quarta-feira, dezembro 30, 2020

Pela mão do sogro


“Este não é um avião oficial. É meu!” Com um sorriso vaidoso, naquela cara em cujos traços se percebia a proximidade da China, o embaixador do Casaquistão, junto da OSCE, Rahkat Aliev, acolheu assim os seus quatro colegas, idos de Viena, que se tinham deslocado ao seu país, numa viagem que ele próprio fazia questão de acompanhar. Partíamos, nessa manhã de 2004, de Almati para Astana. 

A mim, nesse dia, o primeiro de quatro que iria passar no Casaquistão, ia caber-me fazer, em Astana, a nova capital (a mais de 1000 km da antiga, Almati), uma conferência didática para diplomatas casaques, explicando o que significava o encargo de fazer uma presidência da OSCE, responsabilidade que Portugal tinha tido pouco tempo antes e que o Casaquistão ambicionava fazer. 

Fiquei com alguma inveja pelo facto de, nessa hora, os meus colegas andarem a passear pelos mercados da “Brasília” local. Ainda fui a tempo, contudo, de os acompanhar à torre Bayterek no centro de Astana, no topo da qual, colocando a mão numa reprodução dourada da mão do presidente Nursultan Nazarbaev, se ouve, em todo o esplendor, o hino do país. (Uma experiência, à época, só comparável à que mais tarde iria ter, ao observar a estátua dourada do então ditador do Turquemenistão, Saparmurat Niyazov, a mover-se a acompanhar a luminosidade do sol, na capital Asgabat).

Tudo correu bem, com muito vodka e caviar a acompanhar-nos a todas as refeições, nessa visita ao Casaquistão. Embora fosse, como os outros, uma mera “democradura” (uma democracia que tentava disfarçar uma real ditadura), era talvez, há que reconhecer, o menos mau do países da Ásia Central.

Nós levávamos na agenda um conjunto de questões para colocar às autoridades locais - em matéria de observância das regras democráticas, de Direitos Humanos, de liberdade de imprensa, de proteção das minorias, de respeito pelo Estado de direito, de presos políticos, etc. Os casaques apresentaram-nos, como era de regra, o “mundo ideal” que por ali se disfrutava. A “fact-finding mission” era completada com a audição de opositores e ONG’s. Era tudo quanto podíamos fazer. Tratar-nos muito bem fazia parte da tentativa do governo de fragilizar o rigor do nosso relatório. 

O embaixador casaque, Rahkat Aliev, que nos acompanhava, não era, contudo, uma pessoa qualquer: era genro do presidente do seu país, o eterno Nursultan Nazarbaev. 

E era uma figura muito conhecida no seu país, embora não pelas melhores razões. Tinha sido chefe dos impostos, subdiretor da polícia política e vice-ministro. O tempo veio a provar, sem margem para dúvidas, que estava envolvido em desvio de bens públicos, em negócios fraudulentos, com off-shores à mistura, acumulando uma imensa e ilegítima fortuna. Depois desse tempo em que o cruzei (ainda o tive, um dia, a almoçar em casa, em Viena), andou fugido entre a Áustria, Malta e Chipre, viu o seu estatuto diplomático suspenso, vindo a ser detido por acusações de fraude, raptos, torturas e assassinatos.

Tinha, entretanto, acabado a vida política num dissídio violento com o sogro. Sobre este, viria a publicar um livro que vale pela graça de um belo título (o trocadilho só funciona em inglês): “The Godfather-in-law”, que deu origem a um filme.

Rahkat Aliev viria a morrer, com apenas 53 anos, numa prisão austríaca, num suicídio sobre o qual ainda hoje se mantêm muitas dúvidas.

2 comentários:

Luís Lavoura disse...

Seria bom ter escrito "num alegado suicídio sobre o qual ainda hoje se mantêm muitas dúvidas". É plausível que tenha sido suicidado por alguém.

Flor disse...

"Para bom entendedor meia palavra basta"
Ah! O Senhor Embaixador colocou a sua mão na tal mão dorada? E tocou o hino português ou espanhol? É que às vezes... ;)

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...