quinta-feira, dezembro 17, 2020

Vidas


Soube que morreu, há meses. A morte esteve sempre ligada à sua vida. Dirigia a mais reputada casa funerária da cidade. Era um homem de uma imensa delicadeza, o senhor Euclides.

Por quatro vezes, bem contadas, recordo bem, naquelas horas, fora do dia normal, em que, por regra, as tragédias familiares se consumam, tive com ele as curtas conversas telefónicas que sempre é necessário ter.

Em todas, sem exceção, recordo a sua serenidade, a sua atenção e, em especial, a disponibilidade imediata para nos libertar de tudo o que pudesse pesar sobre o momento, sempre penoso, que atravessávamos. “Não se preocupe. Vou já para aí. Eu trato de tudo.” E tratava, com discrição, educação, sem o menor alarde, com um profissionalismo exemplar.

Quando ia a Vila Real e passava junto da sua loja, e se acaso o vislumbrava no interior, sempre trajando entre o negro e o cinzento, entrava a cumprimentá-lo. Fazia-o com gosto, porque era a retribuição mínima que a sua sempre delicada atenção justificava.

Um dia, perto de um Natal, para lhe dar Boas Festas, assomei à sua porta, ali em frente ao Santoalha, ao lado da montra com figuras religiosas e anúncios de alguns mortos que o meu longo afastamento da cidade me faz já desconhecer.

Eu estava, ao tempo, embaixador em Paris e, ao ver- me, o senhor Euclides saiu de trás do balcão, para cumprimentar-me: “Ainda hoje falei do senhor embaixador a um colega de Portalegre. Ele foi a França buscar um cadáver e queixou-se-me das demoras consulares por lá".

Burocrático, tentando mostrar a utilidade da minha função, recordo-me de ter reagido: “Esteja à vontade, senhor Euclides! Quando lhe puder ser útil, é só dizer!”.

Ao virar a esquina, olhando a montra do ourives e com o Bragança ainda com jornais, dei comigo a pensar: entra-se para uma carreira diplomática com o sonho de fazer parte de grandes negociações internacionais para acabarmos a disponibilizar-nos para agilizar negócios da morte.

Enfim, é a vida!

3 comentários:

- zigoto - disse...

Agradeço a Vª Exª as palavras elogiosas a respeito do meu Pai. Ele nutria pelo Senhor Embaixador uma enorme consideração e estima, e disse-me várias vezes com muito orgulho que Vª Exª não passava por Vila Real sem o cumprimentar. No seu último ano de vida acompanhou quase diariamente este blog e divertia-se imenso com as suas aventuras aquém e além mar.
Os meus cumprimentos.
Agostinho Fernandes

Francisco Seixas da Costa disse...

O seu Pai era um grande senhor. Que aliava todos os seus méritos de excelente profissional a uma atitude de atento respeito pela dor de quem a ele recorria. Era um lídimo representante de uma geração de excelência que está a acabar, no comércio da cidade. Um abraço de pesar para si.

- zigoto - disse...

Muito obrigado.

Parabéns, concidadãos !