sábado, dezembro 26, 2020

Foi-se o Zé Aguilar


O Zé era um pouco mais velho do que eu. Começou por morar, lá em Vila Real, na Miguel Bombarda, ao tempo em que eu vivia na Alexandre Herculano, no mesmo grande quarteirão. Com a Teresa e o Jorge (Jói), o Zé era filho do homónimo Dr. José Aguilar, advogado e escritor das horas vagas, fotógrafo de mérito, figura muito marcante da cidade, de quem o Zé terá herdado um pouco o tom de voz - e a profissão, claro. A mim e ao Zé juntaram-nos as iniciativas lúdicas do João Ladislau, que, na nossa juventude, inventava coisas levadas da breca. Organizámos uma volta ao circuito, em bicicleta, com várias metas: à medida que os atletas completavam os percursos, as metas eram desmontadas e iam para outro local, com os ciclistas a aguardar para partir de novo, de Sumol em punho. Com o Zé e o João fiz, de vela na mão, de gatas, o aventuroso percurso das canalizações, então ainda não inauguradas, claro, do novo saneamento da Marginal, insultando os passantes de dentro das gateiras. A família do Zé mudou depois de casa, para o Diogo Cão e viamo-nos menos. Mas ainda nos cruzámos bastante em noites do Club de Vila Real, onde o Zé era o terror do senhor Fernando, como autor de “partidas” memoráveis. Foi depois para a universidade, de onde um dia veio “doutor”, para a cidade, de início para secretário do Governo Civil. Em 1969, comigo do lado da oposição e ele do regime, já marcelista, tivemos ferozes debates à mesa da Gomes, com o João Bé do meu lado, na provocação às autoridades então dominantes. O Zé dizia que eu não conseguia discutir sem ter uma caneta na mão, que fazia rodar no vidro das antigas mesas da Gomes (digo antigas, porque me chegou que as atuais são de mármore). Daí em diante, para o resto da vida, não terá havido uma única vez em que o Zé me encontrasse sem que ele próprio não sacasse, de imediato, de uma caneta, rindo-se, preparando o prolongamento de uma suposta discussão. A verdade é que, depois desse tempo, nunca discutimos muito, embora continuássemos em polos oposto das ideias da política. Mas rimos sempre imenso. Reencontrámo-nos, um dia, aos abraços, na tropa, em Lisboa, onde ambos fomos garbosos oficiais de Ação Psicológica. O Zé regressou, entretanto e em definitivo, a Vila Real. Eu mantive-me, para sempre, a viver fora. Viamo-nos nas férias, trocávamos histórias, graçolas, ressublinhávamos, quase sempre por provocação dele, as nossas continuadas diferenças. Um dia, “contratei-o” como advogado, para um diferendo qualquer, para resolver uma vizinhança incomodativa para a casa do meu pai: ganhámos. A última vez em que falámos, mais longamente, foi à mesa da Pompeia, num final de tarde, numa bela iniciativa do Elísio Neves. Soube então dos seus regulares encontros, pelo mundo, com o José Luis Carneiro, nosso colega de infância, em viagens e aventuras magníficas, que nos contou. A pandemia, disseram-me há pouco, levou-nos agora o Zé, cuja luta contra o vírus eu ia acompanhando, nos últimos dias. Tenho qualquer coisa de fatídico, nos períodos de Natal, lá por Vila Real, no tocante à perda de amigos pessoais: foi nesse tempo que levámos a enterrar o Sérgio Moutinho, o José Araújo, o Manuel Fernandes, o Eduardo Lopes de Silva. Agora, estando fora da cidade, não vou poder acompanhar o Zé até à sua última morada, como os jornalistas sem imaginação costumam descrever os funerais. Deixo ao Jói e a toda a restante família do meu velho amigo Zé Aguilar um abraço, raivoso de impotência e de imenso pesar.

7 comentários:

Luís van Zeller Macedo disse...

Soube há pouco através de um mail do Gonçalinho do triste acontecimento. Também para mim o mês de Dezembro tem sido trágico.Do colega e amigo que o recorda com saudade
Luís van Zeller

peciscas disse...

Conheci o Zé Aguilar.Recordo uma situação grave de saúde com ele muito jovem a passar por um internamento complicado.
Mais um da minha geração que parte. Bolas!

suco disse...

Conheci o Zé Aguilar. Recordo algumas conversas com ele sobre literatura policial de que ele gostava. Lembro também uma situação grave de saúde que o manteve internado durante uns tempos. Estivemos preocupados mas ele safou~se. Desta vez não. Mais um da minha geração que se vai.Bolas!

Flor disse...

O que mais me entristece nesta vida, quando somos jovens isso nunca nos vem á cabeça, é chegarmos a uma certa idade e sabermos que amig@s de juventude, de familiares que nos acompanharam desde que nascemos e que começam a desaparecer. No mesmo rol estão também os nossos vizinhos que nos habituámos a saudar nos elevadores, na rua quando andamos a passear os nossos animais de estimação. Quando eu dizia ao meu Freddie (caniche)-- Olha o Sr.Pinto!!!!! O Freddie corria logo para ele e o Sr.Pinto achava-lhe muita graça e deixava que ele pusesse as patinhas nas pernas. Eu já o conhecia havia 30 anos e nunca tínhamos passado do bom-dia, boa-tarde, como está? Um dia soube que ele tinha sido hospitalizado e daí a dias que tinha partido. Já tinha muita idade!

Os meus sentimentos Senhor Embaixador."É a vida!"

Inês Aguilar disse...

Obrigada pelas maravilhosas palavras e lembranças do meu Pai. Um grande beijinho Inês Aguilar

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Inês. Um beijo de muito pesar para si. Francisco

João Pedro disse...

Uma tristíssima notícia. Era da mesma idade da minha Mãe, Teresa Campos, e daquelas pessoas de que me lembrava desde sempre. Para mais morava no prédio onde em tempos morou a minha Avó, em cujo parque de estacionamento guardava um citroen Méhari laranja que mais tarde levava pra a praia, e que faz parte das minhas memórias de infância. Vai fazer muita falta.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...