quinta-feira, dezembro 24, 2020

O príncipe desencantado


José Cutileiro integrou uma geração dourada a quem a fortuna, num tempo em que isso era privilégio de poucos, proporcionou uma educação no exterior. Essa sorte a pouco o levaria, além do diletante bocejo estrangeirado, não fora o caso de Cutileiro concentrar um conjunto incomum de qualidades intelectuais e de trabalho. O olhar sobre o país onde nasceu, e o modo como melhor ficariam protegidos os seus interesses permanentes, começou bastante moldado pela sua experiência britânica. Essa leitura acabaria, depois, tributária da convicção de que o atlantismo era um determinismo geopolítico, e não apenas uma entre outras vertentes na equação da nossa ação externa. Porque colava bem ao conservadorismo estratégico das Necessidades, isso facilitou a sua imersão no mundo diplomático democrático. De um europeísmo cauteloso, atento às alianças que pudessem compensar as nossas fragilidades, Cutileiro caldeou, nas suas reflexões sobre o mundo global, uma postura realista, mas que, a meu ver, ficou sempre aquém do cinismo. Leiam-se os seus escritos sobre as temáticas internacionais, para se perceber os valores essenciais que eram o referente do seu pensamento. Em Cutileiro, temos sempre de resistir à tentação fácil de confundir o ator político-diplomático com a diversão caricatural das personagens dos Bilhetes de Colares, um mundo onde ele dá corpo, num português de lei, com disfarçada ternura patriótica, à exasperação de quem vê o país ficar na soleira daquilo que ele gostaria que ele fosse.

 

(A “Visão” convidou-me a escrever, para a sua edição desta semana, um perfil do embaixador José Cutileiro, uma das 14 personalidades destacadas pela revista, dentre as figuras desaparecidas em 2020.)

6 comentários:

amadeu moura disse...

Nunca compreendi, nem aceitei que, na sua qualidade de embaixador na Africa do Sul, José Cutileiro, se tenha sentido obrigado a oferecer um jantar oficial em honra do dito pretendente ao trono de Portugal! C'os diabos, desde quando a Republica Portuguesa deve honras ao pretendente monarquico?

Deve ser por atitudes do genero, que o Palacio das Necessidades ainda é visto como uma coutada de punhos de renda.

Flor disse...

Gostei de ler. Vou ver se alguma alma caridosa me manda a Visão por PDF.🙄
De facto não havia necessidade. Bastaria um jantar não-oficial e ponto.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Amadeu Moura. A doutrina protocolar no pós 25 de abril vai no sentido de dar um tratamento informal minimamente diferenciado ao representante da família que reinou em Portugal até 1910, não apenas num gesto para com a História mas tendo em atenção que a ideia monárquica continua a ser simpática a alguns portugueses. Ninguém é mais apegado aos valores republicanos do que eu, mas devo dizer que só não ofereci um almoço ou jantar ao representante da família Bragança porque a ocasião nunca se propiciou. Não vejo assim nada de mais no gesto de José Cutileiro. A “guerrilha” histórica entre a República e a Monarquia acabou há muito e Mário Soares, uma figura cujas credenciais republicanas não oferecem dúvidas, ao tempo em que era presidente da República, esteve no casamento desse representante da família Bragança.

Corsil Mayombe disse...


FELIZ NATAL

JPGarcia disse...

Caro Francisco,

Permita-me uma correcção. Não foi a fortuna que levou José Cutileiro a Inglaterra. Foi a sua inteligência e a sua formação multidisciplinar em Medicina, Arquitectura e Literatura. Seu pai morreu muito cedo e sua mãe, para se sustentar e aos seus filhos, teve um emprego modesto na Cidla e vivia discretamente num pequeno andar da Av. de Roma. Conheci bem a Senhora D. Amália, distinta e reservada, muito parecida com os seus filhos, com o brilho nos olhos que o meu querido Zé também tinha, e o meu querido João também tem.

Quanto ao atlantismo, assisti bem de perto à metamorfose que o levou da América e de Inglaterra a uma defesa da Europa, e que por sua vez o levou a liderar a Europa da Defesa como Secretário-Geral da União da Europa Ocidental. Salvo erro, foi o primeiro português a chefiar uma organização internacional, antes de Barroso, de Gutierres e de Vitorino.

Um abraço

JPGarcia

JPGarcia disse...

Caro Francisco,

A propósito do comentário de Amadeu Moura, lembro-me perfeitamente do meu saudoso e amigo António Valente, à época Assessor diplomático do Presidente Mário Soares, me contar que José Cutileiro lhe telefonou, quando da redacção do convite para a refeição referida, a perguntar como queria o Presidente da República que ele mencionasse o convidado. Depois de pedir instruções, o António respondeu simplesmente: “ Sua Alteza Real”. Depois disso, o Presidente Soares foi ao casamento do pretendente ao trono. Republicano, laico, socialista... e ciente da História de Portugal.

Mais um abraço

JPGarcia

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...