sábado, dezembro 19, 2020

“Long drink”


No ano de 2004, aquele pobre país da Ásia Central, tal como os outros com o nome a acabar em “ão”, mantinha, no essencial, todos os reflexos típicos da época comunista, tal como eu os recordava dos anos 80.

O único hotel disponível, marcado pelas autoridades, era mais do que espartano, com o elevador avariado e uma desfuncionalidade geral irritante. Só os preços tinham um mínimo de "elevação", provavelmente inflacionados para estrangeiros.

Os quartos estavam decorados de uma forma inenarrável, as casas de banho eram dignas de pensões portuguesas do tempo do Estado Novo, as camas suscitavam insuperáveis dúvidas de limpeza. Como era só por uma noite, não valia a pena fazer de tudo aquilo um drama.

Logo que instalado, desci para o "hall", juntando-me aos quatro colegas que comigo vinham de Viena, cúmplices desse périplo de "fact-finding mission", que nos faria fez atravessar todas as cinco Repúblicas da região. É um mundo estranho, com a Rússia a norte, que vai da Turquia às fronteiras com o Irão, o Afeganistão e a China.

Porque, de outras paragens, já trazíamos algumas experiências divertidas, rimo-nos um pouco da situação, sob o olhar patibular de uma matrona mal encarada que, na receção, era um modelo acabado de inospitalidade.

Perguntámos se podiamos beber qualquer coisa, dado faltar ainda algum tempo para o jantar oficial que nos aguardava. Com um gesto displicente, apontou-nos um bar ao fundo da sala. Encostados a um canto do balcão, estavam dois personagens de blusão de couro, manifestamente ali colocados para observar os nossos movimentos.

Os meus colegas pediram refrigerantes, mas eu tive a ideia de querer um vodka tónico, honrando o álcool preferido daquela parte do mundo. Recordo que sempre bebi, ali na Ásia Central, magníficos vodkas!

O barman, que tinha sido educado na mesma escola de simpatia da rececionista, respondeu-me, em macarrónico inglês, que só serviam "long drinks" depois das sete horas. E eram aí seis e picos.

“Long drink”! Achei curioso aquele preciosismo, que ia das “Cuba libre” aos “gin tónico” e a tudo o que diluísse bebidas fortes. Mas o que tem de ser tinha muita força, em especial nesse “Absurdistão” pós-soviético.

Pedi, assim, uma água tónica. Depois, pedi algum gelo. Deixei passar uns minutos. Como eu suspeitara, os dois matulões da segurança bebiam vodka, em pequenos copos. Quando os vi pedir outra dose, disse ao barman que também queria, para mim, uma vodka. Hesitou por um segundo, mas não tinha nenhuma razão para recusar o que acabara de dar aos seguranças. E lá me trouxe um copo com vodka. Dose generosa, para me calar.

Aí, não resisti: com um gesto largo, verti a vodka sobre a água tónica com gelo e exclamei: "Vodka tonic!". Os meus colegas desataram às gargalhadas e tenho a impressão que os seguranças também sorriram. Só temi que o barman tivesse uma Kalashnikov, para poder concretizar o ódio com que me olhava. 

1 comentário:

Flor disse...

"E assim se enganam os tolos🙄" I'm affraid que a gracinha poderia ter-lhe saído cara☺️

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...