segunda-feira, dezembro 21, 2020

O homem a quem roubaram a biblioteca


Não recordo o seu nome e, mesmo se dele me lembrasse, não o diria aqui. Era um homem muito simples, na casa dos 50 anos, que me contava belas histórias da sua infância em João Pessoa, na Paraíba, terra de que sentia saudades que a melhor vida que tinha em São Paulo não conseguia atenuar.

Era o meu motorista habitual quando tinha de me deslocar a São Paulo, ido de Brasília, o que ocorria com alguma frequência, nesses quatro anos em que vivi no Brasil. Era contratado através do Consulado-Geral e eu insistia que fosse sempre o mesmo.

Entre o aeroporto e os compromissos, ou nos intervalos entre eles, eu tinha por invariável hábito passar pela fabulosa Livraria Cultura, na avenida Paulista, de longe o mais completo e bem arrumado lugar de venda de livros em língua portuguesa, em todo o mundo. Por necessidade, por tentação ou por simples vício, nunca de lá saía sem um saco, mais ou menos recheado, de edições brasileiras.

Numa das muitas vezes em que eu acomodava no carro as novas aquisições, esse meu motorista inquiriu:

- O senhor consegue ler todos esses livros que compra?

Expliquei-lhe que não, longe disso!, mas que eu fazia parte de um grupo de pessoas, bastante vulgar, que compra sempre muitos mais livros do que aqueles que alguma vez conseguirá ler, mas que, nem pelo facto de disso ter plena consciência, era capaz de deixar de o fazer. Era uma espécie de "doença", algo dispendiosa mas incurável. Sem surpresa, fiquei com a impressão de não foi sensível a esta minha irónica explicação.

Segundos volvidos, disse-me: 

- Eu também já li um livro.

Aceitei com discreta delicadeza a sua singular revelação e inquiri que livro era.

- Era um livro sobre religião, escrito por um americano, um livro muito bom. Gostava de lê-lo outra vez. Mas emprestei-o a um conhecido que foi para João Pessoa e nunca mais consegui voltar a lê-lo. Já falei com gente de lá, para lho pedirem, mas não mo devolve. Para o ano, quando fôr à Paraíba, vou ter com ele e vai ter de mo devolver. A bem ou a mal.

- Mas há tantos livros! Porque é que não lê outro livro? Por exemplo, a pessoa que escreveu o livro que leu até pode ter escrito outros, tão bons ou melhores do que esse. Sabe o nome da pessoa que escreveu o livro?

- Não sei, não me lembro, mas também não me interessa. Eu só quero voltar a ler esse livro. Não quero ler outros livros.

E calou-se, numa tristeza evidente.

Nunca cheguei a saber como se chamava o livro que o meu simpático motorista brasileiro tinha lido, nem quem era o americano que o tinha escrito. E para sempre senti imensa pena daquele homem, não pelo facto de não querer ler mais livros, mas porque percebo muito bem a angústia de alguém perder aquela que era toda a sua biblioteca.

4 comentários:

Flor disse...

Também já sofri dessa doença. Na minha juventude assim que abria (?) a Feira do Livro lá estava eu a calcorrear por aquelas "vielas" e a passar os olhos pelas capas dos livros e procurar os autores que tinha em mente. Um destes dias andei á procura pelas estantes, do livro de Camus, A Peste que me lembro que comprei naqueles tempos e não encontrei. Alguma prima que o levou e não o devolveu, como é costume. Ainda hoje folheio alguns livros e dou-me conta que a minha mãe os leu. Está lá o marcador que ela usava sempre. Um fio de lã.
Ah! O livro do motorista se calhar era a Bíblia Sagrada ;)

Luís Lavoura disse...

O Francisco deveria ter tido pena do homem, que tão bem o serviu, e deveria ter-se oferecido para lhe comprar um novo exemplar do livro. Desde, claro, que ele lhe soubesse dizer o título e o autor...

Majo Dutra disse...

Muito interessante!

Sorrisos...
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ZeBarreto disse...

Caro Frcancisco

Fiquei arrepiado quando li que esse fulano só tinha lido um livro na vida e não queria ler outro. Um mundo sem livros é como uma casa sem janelas. Esse homem gostava de viver emparedado!

Também já fui comprador compulsivo e, para minha grande pena, tive de me desfazer de centenas de livros em certos episódios da vida, como mudanças de casa, etc. Sempre gostei de estar rodeado de livros e, de vez em quando, tirar um da prateleira e ler umas páginas. Ou, ficando embalado, lê-lo todo. Ou então relê-lo, porque os livros geralmente não se gastam e uma segunda leitura até pode saber melhor.

Não se compra um livro como quem compra um sabonete, que, quando acaba, se compra outro. Isto não deve ser muito fácil de entender para quem não conhece o prazer da leitura. Uma pergunta que certas visitas minhas classicamente me faziam era parecida com essa do motorista. Olhavam intimidados para a minha esplendorosa biblioteca e perguntavam: -- E já os leste todos? A minha resposta variava. Umas vezes dizia que se já os tivesse lido todos teria de comprar muitos mais. Outras vezes respondia que os ia lendo devagar, só quando me apetecia ou quando precisava deles. Outras vezes, para provocar, declarava redondamente que não, nem esperava lê-los, mas que gostava de lhes mirar as lombadas.

Os livros e a leitura nunca disseram nada a muitíssima gente. A televisão e a internet vieram exacerbar essa velha fobia aos livros. Mas também conheço gente de mais idade que jamais leria um texto num écran ou monitor. Para esses, nada pode substituir o prazer de manusear um livro de papel a cheirar a tinta. Eu habituei-me a ler livros no computador e, em muitos casos, até prefiro. Além de que hoje já não teria casa suficientemente grande para albergar os milhares de livros eletrónicos que possuo e que cabem todos arrumadinhos, sem bicho nem pó, num disco invisível. É só pena que já não exibam a lombada, para eu poder fazer inveja às minhas visitas...
Um abraço do
ZB

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...