Começou ontem a quarta presidência portuguesa das instituições europeias. Escrevo “instituições europeias” e não “União Europeia” porque, em rigor, a União Europeia só existe desde 1993. E a nossa primeira presidência teve lugar em 1992.
Hoje, amanhã e depois, contarei aqui três histórias, ocorridas em cada uma dessas presidências.
A primeira é da presidência de 1992. Foi nesse agosto, há quase três décadas, na conferência de Londres sobre a ex-Jugoslávia.
À volta de uma longa mesa no Carlton Tower, na Cadogan Place, a dois passos da nossa embaixada, estavam lá quase todos: Slobodan Milošević, o sérvio, Franjo Tudjman, o croata, Alija Izetbegović, o bósnio muçulmano, além de muitos outros, do Montenegro à Macedónia. Pelo corredores, sem assento formal na sala, a cabeleira desalinhada do sérvio bósnio Radovan Karadžić desdobrava-se em conciliábulos. O ambiente quase que fazia lembrar as palavras da canção de Aznavour: ”Ils sont venus, ils sont tous là"...
Do “nosso” lado, também, estavam todos os MNEs dos então “doze“, com Deus Pinheiro a representar a presidência portuguesa, cuja delegação eu integrava, como chefe interino da nossa embaixada em Londres.
Era a Jugoslávia em desagregação e em sangrento conflito que por ali se discutia, por esses dias.
Ninguém pode falar pelos sentimentos dos outros. O meu, porém, sentado na delegação portuguesa, era o de que não havia nenhuns inocentes entre essas figuras, todas elas envolvidas numa luta de ódios ressentidos, de vinganças históricas, de contabilidades mórbidas, procurando desforra de massacres passados, naquilo a que um jornal britânico chamou, à época, as "batalhas dos avós".
As potências exteriores relevantes faziam então ares de neutrais, de apaziguadores, mas, por detrás, iam alimentando ou contemporizando com aqueles que davam garantias de contribuírem para um saldo final favorável aos seus interesses estratégicos.
O mundo multilateral de então, pelas mãos de Boutros-Boutros Gali, secretário-geral da ONU, e de John Major, o primeiro-ministro britânico, que co-presidiam à reunião, tentava o impossível para gerar um acordo formal que pudesse atenuar o que já estava a ferro-e-fogo.
A conferência de Londres foi um fracasso.
À hora de almoço, fomos todos para o Queen Elisabeth II Center, onde os britânicos tentavam compensar com um sofrível "catering" o parco resultado de umas conversas de onde cada um julgava ter saído com uma fatia da vitória.
Eram largas mesas redondas, com "self-service". Coloquei a minha pasta junto de uma cadeira e fui servir-me. Quando voltei, encontrei o lugar ocupado pelo então diretor político do MNE, o embaixador Pedro Ribeiro de Menezes. Com as mãos ocupadas, decidi só ir buscar a pasta no fim do almoço. E fui sentar-me noutra mesa.
Passou uma boa meia hora, comigo à conversa com um parceiro do lado, de um qualquer país. Num certo momento, vi passar junto à minha mesa, em andar apressado, dois ou três figurantes com ar de seguranças, com um tom que se adivinhava de algum alarme. Pensei que fossem atenuar um qualquer conflito, num ambiente político de tensão que só o podia estimular. Vi-os parar junto da mesa onde estava o Pedro, cuja figura alta se destacou então, para, segundos depois, se afastar com alguma pressa.
À volta desse lugar, fez-se então um grande vazio de gente, uma espécie de cordão "sanitário". Do meio desse espaço de segurança, nas mãos de um dos polícias, que vejo eu emergir? A minha velha pasta, rotunda de papeladas, lenta e prudentemente transportada ao longo da sala, por um braço estendido de um agente, à altura da sua cabeça. Toda a sala devia perguntar-se, entre a ansiedade e o temor, sobre o que estaria naquela pasta.
Comprada nos anos 60 na rua da Trindade, no Porto, numa loja logo abaixo do cinema, era do tipo "de engenheiro", com duas bolsas, e tinha-me custado o suor das minhas economias. Estava sempre atulhada de livros e jornais, pesava "toneladas", como as minhas costas bem aprenderam. Já fora preta, agora estava descolorada, os seus fechos eram pré-históricos, mas tinha (e tem) um ar decadente que ainda hoje me encanta. Lembrava-me a mesma pasta que o velho MNE francês, Maurice Schumann, usou, desde o liceu até ao fim da sua vida política.
No silêncio que entretanto se criara, quebrado por sussurros, eu disse alto: "It's mine! That briefcase is mine!".
Dezenas de olhos voltaram-se então para mim, para o imprudente e descuidado proprietário de uma pasta incrivelmente velha, abandonada junto de uma mesa, no meio de uma reunião internacional onde toda a segurança era pouca. Não recordo a cara de Deus Pinheiro, imagino mesmo que nem me olhasse, apenas desejoso que o nome de Portugal não ficasse associado àquele incidente.
Pensava-se que seria uma bomba e, afinal, foi apenas um momento de grande embaraço para mim.