal livros, entre estantes e a mesa de cabeceira). No dia seguinte ao início da “operação” de arrumação, em tom irónico, lá ouvi pela enésima vez: “Estas pilhas de livros era para tu arrumares, não era?”. Era.

Na minha casa de Lisboa, nas zonas onde há livros, há apenas quatro áreas com uma ligeiríssima e tendencial homogeneidade: a poesia (sempre toda junta, honra, ainda sem explicação, aos poetas), coisas sobre o Brasil (mas há caixotes, em Vila Real, atulhados de livralhada brasileira, que já passou incólume por Paris), alguma coisa sobre a Europa de que às vezes necessito para escrever, ao lado de uma zona com alguns livros básicos de diplomacia, uma área de política de Espanha (mas também de alguma ficção de “habla” castelhana) e três prateleiras com Eça e coisas queirosianas, uma mania velha que tenho, desde que me conheço leitor.

Fora isso, e à parte uma orgulhosa coleção (quase completa) de livros de José Vilhena, o caos é, verdadeiramente, total: ficção misturada com “current issues”, livros de turismo no meio de coisas sobre o Brexit ou o colonialismo ou sei lá! Ah! Ia-me esquecendo: há uma zona de dicionários, essa relativamente homogénea.

Mas então, sensatamente, perguntarão: como é que eu descubro aquilo de que necessito? Muitas vezes não descubro, outras vezes lembro-me de que “é uma coisa em tons de azul que andava ali por aquele canto”. Isto é de doidos? É, sim senhor, mas é assim, a sério! (E vivo feliz assim, se querem saber!)

Na casa que tenho em Vila Real é tudo mesmo muito pior. Não há, lado a lado, um único livro que tenha a ver com outro: é um thriller em inglês ao pé de uma coisa sobre o Douro, uma memória de um político francês junto com uma gramática, obras mais do que menores (tanto que me envergonho de dizer os autores) à beira de gigantes do pensamento político. Não tem graça nenhuma, podem crer!, mas não tenho, há muito, e tenho a impressão que nunca irei ter, a menor pachorra para um dia pôr ordem naquilo. No entanto, quer em Vila Real quer em Lisboa (mas esse pelouro não é meu), os livros de culinária estão cuidadosamente arrumados. Mas não me culpem disso, por favor!

Há minutos, passei por uma estante e apanhei a “Memória Consentida”, 20 anos de poesia do Rui Knopfli, que era conselheiro de imprensa na embaixada em Londres quando por lá passei nos anos 90 (eu passei por lá quatro anos e tal, ele esteve 18). E lembrei-me, para os compensar do texto chato (autoflagelante e quiçá francamente desqualificante) que acabam de ler, de lhes deixar este belo poema autoretrato do Rui.





A minha solidariedade

Nesta hora difícil, deixo uma palavra de profunda solidariedade às pessoas que têm a responsabilidade de fazer os alinhamentos dos telejornais televisivos: decidir entre dar prioridade à pandemia ou à “crise” no futebol europeu deve ser um dilema de consciência difícil de superar.

segunda-feira, abril 19, 2021

“Todos à molhada!”

Foi preciso que aristocracia do futebol europeu tivesse revelado, em todo o seu esplendor, a sua insuportável arrogância para que os três principais clubes portugueses (pronto! já sei! há o Braga, o Boavista e os ”loosers” de luxo - a Académica e o Belenenses) conseguissem juntar-se, num gesto de orgulho ofendido, unidos em torno de um novo “mapa cor-de-bola”, que possa resgatar a honra de uma pátria em chuteiras (valha-nos, como nunca, a metáfora do Nelson Rodrigues). Há quem chame desporto àquela belíssima arte coreografada sobre a relva, só que, de quando em vez, eventos como estes mostram-nos, muito claramente, que estamos apenas perante um negócio (estive tentado a escrever “mundo cão”, mas hesitei) de emoções irracionais, arrebanhadas de forma ululante.

O Douro ao longe


 ... ao andar ali por perto.

A beleza do vale do Tua


 ... ontem, do miradouro do Ujo.

domingo, abril 18, 2021

Lema

Recordei hoje um belo lema de um amigo que sofreu na pele a ditadura: um punho fechado - seja ele qual for - é sempre mais honrado do que uma mão aberta num braço estendido.

sábado, abril 17, 2021

“Observare”


Mais um programa “Observare” onde, desta vez, falamos das tensões em torno da Ucrânia, nos sinais que os Estados Unidos crescentemente enviam para a Ásia e no reacender de alguma conflitualidade na Irlanda do Norte, desta vez provocada por um efeito colateral do Brexit. Eu refiro mais um episódio do dissídio histórico entre a França e a Argélia e da comemoração dos 60 anos da ida do primeiro cosmonauta ao espaço, o russo Iuri Gagarine. 

Pode ver aqui:

Memória asiática


Em 1976, fui colocado na “repartição” da África, Ásia e Oceania, da direção-geral dos Negócios Económicos do MNE. 

Ali nos chegavam então, na “mala diplomática” quinzenal, oriundos do nosso consulado-geral de Hong Kong, uns “ofícios” que traziam, em anexo agrafado, recortes de um importante jornal do enclave, o “South China Morning Post”, dedicados a temas económicos.

Líamos aquilo e davamos-lhes, também através de ofícios que tinham de ser assinados pelo nosso diretor-geral, o destino adequado. Os recortes seguiam para os “ministérios sectoriais” (é assim que, nas Necessidades, se tratava, com óbvia sobranceria, o “resto” da nossa Administração Pública - e espero que este bom hábito se não tenha perdido), que o “despacho” do chefe de repartição (tivemos um chefe que “despachava” a lápis, confessando que era para poder emendar mais tarde, se se enganasse...) ou o nosso jovem bom senso determinasse.

Os ofícios de Hong Kong eram assinados por Francisco Manuel dos Reis Caldeira, o cônsul-geral, nome dactilografado no fundo da página, a que se sobrepunha uma assinatura que sempre qualifiquei de “gesticulada”, porque alguns dos extremos do grafismo manuscrito subiam pelo teor do texto, personalizando-o de uma forma que era considerada ímpar na casa. 

Um dia, nesse idos da segunda metade dos anos 70, entrou-nos na sala uma figura baixa, de cabeça levantada, olhar grave, na casa dos quarenta, com uma postura bem afirmativa. Deu dois passos, estacou e sob a atenção coletiva, olhou para o fundo, para a secretária que ficava entre as duas janelas que davam para o pátio central do palácio das Necessidades e, apontando, disse, com voz forte, ao funcionário que aí tomava assento: “Esse lugar já foi meu!”. 

O jovem diplomata que aí oficiava - que, por acaso, era eu - percebeu que estava perante um colega mais velho que ali vinha em missão de memória saudosa. E, porque as regras então eram outras, levantou-se e saudou-o. 

O Reis Caldeira, porque é dele que estamos a falar, deve ter então cumprimentado o resto da trupe que ocupava o espaço: a única beleza da sala, a Ivone de Carvalho, o Mário Santos, o Ribeiro Gomes (tenho tantas saudades do sorriso aberto do Ribeiro Gomes!) e, com escassa probabilidade, o “Ina” Amaral Neto, que raramente nos dava o privilégio da sua companhia, até que um dia se deixou daquilo e rumou aos negócios, onde sei que é feliz.

A figura do Reis Caldeira, que comigo coincidia (e isso era tudo aquilo em que coincidia) em ser oriundo do ISCSPU (com “U”), chamar-se Francisco Manuel e ter uma mulher assistente social, era a tal pessoa que nos remetia, pela “mala”, os famosos recortes do “South China Morning Post”. Ficámos, finalmente, a conhecê-lo! 

Confesso que perdi de atenção o futuro profissional do Reis Caldeira. O facto de, mais tarde, ter publicado um livro com o título “O mito do saneamento ou a contra-revolução silenciosa”, sobre as intrigas internas do MNE, assinado “Francisco dos Reis Sapim”, acabou, sem surpresas, por não se constituir como um “boost” para o resto do seu percurso profissional.

Hoje, deu-me para recordar o Reis Caldeira, os seus ofícios de Hong Kong, graficamente tão expressivos na sua assinatura, que “capeavam” (que bela que era a linguagem burocrática do antanho) os recortes do “South China Morning Post”.

Mas por que diabo estará este tipo a falar tanto daquele jornal? Ora essa!? Porque acabo de dar uma entrevista que me foi pedida pelo “South China Morning Post”. Se isto não é uma razão, não sei o que será!

Veja a capa


Estou seguro que os amigos brasileiros que aqui me seguem concordarão comigo que o facto da revista Veja publicar uma capa como esta tem um forte significado. E julgo que mais não preciso de dizer.

Presidências europeias - uma realidade mutante


Já foi editado o Anuário Janus 2020/2021

Nele publico um artigo sobre as Presidências da União Europeia, cujo texto pode ser lido aqui.

sexta-feira, abril 16, 2021

O meu candidato

Hesitei em escrever sobre a caricata situação protocolar que envolveu a presidente da Comissão Europeia e o presidente do Conselho Europeu, durante a visita conjunta que fizeram a Ancara. Mas vou fazê-lo, para aproveitar para uma declaração pessoal de interesses.

O incidente é conhecido. Em face da oferta pelo presidente turco de uma única cadeira para a representação da União Europeia que ambos ali titulavam, na reunião que iam ter, restando uns sofás e quiçá umas otomanas suplementares, assistiu-se a um espetáculo pouco dignificante: Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, sentou-se logo ao lado de Erdogan, na cadeira do convidado. Ursula Van Der Leyen, depois de emitir uma interjeição de surpresa, foi obrigada a ir para um sofá, numa posição claramente secundária.

Gostava de começar por uma clarificação: é completamente sem sentido, relevando de uma pura ignorância, a ideia de que, por uma questão de etiqueta e simpatia, Michel deveria ter cedido o lugar a Van Der Leyen, por se tratar de uma senhora. A questão não é essa, longe disso. Se Van Der Leyen se tivesse sentado na cadeira, obrigando Michel a ir para o sofá, o caso era precisamente igual.

A União Europeia, pelo Tratado de Lisboa, criou uma bicefalia no seu topo. Para além da pessoa que preside à Comissão Europeia, foi nessa altura decidido eleger uma personalidade para presidir às reuniões de chefes de Estado e de governo, os Conselhos Europeus, dando uma maior continuidade a essa função, assim evitando a rotação semestral. No fundo, era uma resposta à clássica queixa irónica, feita um dia por Henry Kissinger, que afirmava não saber qual era, afinal, o ”número de telefone” da Europa. Passou a ter dois.

As “vítimas” dessa decisão, tomada pelos “tratantes” do Tratado de Lisboa, foram precisamente os chefes de Estado e governo, que deixaram de presidir a quaisquer reuniões. Ao contrário de Cavaco Silva em 1992, de António Guterres em 2000 e de José Sócrates em 2007, nos dias de hoje António Costa não chefia nenhuma reunião dos seus colegas, durante a presidência portuguesa da União Europeia. É o belga (valão) Charles Michel que, tal como já acontecera com o também belga (mas flamengo) Van Rompoy e o polaco Donald Tusk, cada um por dois anos e meio, renováveis, exerce hoje essa função. 

Como antes referi, ao lado desse presidente do Conselho Europeu existe, como sempre existiu, um presidente da Comissão Europeia, neste caso uma mulher. A regra - repito, isto não tem a menor discussão - é que não existe qualquer hierarquia entre os dois. Por exemplo, quando à União Europeia foi atribuído o Prémio Nobel da Paz, o galardão foi entregue simultaneamente a Durão Barroso, então presidente da Comissão, e a Van Rompoy. A equidade protocolar dos dois é indiscutível. E espero que ninguém se lembre de falar do presidente do Parlamento Europeu, que não é chamado para este assunto.

O que se passou em Ancara representou, por parte de Charles Michel, não um deselegante gesto de descortesia perante uma senhora: foi um gesto político, profundamente errado, ao ter-se arrogado uma preeminência hierárquica sobre a presidente da Comissão Europeia. Alguém vir argumentar com erros de protocolo ou com o desprezo dos turcos pelas mulheres é uma perfeita idiotice. Michel, ao ver a cena montada, com apenas uma cadeira para a União Europeia, deveria, pura e simplesmente, ter-se recusado a ocupar essa mesma cadeira sem que ali fosse colocada outra, perfeitamente idêntica, para Van Der Leyen.

Se Charles Michel já vinha a ser considerado, há bastante tempo, o mais incompetente dos três presidentes permanentes que o Conselho Europeu teve até hoje, a cena de Ancara não lhe trouxe um grão mais de popularidade. Bem pelo contrário: ao titular este erro político afastou as possibilidades, que já eram residuais por razões de equilíbrios partidários, de poder vir a ser reconduzido.

Ora eu, depois de tudo o que atrás disse sobre a incompetência de Michel, gostaria imenso que Charles Michel continuasse no cargo: era ele o meu candidato preferido. Porquê? Não digo. Ou melhor, só digo que é por razões estritamente luso-portuguesas...

quinta-feira, abril 15, 2021

“A Arte da Guerra”


As tensões intracomunidades na Irlanda, o crescendo de preocupações em torno da estabilidade da Ucrânia  e a reiteração do compromisso americano quanto a Israel fazem parte da conversa havida esta semana com António Freitas de Sousa no “A Arte da Guerra”, na plataforma multimedia do “ Económico”.

Pode ver aqui.

quarta-feira, abril 14, 2021

Shirley Williams


”A quem é que interessa que morreu Shirley Williams?” Coloquei a pergunta a mim mesmo, claro, antes de iniciar este texto, na certeza de que haverá gente que por aqui passa que hesitará entre duas questões: “Mas quem será a senhora?”

Outros, mais cruéis, repetirão o que andam a pensar há muito: “Este tipo está a transformar a sua página do Facebook numa espécie de obituário”.

Neste caso, haverá talvez uma terceira e mais sofisticada “raça”, constituída pelos que pensarão: “Vá lá! Depois de ter falado ontem do Soares Martinez, ao menos que se lembre da Shirley Williams!” Tentarei, prometo, fazer ”a long story short”.

A baronesa Williams, porque era isso que ela era até ontem, como “life peer” (membro da Câmara dos Lordes apenas para o período da sua vida, ”nobilitada” pela rainha e não por ter tido avoengos recompensados com um título hereditário por um rei que ajudaram à espadeirada) foi uma figura interessante, embora não de topo, na vida política britânica.

Ministra trabalhista na transição dos anos 60 para 70, em governos de Harold Wilson e James Callaghan, pertenceu sempre à ala mais conservadora. Quando a liderança “labour” se começou a esquerdizar, sob a liderança de Michael Foot, Williams e mais quatro figuras dessa “direita” trabalhista titularam uma cisão, em 1981, e criaram o SDP, o Partido Social-Democrata.

Foram acompanhados por um grupo de outros deputados trabalhistas (e até de um deputado conservador), mas o SDP, esmagado pela bipolarização a que o sistema maioritário britânico quase obriga, acabou por ter um sucesso eleitoral muito inferior à importância mediática que acabaria por ter. Uns anos depois, em 1988, o partido veio a fundir-se com uma formação histórica da política britânica, o Partido Liberal, vindo a criar, em 1988, o Partido Liberal-Democrata.

Vale a pena recordar quem eram os três parceiros de Shirley Williams na aventura cisionista: Roy Jenkins, que tinha sido presidente da Comissão Europeia, David Owen, ex-MNE britânico, e William Rodgers, várias vezes ministro.

De comum, e não era pouco, estas quatro figuras alimentavam um forte europeísmo e opunham-se a uma deriva desarmamentista unilateral que, à época, marcava o debate no Reino Unido e fazia escola no seio do seu trabalhismo mais radical.

O grupo ficou conhecido como o “Bando dos Quatro” (na fotografia). O nome advinha, por graça, de quatro figuras políticas chinesas que haviam tido a falta de senso de conspirar contra o poder conjuntural, o que, lá por Pequim, fez com que a sua esperança média de vida útil tivesse sido reduzida de forma abrupta.

Shirley Williams tornou-se, com os anos, uma figura com frequente presença nas televisões e em debates. Tive o gosto de participar, a seu lado, num painel organizado em Brighton, no final dos anos 90, sobre temas europeus. Pode dizer-se que, em termos dos equilíbrios da vida interna do Partido Trabalhista, acabou por ser uma “blairista” bastante antes do tempo.

Morreu agora, com uns respeitáveis 90 anos.

terça-feira, abril 13, 2021

Aviso sério!


Ler pode causar danos irreparáveis à sua ignorância! 

Martinez


Há quatro anos, no Chiado, tirei esta fotografia. A figura retratada é Pedro Soares Martinez, a olhar a montra lateral da Bertrand.

Martinez foi ministro da Saúde de Salazar e morreu agora, aos 98 anos. Durante muito tempo, via-o, com relativa frequência, a almoçar no Círculo Eça de Queiroz, onde ambos éramos sócios. E vislumbrei-o, várias vezes, em restaurantes.

Martinez foi um académico prestigiado de Direito. Fiel defensor da memória do regime que serviu, monárquico por convicção, foi uma figura polémica na vida universitária portuguesa, ao ter sido responsável por políticas repressivas da atividade associativa dos estudantes. Não veio a ter vida fácil no 25 de abril, mas a democracia passou depois um pano sobre tudo isso, com a generosidade que a ditadura, com a naturalidade que lhe estava nos genes, antes não tivera para com os seus adversários.

Não menos polémica era, igualmente, e durante bastantes anos, a forma como se processava a participação de Soares Martinez nos júris dos concursos de acesso à carreira diplomática. Assumindo que afirmo isto com base em testemunhos que colhi de várias pessoas, cujo critério de apreciação tem um grau de subjetividade que há que ter em conta, era voz corrente nas Necessidades que Martinez conduzia as suas temíveis provas orais de uma forma que lhe permitia detetar a orientação política dos candidatos. E que isso poderá não ter deixado de ter as suas consequências na seleção do pessoal diplomático desse tempo - isto é, repito, durante a ditadura.

Com a morte de Martinez (nascido em 1925), restam apenas três ministros que serviram em governos de Salazar: João Dias Rosas (n. 1921), ministro das Finanças (1968/72), Adriano Moreira (n. 1922), ministro do Ultramar (1961/63), e Mário Júlio de Almeida Costa (n. 1927), ministro da Justiça (1967/73).

Desconfiamento

Por que será que, por esta altura deste novo desconfinamento, não consigo dizer, com um mínimo de convicção, nem sequer intimamente, que “vai ficar tudo bem”? Acho que entrei na fase do “desconfiamento”.

Alô!

Digam-me uma coisa: também lhes acontece, cada vez mais, verem as vossas chamadas telefónicas interrompidas, tendo de as recomeçar? E demorar uma “eternidade” entre o momento em que clicamos o número e o início do som de chanada do outro lado?

É que, se bem me lembro, há não muito tempo, isso raramente ocorria. Alguém tem uma explicação para isto?

“E se todo o mundo é composto de mudança...”

A graça da vida depende muito da capacidade que tenhamos em nos confrontarmos, com naturalidade, com a mudança. Em fins de janeiro, lancei-me num novo e regular trabalho, exigente mas divertido e muito estimulante. Há dias, dei por terminada uma tarefa que, também com regularidade, tinha iniciado há seis anos, que me deu muito prazer, mas que chegou ao seu fim natural. Há menos de um mês, meti-me numa nova e leve “aventura” para a qual fui desafiado e de que estou a gostar bastante. Precisamente no dia de hoje, encerrei formalmente, naquele que foi o fim natural de um ciclo, uma relevante tarefa profissional em que me envolvi, com entusiasmo, há mais de cinco anos. Daqui a poucos dias, vou recomeçar a dar aulas, embora por um tempo limitado, numa universidade, a mesma onde, desde o segundo semestre do ano passado, estou envolvido num projeto de investigação, por sua vez ligado a um programa de televisão onde participo desde o início do último trimestre de 2020. Irei iniciar também, daqui a dias, um ciclo de palestras de formação profissional, cuja preparação me está a dar muito prazer mas, confesso, a obrigar também a um pouco mais de trabalho do que eu tinha imaginado.

Alguém me dizia, há dias: “Ainda me recordo, em 2012, quando dizias que tencionavas não ir fazer “rigorosamente nada”, quando te viesses a reformar, no ano seguinte. E já lá vão mais de oito anos...”

segunda-feira, abril 12, 2021

A honra do Convento


O tempo passa muito rapidamente. Em 2007, eu era embaixador no Brasil. Por cá, numa espécie de paroquial concurso da “Lusovisão”, houve a peregrina ideia de escolher “Os Grandes Portugueses”, por votação telefónica. Lá, do outro lado do Atlântico, chegaram-me ecos dessa disputa, a qual, como estava escrita nas estrelas destes certames, acabou raptada pela política de trincheiras.

Agarrei então na tecla e decidi escrever um artigo para o “Diário de Notícias”, a propósito de Aristides de Sousa Mendes, figura que se havia intrometido na guerra entre as “vedetas” que tinham polarizado a discussão. Só lhes posso dizer que esse gesto me valeu duas cartas e um telefonema, de três antigos colegas, todos escandalizados com o facto de eu ter ousado defender nesse artigo, o cônsul rebelde às orientações do “presidente do Conselho”. (Não me perguntem os nomes desses colegas, que o tempo já levou do mundo dos vivos, tanto mais que, como é amplamente sabido, eu tenho muito má memória para nomes, em especial para alguns que quero ter a caridade de esquecer - e ainda bem para eles!).

Há dois dias, cumpri um sonho: ir ver a casa da família de Sousa Mendes, que morreu quase na miséria. 

Passava por acaso numa estrada, vi a placa Cabanas de Viriato, e dei lá uma “saltada” que me fez ganhar o dia, que até ia triste.

Aqui fica a fotografia dessa casa, que, por muitas décadas, esteve em ruinas e em risco de desaparecer e que hoje, felizmente, está recuperada.

E, já agora, aproveito para reproduzir esse tal meu artigo de 3 de fevereiro de 2007, que tinha o título “A Honra do Convento”:

“A presença de Aristides de Sousa Mendes entre os dez nomes mais votados no concurso Os Grandes Portugueses constituiu para mim, ao mesmo tempo, uma surpresa e uma ironia.

Uma surpresa porque, não obstante já muitos conhecerem a história do diplomata que desobedeceu às suas instruções para obedecer à sua consciência, oferecendo vistos aos refugiados judeus que procuravam o consulado português em Bordéus, não estou certo de que a nossa sociedade tenha já, nos dias de hoje, uma sensibilidade ética tão apurada que a leve a optar espontaneamente pelo seu nome. Por isso, só posso louvar quantos se tenham mobilizado para assegurar o voto na figura honrada de Aristides de Sousa Mendes.

A suprema ironia da sua inclusão nesta lista deriva, naturalmente, do facto de, a seu lado entre "Os Grandes", figurar António de Oliveira Salazar, o chefe do Governo cujas ordens ele não respeitou e que, por essa razão, viria a destruir a sua carreira e a sua vida pessoal.

Dirão alguns que Álvaro Cunhal também figura nessa lista, e foi bem mais perseguido que Sousa Mendes. 

São coisas de natureza diferente: Cunhal foi um líder partidário e simbolizava a outra face da vida política portuguesa.

Salazar e Cunhal foram figuras mediáticas, nomes que recolheram emoções e polarizaram o País. Por isso, cada um a seu modo, foram personalidades com poder e influência, seguidos por legiões de prosélitos. Aparecerem agora votados pela nostalgia destes últimos faz parte das leis da vida.

Não era esse o caso de Aristides de Sousa Mendes. Quantos, no Ministério dos Negócios Estrangeiros de então, esboçaram um gesto para defender o colega, a dignidade da sua atitude, a preservação da sua vida profissional? 

Dir-se-á que o ambiente político não ajudava, que a repressão estava ao voltar de cada esquina. Mas, e na oposição? Quem se lembrou então de Sousa Mendes, quem denunciou os arbítrios a que foi sujeito?

Não é com agrado que constato que a minha geração diplomática, a primeira que entrou para o Palácio das Necessidades depois do 25 de Abril, foi habituada a ouvir sobre Sousa Mendes, quase sempre, palavras pouco simpáticas de colegas mais antigos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. 

Repito: tudo isto, depois do 25 de Abril! Não exagerarei se disser que, com muito poucas e bem honrosas excepções, a opinião largamente maioritária entre os poucos que se manifestavam sobre o tema, que durante anos foi sempre "incómodo" nas conversas nas Necessidades, continuava a ser muito pouco generosa para a memória do colega rebelde, como que prolongando no tempo a condenação da sua decisão de não cumprir quanto lhe fora ordenado pelo poder instituído e assistindo, com desagrado, à valorização pública desse dissídio. E isto era tão válido para quem o tinha conhecido como para membros de gerações posteriores, que dele só haviam ouvido falar.

Recordo bem que, quando a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses criou, ao tempo de uma direcção de que fiz parte, um prémio a que decidiu dar o nome de Aristides de Sousa Mendes, vozes houve que, discreta mas significativamente, tentaram que ele viesse a ser titulado, nos anos futuros, por figuras diferentes da carreira diplomática. A frontal oposição de alguns de nós impediu que tal acontecesse. É que já estávamos a imaginar o que por aí viria em matéria de sugestões, para "compensar" o primeiro nome escolhido...

Há que reconhecer que, se não fosse a acção empenhada da sua família e da comunidade judaica internacional, Aristides de Sousa Mendes permaneceria, para sempre, na galeria dos nossos heróis desconhecidos. Portugal acordou muito tarde para a importância desta figura. Mas, pelo menos, acordou. 

E talvez o surgimento do seu nome entre Os Grandes Portugueses possa significar que há que não perder completamente a esperança de que, na memória coletiva do País, possa vir a sobreviver alguma dimensão ética, ao lado dos clichés politicamente corretos da nossa História e das notas caricatas dos radicalismos contemporâneos de sinal contrário.

Um tanto mais corporativamente, eu diria que fica também salva, desta forma, a honra do convento de Nossa Senhora das Necessidades.“

domingo, abril 11, 2021

Os amigos do Jorge


Ontem, num cemitério beirão, dei comigo a cantarolar intimamente a canção com que Georges Moustaki homenageou Georges Brassens - o conhecido “Les Amis de Georges”. Não se canta num funeral? Cada um “reza” à sua maneira.

Nos amigos de Jorge Coelho não estariam muitos que se pudessem rever, com rigor, no retrato dos compinchas de Brassens. Mas, descontadas as diferenças entre as gerações, o Jorge e muitos dos seus amigos eram também gente que olhava a vida de frente, sempre com olhos de futuro.

Aqui fica a canção 

Carlos Eurico da Costa (1928-1998)



Carlos Eurico da Costa, ou mesmo só Eurico da Costa, é um nome que, nos dias de hoje, poucas pessoas identificam. Desapareceu desta vida há 23 anos. 

À parte os seus familiares e os poucos contemporâneos das suas relações ainda vivos, bem como uns escassos que têm uma (boa) memória ligada ao jornalismo, a alguma literatura de nicho e à história da publicidade em Portugal, trata-se de uma figura que entrou já numa zona cinzenta de esquecimento. Nada que não aconteça à maioria das pessoas, diga-se. Só que há alguns que o não merecem. Este era disso um caso, como tantos outros haverá.

Por razões próprias, que logo verão, entendi recordá-lo. E fi-lo num artigo (que não é curto, aviso desde já, demora cerca de 13 minutos a ler), que subtitulei de “o surreal realista”. Texto a que alguns leitores habituais deste blogue podem achar graça.

Utilizei para isso uma das mais interesssantes plataformas informativas que por aí anda, "A Mensagem de Lisboa", um espaço de bom gosto e boa gente para o qual tive o privilégio e o gosto de ser convidado a ser colaborador. Aqui fica o link, "à toutes fins utiles". 

Refletir na desordem


Quando o mundo, no final da segunda Guerra Mundial, se organizou institucionalmente em torno das Nações Unidas, ficou criada a ideia, do seu lado ocidental, de que os modelos democráticos, nas suas diversas expressões, a que alguns chamavam liberais, acabariam por funcionar como uma espécie de “benchmark”, para o qual, cedo ou tarde, a maioria dos Estados tenderia a evoluir.

Esta atitude encerrava um evidente paternalismo e a convicção de que a razão estava do lado do Ocidente. E expressou-se na tolerância assumida face a certos regimes de matriz autoritária (como foi o caso da ditadura portuguesa), poupados pela “realpoliik”, como se a sua condução ao redil da ordem democrática fosse apenas uma mera questão de tempo, passado que fosse o seu “estágio” de preparação. O modo como a África e até alguma América Latina foram olhadas era também tributário dessa sobranceria, que satisfazia moralmente os seus titulares, que se assumiam como portadores íntimos da verdade política redentora.

O colapso da União Soviética, com a derrota ideológica e prática do comunismo, a pujança da economia de mercado e a afirmação desta como a ordem natural das coisas, reforçaram a tal ilusão do “fim da História”, ou, para utilizar o “slang” marxista, o termo das contradições antagónicas que bloqueavam o curso da humanidade.

Tudo parecia assim encaminhar o mundo para uma resultante democrática, com modelos mais ou menos diferenciados, num quadro de economia global que se impunha como óbvia e da qual todos acabariam por sair vencedores, tal o impulso ao crescimento que a nova ordem iria necessariamente gerar.

Para o bem e para o mal, a História tem muito mais imaginação do que os homens e, ao voltar da esquina, trouxe as suas surpresas.

A globalização não correu exatamente como o previsto. Claro que gerou imensas vantagens e crescimento, arrastando novas geografias e setores para a economia global, reduzindo a pobreza e oferecendo oportunidades.

Mas, ao contrário do que muitos supunham, essa expansão do mercado não foi acompanhada, em variadas zonas, por uma evolução benévola para fórmulas democráticas de gestão do poder político.

Pelo contrário: em alguns casos, e a China é talvez o exemplo mais flagrante pelo sucesso e pela sua visível importância no cômputo global, o que se verificou foi um modelo de economia de Estado ter colocado, se assim se pode dizer, o aproveitamento das vantagens do mercado ao serviço do poder desse mesmo Estado e do aparelho que o controlava, mantendo a máquina totalitária mais ou menos incólume e, porventura, ainda mais eficaz.

Com isto quer-se significar algo que parece hoje evidente: a prevalência do mercado está longe de poder garantir, só por si, um acréscimo automático de liberdade ao comum dos cidadãos.

Mas o grande veneno, para esse mesmo mundo do mercado, estava ainda por surgir. O que não estava nas contas do lado “de cá”, isto é, das democracias instaladas, era o facto da globalização económica ir, tão rapidamente, gerar no seu seio os “seus descontentes”, de que Stiglitz já falava há duas décadas.

Uma séria desafetação, com reflexos políticos, envolvendo largos setores, face aos resultados obtidos, acabou por transformar-se no outro lado da mesma moeda que tinha gerado o sucesso. É que de fora dele haviam ficado muitos perdedores do processo, apanhados entre a abertura dos mercados que lhes abafou antigas vantagens comparativas e as falências tecnológicas que vieram arruinar o seu modo tradicional de vida produtiva. A esses não lhes valeu a mezinha liberal de virem a usufruir das vantagens transformadoras da “destruição criativa”, que alguns incensaram.

E como às trocas e às deslocalizações de bens e serviços se somou a aceleração da circulação das pessoas e da força de trabalho, com as tensões também identitárias - culturais, religiosas e étnicas - daí resultantes, num magma ainda por cima sujeito a redes digitais sem controlo de inverdades, com mitos e temores a dominarem o espaço público, o cocktail para crises, com pulsões protecionistas e atitudes nada generosas, como se viu nas migrações e refugiados, estava criado.

O caldo de cultura que redundou no Brexit foi um pouco isso, Trump é a resultante fulanizada da expressão deste desespero, os “gillet jaunes” revelam a revolta perante um mundo em que os “proletários”, antigos motores da História, se afastam do desenho que a literatura esquerdista deles alimentou.

O grande risco que a nova (des)ordem mundial comporta é o facto de, com a ascensão de uma China autoritária, somada à multiplicação de modelos de deriva totalitária, um pouco por todo o mundo, se vá espalhando uma nova matriz de legitimidade política, assente na eficácia económica, na resposta simplista a medos e mitos, que coloque os valores da liberdade num grau de alguma relativização. E o principal problema é que esse modelo, absolvido moralmente pelo sucesso económico ou pela sua aceitação demagógica, possa vir um dia a afirmar-se, aos olhos de muitos povos. como uma alternativa equivalente ao seu homólogo democrático.

(Publicado na revista “Prémio - revista de economia, negócios e política”)

sábado, abril 10, 2021

E mais não digo!

Respeitando embora os direitos de defesa de José Sócrates, o facto de ter ficado comprovado um reiterado, clandestino e irregular esquema de “subsidiação” financeira de um PM por um amigo constitui uma inapagável mancha ética na nossa vida democrática. E mais não digo sobre isto.

Ou não?

Quem, no dia de hoje, critica o estado da justiça portuguesa são exatamente as mesmas pessoas que a estariam a aplaudir se acaso as coisas se tivessem passado de outra forma. Ou não?

Piccadilly


O dia em que, merecidamente, o príncipe Filipe derrotou, por ali, décadas do Bovril.



Queijos

Parabéns ao nosso excelente queijo!  Confesso que estou muito curioso sobre o que dirá a imprensa francesa nos próximos dias.