domingo, dezembro 27, 2020

A vacina


Em tempo de vacinas, lembrei-me desta historieta.

O nome não interessa. Era um homem simpático, uma daquelas figuras que, lá por Vila Real, faziam umas horas de trabalho na Mocidade Portuguesa. Na pior das hipóteses, por subordinação ideológica, na melhor, para acrescentar uns tostões ao seu salário. Alguns, contudo, deviam acumular.

Um dia, para uma das minhas idas à boleia pelo estrangeiro, necessitei de um saco alpino. Alguém me disse que poderia pedir um, de empréstimo, na Mocidade Portuguesa. Fui falar com o tal tipo que, com a maior disponibilidade, se prontificou a emprestar um saco. Combinei um encontro com ele no café Excesior e dali fomos, depois do jantar, a pé, rua Direita adiante, até à Mocidade, onde hoje é o Arquivo Distrital.

Para encher conversa, pelo caminho, disse-lhe que tinha ido, nesse dia, apanhar a vacina contra a cólera, então exigida pela França a quem ia de Portugal. (Dias depois, chegado à fronteira, em Handaye, fui obrigado a engolir dois comprimidos anti-cólera, porque o franceses deviam desconfiar dos nossos boletins de vacinas).

O nosso homem comentou: “Isso da vacina contra a cólera devia ser obrigatório, para toda a gente. É que há cada vez mais malucos!”.

No momento não percebi e perguntei: “Mas o que têm os malucos a ver com a vacina?”.

“Tudo! Ainda há dois dias apanharam um doido em Lordelo, a partir carros, aos berros, cheio de “cólera”. Se a vacina contra a cólera fosse dada a toda a gente, reduzia-se muito a ocupação dos manicómios. Mas deve ser cara!”

O nosso homem estava mesmo convencido de que a cólera tratada pela vacina equivalia à “cólera” que, às vezes, afeta o comportamento de alguns. E que o regime, só por falta de dinheiro é que não reduzia a “cólera” que andava pelo país. Por piedade, e também porque ainda não tinha o saco alpino na mão, guardei um prudente silêncio.

1 comentário:

Flor disse...

E nem valeria a pena desdize-lo pois corria o risco de ficar sem o saco. Será ele o único a ignorar o significado das cóleras? Se calhar não... :)

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...