quarta-feira, janeiro 24, 2018

Maria Germana Tânger


A poesia - isto é tão discutível como tudo, reconheço - não é algo que seja naturalmente fácil para o gosto comum. Não falo de rimas populares, do versejo vulgar, refiro-me a textos mais sofisticados e complexos, alguns de leitura não unívoca, que é precisamente onde pode residir a sua maior graça. 

Tenho amigos que, embora cultos, são completamente incapazes de ler poesia, não têm paciência para o que consideram ser um modo rebuscado e artificial de escrita. Quando muito, sabem de cor uns versos que os obrigaram a decorar nas seletas - como a “Balada da Neve” - e, de certo modo, fazem disso a caricatura de toda a poesia, o que no fundo lhes disfarça a falta do gosto que não educaram.

Em minha casa, na infância, a poesia fazia frequentemente parte dos nossos serões. O meu pai lia alto - e achava que sabia ler, o que é também um “estilo” para certos amantes da poesia - alguns dos seus poetas preferidos, que, curiosamente, o destino acabou por fazer com que fossem, em regra, muito diferentes dos meus. Mas “dizia” poesia com regularidade, sabendo muitos poemas de cor, habituando-me a ouvir e, por essa via, a também ler poesia. Houve um tempo - a minha fase ”política” de leitor de poesia - em que próprio tinha decorado vários poemas de Manuel Alegre e de alguns poetas do neo-realismo. Nunca agradecerei o suficiente ao meu pai por esse gosto que me transmitiu.

Ainda hoje me faz imensamente bem sentar-me com um livro de poesia na mão. Não é muito frequente isso acontecer, mas, às vezes, passo um bom par de horas saltitando, de livro em livro, “agarrando’ poemas de vários autores. Tenho imensa poesia pelas minhas estantes e tenho vindo a descobrir, um pouco por acaso, alguns poetas contemporâneos, parte deles pouco conhecidos, de muito boa qualidade. Não sou um leitor silencioso, confesso, quase sempre só consigo ler poesia dizendo-a alto, mesmo que só para mim, o que me afasta de alguma poesia de mais difícil sonoridade.

Serve isto para dizer que devo a Maria Germana Tânger, que agora desapareceu, alguma coisa do meu gosto pela poesia, pelo que também lho agradeço, nesta que foi a hora da sua morte. Foi ouvindo-a a ela, nesse outro tempo da nossa televisão, mas também a Manuel Lereno, a João Villaret e, mais tarde, a Mário Viegas e a outros “diseurs” (não apenas portugueses) que ganhei para sempre o gosto por essa forma diferente, mas magnífica, de literatura.

terça-feira, janeiro 23, 2018

Churchill


Ontem, fui ao cinema ver um filme sobre um período da vida de Winston Churchill. Um belo filme, que vivamente recomendo.

Desde a minha adolescência que tenho uma curiosidade quase sem limites pela política interna britânica. Desenvolvi um fascínio pela fantástica história daquele país, uma nação de gente destemida, orgulhosa, com uma maneira muito própria de estar no mundo, que muito nos ajudou e entender a democracia. 

Vivi em Londres anos suficientes para ter podido apreciar aquela gente e o seu particular modo de vida. Posso ter “mixed feelings” sobre os britânicos, posso considerar insensato o Brexit, posso ter mesmo algum desdém face à sua congénita sobranceria, mas reconheço no Reino Unido um protagonista, quase ímpar, da História universal.

Serve isto para dizer que, nesse contexto, nunca fui tocado pelo fascínio que se criou, e tem vindo a ser alimentado, em torno da figura de Winston Churchill. Reconheço o papel polarizador que teve na resistência à agressão nazi, mas, mesmo assim, não consigo encontrar razões para comungar da devoção que, nos dias de hoje, lhe é dedicada por imensa gente. 

Winston Churchill, de que conheço e li o suficiente para saber dele o que julgo necessitar saber, e que faz parte das figuras históricas a quem reconheço uma elevada estatura, é um doutrinário político que me merece muito pouca simpatia. Pelo contrário, é mesmo uma personalidade cuja postura político-ideológica me desagrada e me causa forte rejeição.

Porque penso isto, muito embora saiba que é politicamente correto face aos ventos dominantes pensar o contrário, aqui deixo expressa esta minha posição.

segunda-feira, janeiro 22, 2018

Queixas

Há dois dias, num funeral, naqueles momentos em que sentimos compulsão para dizer uma graça para desanuviar o ambiente, embora ela não possa ser muito forte para não contrastar com o momento de pesar que vivemos, uma amiga que, tal como muito de nós, se sente fortemente desencantada em face das perdas que temos vindo a ter entre os nossos conhecidos, dizia, sorrindo ao de leve: “Devia haver alguém a quem nos pudéssemos queixar desta ceifa...” Uma voz, ao lado, retorquiu: “Sorte têm os que acreditam em algo “lá em cima”, pois têm uma espécie de instância de recurso”. A conversa entre ateus - porque todos eram ateus - prosseguiu com um terceiro interlocutor: “Eh, pá! Mas esses que acreditam nunca se queixam, porque acham sempre que há razões insondáveis...”. Todos concluímos que não há uma ASAE para a morte.

Nouvelle cuisine


Morreu Paul Bocuse, o mais estrelado dos cozinheiros, a figura mais proeminente da “nouvelle cuisine”.

Há semanas, num restaurante, ouvi uma senhora dizer para o empregado: “Traga-me uma dose muito pequena de risotto. Muito pouco...”

O marido, atento, deixou afastar o empregado e comentou: “Foi por haver muitas pessoas como tu que chegámos à “nouvelle cuisine”, àquelas doses microscópicas em pratos imensos...”

É injusto para cozinheiros geniais como Bocuse, mas não deixa de ter graça!

domingo, janeiro 21, 2018

Qual é a pressa?


Há um escândalo - um imenso escândalo! - que ocorre todos os dias nas nossas estradas e auto-estradas, um pouco por todo o país, mas com uma incidência muito particular na zona de Lisboa. E desse escândalo ninguém fala, porque é um tema em que PS, PSD e CDS mantêm um entendimento perfeito, sobre o qual paira um “omertà” de que, estranhamente, a comunicação social é cobardemente cúmplice.

Esse escândalo, esse atentado à segurança de pessoas e bens, é praticado impunemente pelos motoristas dos presidentes da República, dos presidentes da Assembleia da República, dos primeiros-ministros e de quase todos os membros de todos os governos que, por uma qualquer “bula” legal, cuja racionalidade ninguém entende mas também ninguém questiona, se permitem andar pelo país a velocidades astronómicas, às vezes colando o ponteiro aos 200 km/h, pondo em risco a vida de cidadãos inocentes que não têm a menor culpa de que as equipas de “Suas Excelências” não saibam construir as respetivas agendas com tempo e horas. E atrás desses dignitários, lá vão, à mesma velocidade, os carros com chefes de gabinetes, assessores, adjuntos e “tutti quanti” figuras da corte do poder de turno.

No passado, certos membros do governo usavam mesmo, com regularidade, sirenes nos seus carros e há quem se recorde que alguns vinham de Cascais para Lisboa, todas as manhãs, a ultrapassar loucamente em risco contínuo, com um lampião amarelo colocado no tejadilho, qual ambulâncias a caminho das urgências. Hoje, parece que só se usam umas luzes azuis intermitentes, que sentimos no retrovisor quando esses loucos carros oficiais se nos aproximam nas estradas.

Não estou a falar de caravanas oficiais, em determinados momentos de Estado, ou de missões oficiais estrangeiras. Refiro-me a deslocações de rotina, no dia-a-dia, na ida e volta a uma iniciativa a Mortágua ou a Almodôvar ou a A-da-Gorda. Que necessidade há de conduzirem a alta velocidade?

Este é um escândalo de sempre, que tem décadas! Quando há batedores, o risco é menor. Quando não há, os cidadãos inocentes correm perigo (que é de morte!) com essas correrias insensatas e insanas. Há quem argumente que é por uma questão de segurança! Qual quê? Que risco de segurança sofre o Secretário de Estado a Que Isto Chegou? E a nossa segurança não conta? 

Dir-se-á que esses condutores são hábeis e capazes. Ai é? Também eu entendo que posso conduzir com segurança a 160 km/h em imensas retas e, se o fizer, arrisco-me a apanhar pontos na minha carta. Ao cidadão comum, que paga os seus impostos e tem plenitude de direitos, é permitido ser submetido a testes que lhe permitam “acelerar”? Estou convencido que, fora desses motoristas, deve haver muita gente que sabe conduzir igual ou melhor do que eles.

Um dia disse alguém: “Qual é a pressa?” Por que será que ninguém quer falar disto? 

(Já estou a presumir um comentário: “Nos cinco anos e tal que ele esteve no governo também devia andar por aí “a abrir” “. Pois enganam-se! Todos os motoristas que comigo trabalharam tinham estritas instruções para não excederem a velocidade legal.)

sábado, janeiro 20, 2018

Angola e os seus consulados

Será ignorância da nossa imprensa ou será algo mais? 

Ficou-se a saber que, num documento interno de reflexão, o assessor diplomático do presidente angolano suscitou a ideia de encerrar alguns consulados daquele país em Portugal. 

Quererá isto dizer que vai acabar o apoio consular aos largos milhares de angolanos no nosso país? Ou será que o novo poder angolano pode estar a tentar acabar, por essa via, com a dualidade, até agora existente, entre a embaixada angolana em Lisboa e as estruturas de representação consular do país em Portugal? 

Porquê? Porque alguns consideram, e entre esses “alguns” poderá estar o novo poder em Luanda, que é importante colocar sob o claro comando do embaixador angolano em Portugal as atuais estruturas consulares. Como? Por exemplo, criando secções consulares na embaixada angolana em Portugal, ou terceirizando serviços, como muitos países fazem um pouco por todo o mundo.

Será assim tão difícil de entender isto ou dá grande jeito, a um jornalismo especulativo e sensacionalista, criar a ideia de que esta decisão de rearranjo funcional é um ato hostil a Portugal? Alguém procurou o contraditório sobre esta “notícia” ou isso é já um preciosismo de “velho jornalismo”?

Jorge Sampaio


Jorge Sampaio está em excelente forma. A entrevista que hoje concede ao “Expresso” é de uma extrema lucidez, com um imenso equilíbrio e que muito conforta quem, como eu, se sente feliz pelo facto de ter apoiado, desde a primeira hora, a sua candidatura à presidência da República. 

Sampaio é uma grande figura do nosso regime democrático, que desempenhou o cargo em Belém com um inultrapassável sentido de Estado e de dever cívico. 

Cometeu erros? Claro que sim. Mas nunca o fez para acomodar a imensidão de um ego ou para tentar pré-definir o seu lugar na História. 

Sampaio foi e é um grande homem de bem e um das figuras que honra a nossa democracia. Repito: leiam a entrevista!

Para além da língua

Sei que não é muito popular, nos claustros das Necessidades, questionar os equilíbrios, por mais instáveis que sejam, em que se apoiam os principais eixos da política externa portuguesa. Para quem tem a responsabilidade de gerir esse terreno das nossas políticas públicas parece, por vezes, preferível deixar passar o tempo sobre certos problemas recorrentes, numa dupla lógica: a de que há questões que nunca terão uma completa resolução e com as quais temos de habituar-nos a viver, como se de “conflitos de baixa intensidade” se tratasse.

É hoje, contudo, uma evidência que o tradicional triângulo em que assenta a nossa ação externa vive numa forte ebulição. 

No plano transatlântico, o fator Trump introduziu um grau de imprevisibilidade na estabilidade do relacionamento entre os EUA e os parceiros europeus que não tem paralelo desde o fim da Segunda Guerra mundial, para além de agitar outros cenários geopolíticos em termos preocupantes.

O próprio quadro europeu, tendo como pano de fundo externo essa “novidade” americana, surge marcado pela incógnita do Brexit, que leva o processo integrador por águas políticas nunca antes navegadas. Como se isso fosse pouco, surgem agora, com um vigor nunca antes assumido, dessintonias no plano da adesão a princípios democráticos tidos por comuns, os quais, desde logo, enfraquecem o “soft power” de valores que eram o cartão de visita da “velha” Europa comunitária.

Finalmente, a vertente dos países que se expressam em Português vive um período que convoca escasso otimismo e que, para alguns mais céticos, pode pôr mesmo em causa a validade do modelo institucional a que chamamos CPLP. 

Como não podia deixar de ser, as duas primeiras vertentes - transatlântica e europeia - são as que mobilizam, de forma mais ou menos sofisticada, os nossos estrategas, muito embora sejam precisamente aquelas em que a nossa capacidade de influenciar o rumo das coisas é menor. O mundo lusófono, com os seus problemas é, claramente, um tema menos “sexy”, mais paroquial, que não excita os nossos especialistas. E, no entanto, ele é talvez aquele em que, embora com todas as dificuldades, Portugal tem ainda um peso específico com algum significado.

Ora é neste “nosso mundo” que parece verificar-se uma manifesta ausência de estratégia com sentido prospetivo. Vinte anos passados sobre a instituição da CPLP, não se descortina nenhuma ideia, nova e criativa, sobre o formato do modelo criado. Nenhum esforço sério de reflexão sobre a instituição é promovido, nenhum exercício em torno das “lessons learned” é desencadeado. Somos lestos a perorar sobre o Brexit, Trump ou o conflito sunita-shiita, mas nenhum debate substancial sobre o modelo de relacionamento intra-lusófonos é promovido pelos nossos “think tanks”. Pelo contrário, sempre que surge algum discurso em torno do tema, ele reveste-se de tons auto-congratulatórios e quase festivos. 

E, no entanto, os problemas acumulam-se, sobrecarregando as agendas bilaterais, obrigando a uma desmultiplicação de esforços, centrados no casuísmo dos dramas pontuais – sejam eles as crises ciclotímicas na Guiné-Bissau, os traumas recorrentes na relação com Angola, as “desconsiderações” sentidas por Timor-Leste, os diplomas universitários ou os dramas migratórios com o Brasil. 

Sabemos que a heterogeneidade dos componentes do “clube” é imensa, conhecemos as sensibilidades à flor da pele que sempre marcam as relações pós-coloniais, mas são escassos os esforços para multilateralizar as nossas agendas comuns, com propostas ousadas e desafiadoras. Quase parece que tememos que um esforço para revisitar a narrativa em torno do trabalho coletivo possa abrir uma “caixa de Pandora” que, num instante, possa pôr em causa o edifício existente, por muito frágil que ele seja. Será isso? Se for assim, nunca iremos a lado nenhum. 

Por isso me pergunto se Portugal não poderia, com algum Estado “like-minded”, propor uma grande conferência em torno da CPLP, testando a montante algumas ideias criativas que, pelo menos, nos permitam sair do rame-rame pouco prestigiante em que nos deixámos cair.


(Dedico este texto à memória do embaixador António Russo Dias, que ontem desapareceu, e que nunca desistiu de pensar o mundo pós-colonial português.)

sexta-feira, janeiro 19, 2018

Verdade e confiança



Há uma batalha no mundo das notícias que parece não ter sido ainda percebida pela maioria dos meios de comunicação social. Essa batalha vai acabar por ter vencedores e vencidos. É a batalha pela verdade.

Poluída pelos vícios das redes sociais, empurrada para o terreno digital onde ainda não consegue gerir com eficácia a opção pelas assinaturas e os modelos de publicidade, muita da comunicação social deixou-se colonizar, da pior forma, pelo sensacionalismo, na busca dos títulos “espertos”, que convocam o “clickbait” para mostrar as visitas aos anunciantes. 

É impressionante como órgãos sérios e responsáveis parecem, no dia-a-dia, convertidos em adeptos de truques para iludir o leitor. Ao fazê-lo, ao “venderem gato por lebre”, esses meios de comunicação social não se dão conta de que estão a cavar a sua própria sepultura. É que, podendo ganhar algumas vantagens no domínio publicitário imediato, através de um público seduzido pelo sensacionalismo, perdem progressivamente crédito e bom nome. E isso, como é dos livros, dificilmente se volta a recuperar.

Como frequentador de muitos “sites” e espaços digitais, dou comigo a fazer, cada vez mais, uma separação do joio que está no meio do trigo. Porque alguns desses espaços me dão, por sistema, notícias ilusórias, me tentam iludir através de títulos “hábeis” e “leads” enganadores, vou tendendo, quase inconscientemente, a deixá-los de parte. Tenho a sensação de que, a cada dia que passa, crio uma espécie de “lista positiva” daqueles produtores de informação de onde saio com a sensação (porventura ilusória, dirão alguns) de que o produto que me é servido tem uma relação mais forte com a verdade. Estou perfeitamente convicto de que este será o caminho do futuro.

Com efeito, mergulhado num manancial de notícias, o leitor tende a apreciar cada vez mais a informação abalizada, com a apresentação equitativa da posição das partes, mesmo se acompanhada por uma opinião bem identificada, por uma assinatura prestigiada, em que o leitor sabe que pode acreditar, com vista a formar a sua própria opinião. O leitor do futuro - curiosamente, tal como o do passado confiava em que “se já saiu na imprensa é porque é verdade” – vai tender a aceitar que uma coisa é verdadeira se acaso a leu num orgão de comunicação em que, por amostragem cumulativa, se habituou a confiar. E, com toda a probabilidade, na lógica que fazia o sucesso dos “anchors” das tv anglo-saxónicas, vai olhar a cara da pessoa que lhe lê ou escreve as notícias e nela vai encontrar a empatia que credibiliza aquilo que ouve ou lê e em que acredita.

Os orgãos de informação devem entender que o seu sucesso, a prazo, passa por serem reconhecidos como “pessoas de bem”. A confiança vai ser a chave da informação no futuro.

Que bela vida, António!


Caramba, que bela vida, António, aquela que tu tiveste! Ainda há semanas, falávamos de Moçambique, em que tu recordavas uma infância feliz. Essa África que voltaste a reencontrar na Guiné, a esquina da vida onde esbarraste com a tua felicidade, sob o nome de Paula, para sempre. Antes, tinha sido a Lisboa das avenidas que só foram novas quando nós também o éramos, o teu Vává, o Cénico de Direito, a barra do Gambrinus, a Tilt (ainda alguém se lembrará?). E, claro, o “eme-erre” que nunca deixavas cair, face às minhas teimosas ironias. Só te conheci no MNE e, a partir daí, no teu trajeto pelo mundo - um mundo a que um dia ambos demos uma volta completa, para inveja de muitos (essa ninguém nos tira!). Tu, António, eras um viciado em amigos - muitos, diversos, bons e alguns assim-assim - para quem tinhas uma tolerância que, às vezes, me parecia que não rimava com a tua extrema exigência contigo mesmo. Logo tu, que rimavas tão bem. Qualquer dia, prometo que faço uma antologia do “Malta da Rima”, esse efémero e secreto blogue a três em que tu e um amigo que agora está ministro me davam abadas de qualidade poética, que me levaram a sair de cena, cabisbaixo de modéstia. Ainda antes, lembras-te?, falhámos o projeto de criar um site sobre trívia, uma arte nobre a que, por uns anos, nos dedicámos e em que trocámos boas descobertas, pelas livrarias que lá fora cruzávamos. No dia de hoje, acho que já podemos revelar que éramos só nós os dois o irreverente “Luís da Cunha”, o “coletivo de diplomatas” que, no fechar dos anos 80, assinou no “Expresso” dois artigos que criaram fúrias no terceiro andar das Necessidades (o do poder de turno, para quem não saiba). Resta muito, resta quase tudo, restam os livros e os filmes, resta o que foi o Procópio, a “dois”, o imenso Nuno, a festa noturna, o “Espírito de Xabregas”, o poder da tertúlia, as conversas em cacho, pela madrugada dentro e, claro e sempre, a política, onde muitas vezes divergimos no que me parecia acessório. E quantos jantares nossos pelo mundo (Brazzaville, Cantão, Honolulu, Viena, Bangkok, Estrasburgo, Sidney, Maurícias, Paris, Fidji, Serajevo, Los Angeles, sei lá bem onde mais!) e um longo almoço nosso em Lisboa, que guardo para sempre, com o Zé Correia Pinto, ouvindo o Carlos Antunes a pintar as suas romagens clandestinas com o Cunhal pelos idos de Leste. Para o mundo e para a história irónica do nosso grupo, ficará nos anais do YouTube a tua imagem televisiva, o teu colete bege (o Nuno teimou sempre que “lhe cheirava” a Armani, eu achava que era apenas Coronel Tapioca), no tornear elegante do carro em que, lá por Bissau, levaste um dia o Nino Vieira para porto seguro. Agora, só para mim, caro António, ficará para sempre aquela chamada que me fizeste, dois minutos após as badaladas da entrada em 2018. Um telefonema que me alegrou tanto quanto me entristeceu profundamente, porque a tua voz revelava que este ia ser o ano em que a tua bela e extraordinária vida iria ter a longa e eterna pausa.

quinta-feira, janeiro 18, 2018

O Portugal de Leste


Há dois dias, estive em Castelo Branco, num debate promovido pela Caixa Geral de Depósitos, em articulação com a Rádio Renascença, em que foram debatidos os temas da interioridade, trazidos à realidade próxima pela tragédia dos incêndios.

Lembrei-me então de um artigo que escrevi, vai para dois anos, no saudoso “Diário Económico”. Chamava-se “O Portugal de Leste”. Reli-o e acho que representa muito do que continuo a pensar. Aqui o deixo, de novo:

Há dias, numa conversa com alguém com responsabilidades políticas, fui surpreendido pelo raciocínio de que "o interior é hoje um mito", de que "com as acessibilidades agora existentes, em menos de duas horas qualquer pessoa se desloca das zonas de fronteira até ao litoral e vice-versa", pelo que é "um imenso erro estar a despejar dinheiro em áreas onde ninguém quer viver".

A regionalização é um tema divisivo na sociedade portuguesa e eu próprio nunca me senti muito seguro sobre a bondade da criação de um modelo organizativo que implica novas e dispendiosas estruturas, cuja relação custo-eficácia está ainda por estabelecer. Mas tenho de reconhecer que o preço da "não regionalização" é hoje também muito elevado, no que isso significa em termos de expressão da vontade e interesses de certas regiões do país.

Foi A.H. de Oliveira Marques quem fez notar que, já desde antes da criação da nacionalidade, se estabeleceram no território do que é hoje Portugal redes viárias que vieram a favorecer a divisão vertical do país. Com os séculos, foi-se criando cada vez mais no país um "muro", em termos de desenvolvimento, que hoje separa o "Portugal de Leste" do litoral desenvolvido. Um tanto surpreendentemente, a democracia e a integração europeia não contribuíram para contrariar esta realidade, que também não foi alterada, como se esperava, pela cooperação transfronteiriça.

Quando passei pelo governo assisti, com algum espanto, à explanação de propostas estratégicas que tinham no seu centro modelos de desenvolvimento exclusivamente assentes no litoral, na criação de uma espécie de "metrópole" ao longo da costa, concentradora das atenções, dos recursos e, naturalmente, de pessoas. O interior, se não era "só paisagem", não ficava muito longe disso.

O modelo das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional hoje existentes é uma aberração que favorece o prolongamento desta discriminação, que traz consequências trágicas em termos de ordenamento do território.

Que tem a zona industrial do Porto a ver com a desertificação do nordeste transmontano, qual é a similitude de abordagem das questões que afetam Aveiro e Coimbra com as zonas fronteiriças das Beiras? Não estará a região transmontana muito mais próxima, em matéria de interesses, da Beira interior (ou mesmo, no limite, do Alentejo oriental)? Precisamente porque hoje existe uma multiplicidade de evidentes interesses comuns, não seria de estabelecer uma Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Interior Norte e Centro, amputando para tal as duas CCDR dessas áreas?

Mais difícil do que lutar contra interesses instalados é combater mentalidades enquistadas em modelos mentais que alguns se obstinam em não abandonar. É preciso lutar para derrubar o “muro” que separa internamente o nosso território, é necessário lutar pelo "Portugal de Leste" e, de uma vez por todas, caminhar para a unificação do país.“

Sexo e diplomacia


Acabo de ler uma notícia num “site“ francês referindo-se à representante diplomática americana nas Nações Unidas como “l’ambassadrice de Trump”. 

Isso trouxe-me à memória um episódio e dá-me oportunidade de clarificar alguns conceitos básicos.

Um dia, em Paris, no final de um almoço em que estive presente, no período de perguntas e respostas, um secretário de Estado francês dirigiu-se a uma embaixadora de um país da União Europeia tratando-a por “madame l’ambassadrice”. A minha colega foi “aos arames”, interrompeu o governante e disse-lhe que considerava menos correto ser chamada de “ambassadrice”, termo que designa a mulher de um embaixador. “Madame l’ambassadeur” era como exigia ser tratada. O ministro replicou que aquela era a sua língua e que, ao utilizar essa palavra, sabia que estava a utilizar a expressão correta. A embaixadora sentiu-se ofendida e deixou a sala.

O ministro tinha razão... mas a embaixadora também. Na língua francesa, é vulgar designar as figuras femininas que desempenham cargos de chefe de missão diplomática por “ambassadrice”, expressão exatamente idêntica à que se utiliza para as mulheres dos embaixadores. Mas também há muito quem considere que devem utilizar-se palavras diferentes para as duas funções, o que implica não feminizar a palavra “ambassadeur”.

Na língua portuguesa, as coisas são bem mais simples. A mulher do embaixador é designada por “embaixatriz” e a diplomata que exercer a chefia de uma embaixada é designada por “embaixadora”. Não há, contudo, nenhum termo que possa identificar o marido de uma embaixadora ou de um embaixador. E refiro isto porque, desde há semanas, há um embaixador português casado com uma pessoa do mesmo sexo, facto já bastante comum em várias carreiras estrangeiras mas que julgo ser a primeira vez que acontece na diplomacia portuguesa.

quarta-feira, janeiro 17, 2018

O mar das Necessidades


Gosto dos livros de cerca de 128 páginas. Nem são "pesados" demais, neste tempo em que ninguém tem tempo, nem curtos de menos, como uma espécie de sumários desenvolvidos que por aí pululam. Fazem-me lembrar a coleção "Que sais-je?", que acompanhou a minha formação e que, ainda hoje, constitui um elemento permanente de consulta. Pode mesmo ser que, em breve, eu escreva um livro desse tamanho...

Duarte Bué Alves, um diplomata nascido nesse ano glorioso de 1974, teve a ousadia inspirada de escrever sobre um dos mais importantes capítulos do nosso futuro como país: o mar e o modo como o devemos tratar, no quadro da promoção externa dos nossos interesses. Chamou-lhe, quase poeticamente, "Diplomacia Azul", embora esclareça, logo a abrir, que estava a falar de política externa e não do seu modesto braço executor.

O livro é refrescante, como o próprio mar. Não é uma obra académica, muito embora não fuja a esse paradigma referencial, como o assinala o presidente da República na nótula com que honrou o trabalho. Para além de um enquadramento histórico rigoroso e útil, nomeadamente no que respeita à ligação de Portugal ao mar, em especial aos quadros reguladores multilaterais que hoje norteiam o tema, o autor avança pela importantíssima "economia azul", que, com toda a certeza, acabará por ser a alavanca do interesse futuro neste domínio. Aborda também, embora de forma menos consensual, a questão da NATO e do (por ora "falecido") TTIP nesse contexto, tomando posição, como convém ao debate de ideias.

Com total franqueza, gostei muito de ler este livro e gostei, especialmente, de ver um jovem colega (ele devia dar os primeiros passos quando eu já andava pelos claustros da casa) ter a iniciativa de se embrenhar, com a necessária profundidade, numa das áreas a que as Necessidades devem, cada vez mais, prestar a maior atenção. Quanto mais não seja porque muitos estão já a prestar grande (e preocupante) atenção ao mar português.

Que pena tenho que Duarte Bué Alves, que felicito vivamente por este seu trabalho, já não tenha podido contar, com a ajuda, para a construção do seu livro, dessa figura magnífica que foi Mário Ruivo, a maior personalidade que Portugal teve, até hoje, neste domínio, amplamente reconhecida pelo mundo multilateral e que nos deixou faz agora um ano.

Bacalhau das eleições


Alguns atos eleitorais partidários têm sido bons exemplos de como se deve combater a abstenção. 

Ao que consta, para além do “voluntarismo” na inscrição de novos militantes, somado à “generosidade” do pagamento maciço de quotas, há por ali um mundo de empenhamento “cívico”, nomeadamente na “facilitação” dos transportes, que a democracia só pode agradecer. 

Não se pense, porém, que há partidos inocentes no nosso mundo político. A luta pelo poder político tem fronteiras éticas bastante flexíveis...

A propósito disto, lembrei-me que, em casa do meu avô materno, sempre que se servia uma caldeirada de bacalhau, todos se referiam a esse prato como o “bacalhau das eleições”.

Nesse tempo, que era o da minha infância, eu mal sabia o que eram eleições - aliás, a exemplo da maioria dos portugueses, a quem a ditadura apenas prodigalizava uma espécie de “genéricos” falseados do verdadeiro sufrágio.

Mas, se assim era, por que diabo se falava no “bacalhau das eleições”?

Uns anos mais tarde, um tio esclareceu-me. Aparentemente, durante a Primeira República, a luta eleitoral em certas áreas de Trás-os-Montes passava pela atração para a mesa de voto, através da oferta de uma “bacalhauzada” em forma de caldeirada. Os escassos inscritos tinham assim um estímulo mais para se deslocarem para exercer o seu direito cívico. Desde que votassem no candidato que oferecia o “bacalhau das eleições”, bem entendido! 

À época, devia ser barato: não se dizia então que “para quem é, bacalhau basta”?

segunda-feira, janeiro 15, 2018

Estranho


Passei três dias em Arraiolos. Regressei ontem. No regresso a Lisboa, escrevi um post no meu blogue Ponto Come a promover a gastronomia da região. Hoje, Arraiolos foi o epicentro do mais forte sismo no continente nos últimos vinte anos. O que é isto?

domingo, janeiro 14, 2018

Alentejo à mesa



No meu blogue Ponto Come, podem ser lidas algumas sugestões gastronómicas na zona próxima de Arraiolos.

O discurso do Aleijadinho




- Em qual das igrejas será? 

Havia tantas, em Ouro Preto, onde estávamos a chegar, num escuro final de tarde, nesse ano de 2005. O avião que nos trouxera de Brasília a Belo Horizonte tinha-se atrasado três horas. Alugar carro, sair do aeroporto de Confins e, sem GPS, descobrir e fazer a estrada para Ouro Preto não fora tarefa fácil. Era a primeira vez que eu guiava em estradas brasileiras e estava sob uma imensa pressão de tempo. Era já seguro que ia chegar atrasado à cerimónia em que ia receber a “medalha do Aleijadinho”.

Na confusão, deixara na mala as indicações sobre a igreja em que a cerimónia se ia passar. Mas, perguntando aqui e ali, lá conseguimos chegar à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, onde está o túmulo do António Francisco Lisboa, o “Aleijadinho”, o genial artista que é a glória da estatuária do Brasil.

- O Francisco é que sabe, mas eu, no seu lugar, não dizia à Lusa que ia receber a “medalha do Aleijadinho”. Já estou mesmo a ver o modo como alguns dos seus “amigos” no MNE irão explorar o assunto...

O alerta tinha sido do nosso conselheiro cultural na embaixada, o pianista Adriano Jordão, com um largo sorriso. Tinha razão. O Boletim de Informação Diplomática (o célebre BID) iria titular “Medalha do Aleijadinho para Seixas da Costa”... Dei, por isso, instruções ao nosso conselheiro de imprensa, o jornalista Carlos Fino, para fazer um “black out” à notícia. 

Contudo, era para mim uma grande honra ter direito à medalha que, anualmente, a prefeitura de Ouro Preto concedia a uma personalidade. Fora informado de que era a primeira vez que um embaixador de Portugal tinha essa distinção. Isso ocorreria durante a cerimónia solene em que seria celebrada a memória desse artista de exceção (nascido num ano impreciso, entre 1730 e 1738, e que morreu em 1814). Cerimónia para a qual eu estava atrasado...

- O embaixador traz motorista?, perguntara-me a chefe do Cerimonial (nome brasileiro para Protocolo) quando a contactei pelo telefone, de Belo Horizonte, informando do atraso. Deve ter ficado muito surpreendida, quiçá desiludida, quanto lhe disse que “eu era o meu próprio motorista”. 

Mas lá consegui chegar. Estacionei o carro “tant bien que mal” e entrei disparado na igreja, à pinha, com uma plêiade de religiosos no altar, como eu jamais vira. Fui conduzido para junto do Prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo, que recebeu com um sorriso compreensivo as minhas desculpas pelo atraso, que lhe transmiti em voz baixa, para não prejudicar o desenrolar do evento. Mal eu sabia então que o Ângelo se iria converter num grande e eterno amigo.

- Vem muito a tempo. O importante é que já cá está connosco, disse-me, sossegando a minha tensão, fruto do atraso e da condução nervosa.

Ângelo Oswaldo explicou-me a “coreografia” que se iria seguir, depois da missa que estava a decorrer (afinal, “aquilo” era uma missa e eu não me apercebera, pensando ser uma outra cerimónia - fruto da minha rara convivência com os atos religiosos). 

Iria receber, das suas mãos, a “medalha do Aleijadinho” e, caber-me-ia atravessar depois toda a nave da igreja, por entre a multidão, e depositar no túmulo do Aleijadinho uma coroa de flores que, previamente, havíamos encomendado. Depois, regressaria perto do altar e, de um pequeno palanque, faria a minha intervenção.

- Quanto tempo acha que devo falar?, perguntei. 

No avião, tinha lido partes de um livro sobre o Aleijadinho e preparava-me para agradecer a atribuição da medalha, a que somaria umas referências ao artista, cujo pai nascera em Lisboa (dizia-se ser essa a razão do apelido), abrindo-me assim espaço para uma evocação cultural luso-brasileira. Pensei que um improviso de 7 a 10 minutos chegaria.

- Acho que pode falar aí uns 45 minutos..., disse-me o Prefeito.

Na minha profissão, aprendi a ficar facialmente impávido em face da surpresa, mas dessa vez foi-me difícil. Retorqui: “45 minutos?!”. Ângelo Oswaldo reagiu à minha interrogação com uma concessão: “Sendo o orador do ano, pode ir até uma hora...”. 

Eu era o “orador do ano”! Lera mal a carta de convite! 

Os religiosos já estavam a dar por terminada a sua parte na cerimónia, acomodando-se, bem como às suas saias, num longo banco ao lado do altar. Eu iria entrar em cena quase de imediato. O Prefeito tomou então a palavra. Fez o meu elogio, entregou-me a medalha e lá fiz eu, sob o silêncio sepulcral da multidão, a colocação da coroa de flores, regressando ao palanque. 

E aí arranquei, sem um minuto para pensar, para uma peça oratória, de improviso, que, perante o olhar espantado da minha mulher (a quem eu tinha falado nos sete a dez minutos), durou quase uma hora. 

Não me perguntem o que disse, mas aparentemente até terá corrido bem. No final, muitas palmas e um belo jantar oferecido pelo Ângelo Oswaldo no Ópera, um excelente restaurante de Ouro Preto, cidade de que, anos mais tarde, eu viria mesmo a fazer um roteiro gastronómico...

Às vezes, na vida diplomática, os discursos não preparados são os mais bem sucedidos. Aprendi à minha custa!

sábado, janeiro 13, 2018

Um ano com Trump


Há sábados assim...


A propósito de nada


Um amigo generoso dizia-me ontem da sua “admiração” pelo facto de, a propósito do quotidiano, eu conseguir recuperar por aqui muitas histórias. E verídicas. Com efeito, salvo algumas anedotas bem identificáveis, faço questão de tentar relatar apenas episódios que não sejam contestáveis no domínio dos factos, estando aberto a reconhecer o meu erro, no caso disso involuntariamente alguma vez não vir a acontecer. E, as mais das vezes, essas historietas surgem ligadas a algo do dia que passa.

Hoje, em homenagem a esse amigo, vou contar uma história que não vem propósito de nada, que simplesmente me veio à memória, há pouco.

Há muitos anos, no defunto “Diário de Lisboa” (ainda estou em estado de choque pela notícia, de há horas, de que o “Diário de Notícias” pode desaparecer também), li um texto muito curioso do seu jornalista e brilhante escritor Luís de Sttau Monteiro, sobre a sua infância em Londres.

Sttau Monteiro era filho do embaixador português na capital britânica, Armindo Monteiro, um político que Salazar ali colocara para defender a sua linha de neutralidade “habilidosa” e que, com o tempo, veio a afastar-se do ditador (não por dissidência ideológica, porquanto Monteiro continuou a ser um radical conservador da escola corporativa) e a colar-se às posições internacionais britânicas. Mas isso são outros contos.

No seu texto no DL, Sttau Monteiro referiu que, no período ainda anterior à guerra, costumava ir brincar com o filho do embaixador do Reich alemão, Joachim von Ribbentrop, que seria da sua idade, numa casa que o embaixador alemão tinha um pouco fora do centro de Londres. Julgo que nele se recordava de um terraço e da bela vista que daí se disfrutava, tendo notado outros pormenores que agora me escapam.

Um filho de um embaixador ir brincar com os filhos de outro não é facto digno de registo. Já a circunstância desse diplomata ter vindo a ser, anos depois, ministro dos Negócios Estrangeiros de Hitler, co-autor do pacto germano-soviético que também leva o seu nome (e que o nosso PCP então apoiou, num gesto menos glorioso para o seu historial de luta contra o nazi-fascismo) pode tornar o episódio de infância do escritor português um pouco mais interessante.

Li o artigo de Sttau Monteiro nos anos 70 e fiquei com o seu relato na minha memória.

Um dia dos anos 90, quando vivia em Londres, fui convidado para jantar uma noite na casa de uma amiga portuguesa, casada com um cidadão britânico. (Ela não levará, com certeza, a mal que diga aqui o seu nome: Graça Abreu). A casa era, julgo eu, em Dulwich, na zona sul da cidade. Ficou-me inclusivamente na ideia (mas, passado um quarto de século, posso estar errado) que, para chegar ao prédio se passava por uma espécie de portagem paga. 

Durante o jantar, comentámos o belo traço modernista da casa e, a certo passo, o marido da Graça revelou o curioso historial do local: ali tinha vivido Ribbentrop. Foi então que a história de Sttau Monteiro me surgiu, porque se tratava de uma coincidência curiosa. Lá fui ao terraço olhar para Londres, como Sttau Monteiro e o sinistro nazi haviam feito. Devo ter prometido tentar encontrar-lhes o texto do escritor. E não devo ter conseguido, pela certa.

Aqui fica a historieta (com os retratos de Sttau e de Ribbentrop). A propósito de nada. Boa noite.



sexta-feira, janeiro 12, 2018

O futuro do passado


Se acaso fosse simpatizante do PSD, estaria bastante preocupado com o saldo da acrimoniosa campanha eleitoral para a sua liderança, quem quer que amanhã venha a ser o vencedor do sufrágio interno. O voto será dos militantes, mas o confronto foi observado por todo o eleitorado que julgará o partido nas legislativas de 2019. E o tom dos debates não terá contribuído para reforçar o prestígio do universo social-democrata, com vista ao seu putativo regresso ao poder. 

Há muito quem pense que o combate fratricida para a liderança socialista, em 2014, não foi por completo alheio à derrota do PS nas eleições legislativas de 2015, que se acreditava que tinha todas as condições para vencer, depois do austericídio titulado por Passos Coelho. 

Uma coisa me parece evidente: nem Rui Rio nem Santana Lopes sobreviverão a uma eventual derrota nas eleições legislativas de 2019, as quais, recordo, serão antecedidas, meses antes, pelas eleições europeias, onde é tradicional os partidos na oposição terem melhor resultado do que os que ocupam o poder. 2019 será um ano muito exigente para o PSD, em que também se aferirá se há ou não um fenómeno Cristas em crescendo, no mesmo espaço político. Mas, ironicamente, mais do que a sua própria “performance”, será o sucesso ou insucesso de Costa que ditará o seu futuro.

O que se ouviu do PSD nos debates para a escolha de um novo líder foi pouco galvanizante. Rui Rio mostrou um pensamento mais estruturado e realista, com uma genuinidade que às vezes deu ares de ingenuidade. Santana Lopes foi um político “à antiga”, cheio de chavões de estudada assertividade, recorrendo a uma agressividade que, em semanas, destruiu o perfil maduro e senatorial que andou a cultivar na última década. 

Há que reconhecer que a situação económica desfavorece hoje fortemente a oposição: o país cresce, o desemprego desce, as metas europeias são cumpridas, alguns rendimentos são devolvidos. Além disso - apesar dos fogos, de Tancos e de algumas “trapalhadas” – os portugueses mostram nas sondagens não esquecerem quem esteve no poder nos quatro anos anteriores. A tarefa de Rio ou Santana será sempre muito difícil.

Este é um tempo de travessia no deserto para o PSD. Não foi por acaso que a nova geração social-democrata evitou “ir a jogo”, dando assim oportunidade a dois “seniores” que quiseram testar as suas adiadas ambições. No caso de Rio, havia uma espécie de sebastianismo que só o teste da realidade faria aparecer no nevoeiro. Quanto a Santana, nota-se um esforço desesperado para fazer esquecer 2004, em busca de um “remake” regenerador. 

Na esquina seguinte, há gente à espera: Luis Montenegro, Carlos Moedas, Morais Sarmento. Isto vai ter graça.

Interioridade


A segunda vitória de Marcelo


No auge do “infamous” governo de Santana Lopes, em 2004, quando as “trapalhadas” se sucediam na residência oficial de S. Bento (já depois dos “históricos” discurso de posse e da entrada em funções dos secretários de Estado), o então “retirado” Aníbal Cavaco Silva, que fazia tirocínio para regressar à política através de Belém, escreveu, creio que no “Expresso”, um artigo em que falava da “lei de Gresham”, uma teoria económica que defende que uma má moeda, colocada no mercado, afasta qualquer boa moeda. 

Só os ingénuos não entenderam então que Cavaco queria, naquela específica conjuntura, atacar abertamente a “governação” de Santana Lopes, que diariamente divertia, ao mesmo tempo que ridicularizava, o país. Se outro efeito não teve, o artigo de Cavaco (que sempre foi parco em textos, mas que, recordo, subscreveu, em 1982, com Eurico de Melo, outro artigo, também “assassino”, para o governo de Pinto Balsemão, quando fazia a “rodagem” para a Figueira da Foz), a atitude de Cavaco deu então uma preciosa munição mais a Jorge Sampaio para se ver livre de Santana Lopes.

Por que trago isto à colação? Porque achei estranho, nos debates entre Rui Rio e Santana Lopes, quando o primeiro aflorou as “trapalhadas” do efémero e calamitoso governo Santana, não ter visto esgrimida, como argumento de autoridade, uma frase do género: “até Cavaco Silva, com o artigo da “má moeda”, colocou o teu governo em causa”. Ainda pensei que Rio, à época, sendo vice-presidente do PSD, tivesse reagido contra o artigo. Mas verifiquei que não.

Coloquei então a questão a alguns amigos do PSD: por que razão Rio não usou o argumento? Sem exceção, todos coincidiram na interpretação: porque trazer Cavaco Silva a terreiro, no seio dos militantes social-democratas, está longe de ser, nos dias de hoje, um argumento positivo para quem quer que seja... A morte política é muito cruel, em especial se pensarmos nos fantásticos resultados que Cavaco deu ao seu partido.

Esta é assim como que uma segunda vitória de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a memória do mais bem sucedido líder do seu partido originário.

quinta-feira, janeiro 11, 2018

Obrigado, Fernando Pinto!


Tenho uma profunda admiração pelo trabalho feito na TAP por Fernando Pinto e a sua equipa. Se a TAP superou graves crises, que chegaram a ameaçar a sua própria existência, foi muito graças à coragem e ao saber de Fernando Pinto e da sua gente. 

Como embaixador de Portugal, tive o privilégio de acompanhar, e de dar o meu modesto contributo, para aquilo que foi uma extraordinária expansão da ação da TAP no Brasil, feita de visão e grande profissionalismo. 

Como português, sinto que devo um agradecimento muito sincero a Fernando Pinto por tudo quanto fez pela TAP. Já o escrevi uma vez, aquando do processo de privatização. Quero repeti-lo agora, no dia em que se confirma a sua substituição. Ou eu me engano muito ou a TAP e a sua gente ainda vão ter muitas saudades de Fernando Pinto.

O futuro do passado

Hoje, vou ter por aqui o meu momento Maya.

Neste sábado, Rui Rio vai vencer Santana Lopes. E a margem vai ser relativamente confortável. Rio vai fazer alguns gestos para recuperar o “passismo” que esteve com Santana, cooptando alguns dos quadros da nova geração de liberais Católica/Observador. O futuro de Santana passará a ser incerto, porque terá de “disputar” com Passos Coelho a futura liderança da lista para o Parlamento Europeu, tanto mais que, ao contrário do que esteve (quase) para acontecer em 2011, já não haverá agora para ele a perspetiva de uma embaixada multilateral em Paris no fundo do túnel, alternativa que então recusou em face da apelativa Misericórdia (que também já se foi). Rio vai ter de agravar fortemente o discurso contra o governo de António Costa, potenciando qualquer erro deste e a mínima distanciação que vier a detetar no Presidente da República face ao governo, porque essa é a única maneira de se legitimar dentro do partido. Se vier a perder em 2019, hipótese mais provável (a menos que “trapalhadas” imprevisíveis, internas ou na ordem financeira externa venham a ocorrer, o que não é de excluir, em absoluto), “saltará” no dia seguinte às eleições, com Luis Montenegro a suceder-lhe, quase pela certa. Isso limitará muito as chances de Carlos Moedas, que em 2019 sairá da Comissão Europeia (onde será seguramente substituído por Mário Centeno) e cujas hipóteses de vir a suceder a Rio seriam maiores se a derrota do PSD nesse ano fosse titulada por Santana Lopes, porque os “passistas” (e Montenegro) seriam disso co-responsabilizados.

As coisas vão correr assim? Vão, tal como o (meu) Sporting vai ganhar o campeonato (já a “Champions” está um pouco mais difícil) e eu o Euromilhões.

quarta-feira, janeiro 10, 2018

A procuradora-geral


Este país é tão “obviozinho” que até mete pena. 

Quem não gosta da procuradora-geral da República acha que o “espírito da lei” aponta “naturalmente” para um único e não renovável mandato.

Quem gosta da senhora e daquilo que a PGR tem vindo a fazer sob a sua direção é de opinião de que a “letra da lei” é clara e que permite a renovação, a qual deve ser feita.

O resto - isto é, a “reflexão” do pequeno “constitucionalista” que cada português traz dentro de si, quando lhe dá jeito - são apenas truques de cada um a fingir que não tem viés ideológico. E se acaso se tratasse do procurador-geral Pinto Monteiro? Não estavam todos com posições diametralmente opostas? 

Não nos tomem por parvos, está bem?

O conceito



“Conhece o nosso o conceito?” Foi já há alguns anos. Não percebi o que é que a jovem que me recebia no restaurante queria dizer com aquela pergunta. Devo ter feito uma cara de espanto, o que a levou, generosamente, a elucidar-me: “Gostava de lhe explicar o conceito do nosso restaurante”. 

O ”conceito”, na novilíngua restaurantista, é o modelo que marca a forma, necessariamente atípica, como se vai passar a refeição: ou há uma compra do vinho numa loja à parte, ou somos conduzidos através de espaços geográficos diferenciados da casa onde se passam “tempos” restaurativos ou beberricais diferentes, ou a ordem dos pratos segue um ”percurso” que o “chef” desenhou para diferenciar a sua “assinatura” na obra-de-arte que vamos ser convidados a “experienciar” (um vocábulo que abomino) - e a pagar com língua de palmo, claro.

O mundo dos restaurantes com “conceito” anda aí com força. Deve haver quem goste, imagino.

Secretos


A hierarquia de confidencialidade das comunicações que os postos diplomáticos trocam com o Ministério dos Negócios Estrangeiros (que formalmente se designava nas comunicações por “secretaria de Estado”, em memória da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, criada em 1736) tem vários graus, de acordo com a delicadeza daquilo que é transmitido, que igualmente se reflete no âmbito de distribuição da informação.

Um dia, quando estava embaixador em Paris, enviei um “telegrama” (como se designam as comunicações remetidas dos postos, enquanto as recebidas da “secretaria de Estado” se chamavam tradicionalmente “despachos telegráficos”) a que decidi atribuir a classificação de “secreto”. 

As regras diplomáticas aconselham a que deva haver alguma parcimónia no uso da classificação de “secreto” (e muito mais de “muito secreto” e ainda mais de “telegrama pessoal para Sexa Ministro”), mas houve sempre na carreira colegas que usaram e abusaram dessa classificação, talvez porque achavam que assim eram mais lidos...

Já agora, diga-se que todas as comunicações com classificação de confidencialidade são “cifradas” (através de métodos técnicos que variaram muito ao longo do tempo, destinados a dificultar a sua leitura por curiosos exteriores), enquanto que os “telegramas” sem classificação seguem “em ostensivo”, isto é, sem serem sujeitos a “cifra”. Enfim, liturgias da casa...

Mas voltemos ao meu “secreto” de Paris. Já não faço ideia sobre que assunto era. 

Havia a regra de nunca falar do conteúdo de “telegramas” pelo telefone (para não “quebrar a cifra”), mas sempre me pareceu não haver grande inconveniente em telefonar a chamar a atenção para uma determinada comunicação, sem tocar no conteúdo, destacando-a na avalanche de “telegramas” que diariamente inundam a “secretaria de Estado”. Assim, liguei a um colega que tinha um lugar elevado na hierarquia do MNE e disse-lhe, simplesmente: “Chamo a tua atenção para um “secreto” que enviei esta manhã”.

A resposta do meu interlocutor, com quem já não falava há bastante tempo, apanhou-me desprevenido: “Secreto?! Ó meu caro! Eu saí do serviço ativo há quase um mês. Para mim, agora, “secretos” só de porco. Olha! Ainda há dias comi uns excelentes no Galito. Quando é que vens cá a Lisboa para uma incursão alentejana?”

Lembrei-me disto há pouco, ao combinar, com um outro amigo, uma almoçarada nesta quarta-feira, precisamente no Galito. Já por lá não está a Dona Gertrudes, mas sei que o meu amigo Henrique seguramente que nos vai assegurar uma refeição “à maneira”.

terça-feira, janeiro 09, 2018

Angola e nós

O novo presidente angolano pronunciou-se sobre o processo que envolve, na justiça portuguesa, o antigo vice-presidente, Manuel Vicente. Utilizou os seguintes termos: “Não estamos a pedir que ele seja absolvido, que o processo seja arquivado, nós não somos juízes, não temos competência para dizer se o engenheiro Manuel Vicente cometeu ou não cometeu o crime de que é acusado. Isso que fique bem claro”.

Toda a comunicação social portuguesa “agarrou” a questão essencialmente pelo prisma da eventual retaliação angolana no caso do processo não vir a ser transferido para Luanda. É uma questão interessante, relevante, mas do domínio da futurologia especulativa, porque os eventuais passos futuros de Luanda só a Luanda competem.

Penso - mas esta é apenas uma perspetiva pessoal - que a comunicação social portuguesa deveria atentar bem no significado daquelas declarações de João Lourenço. Porque se trata de uma posição nova e da maior importância, porquanto altera, a meu ver muito substancialmente, aquilo que, durante muito tempo, parecia ser a perspetiva de Angola sobre o assunto. Porque, pela primeira vez, fica admitida a hipótese teórica da culpabilidade, lado a lado com a da inocência.

No que a Portugal toca, a questão está agora, exclusivamente, nas mãos do poder judicial - como as autoridades angolanas bem sabem e é importante que a opinião pública portuguesa também disso tenha consciência. Tal como já estava no momento em que a Procuradoria-Geral da República não soube garantir a privacidade de um processo que, até pelo seu melindre, devia ter sido mantido em estrito segredo de justiça, mas foi deixado “sair” para a comunicação social, naquilo que constituiu uma quebra profissional e deontológica tanto mais grave quanto afetou seriamente as nossas relações políticas com um parceiro com a importância de Angola. Se a PGR portuguesa tivesse sabido tratar o processo atempadamente, sempre com o máximo rigor na investigação mas também com todo o sigilo que a lei impõe e o bom senso recomenda, talvez não tivéssemos chegado onde chegámos.

O Estado português é um todo, mas existe uma separação de poderes que faz com que cada instituição responda individualmente à luz das suas competências constitucionais. Nem o presidente da República nem o governo são atores institucionais nesta questão - e Luanda sabe isto bem. Os olhos do país devem assim estar concentrados exclusivamente no sentido de justiça e de responsabilidade do poder judicial português. E de Estado, já agora.

segunda-feira, janeiro 08, 2018

Mário Centeno


Há erros de facto. Há lapsos de avaliação. Há perspetivas de opinião. Há ousadia jornalística. Há luta política.

E também há pura e miserável canalhice. É o caso.

Um forte e solidário abraço ao Mário Centeno.

Diplomacia lírica


O estatuto familiar tinha, no passado, um imenso peso na profissão diplomática. Várias carreiras se fizeram, imerecidamente, à sua sombra. Com a democracia, essa influência, longe de ter desaparecido por completo, atenuou-se bastante e a meritocracia tende hoje a prevalecer na gestão da casa. 

Alguns funcionários mais antigos e conservadores eram, contudo, muito condicionados pela sonoridade de certos apelidos, em especial se a eles tivessem associadas conotações aristocráticas, a que certos setores da casa sempre manifestaram uma patética reverência.

Conta-se uma história passada no pátio de entrada das Necessidades. Numa certa manhã, o embaixador secretário-geral do ministério, ”chefe da carreira”, foi surpreendido, ao sair do carro e preparar-se para se dirigir ao seu gabinete, por um canto lírico, bem alto, que saía de uma das janelas das repartições que davam para o pátio. A cena era, pelo menos, insólita. As Necessidades não eram propriamente S. Carlos e não era curial que uma ária se soltasse do lado dos serviços.

O embaixador, que tinha um ar antipático e carrancudo, que se pretendia intimidatório, perguntou ao Matos, o porteiro que, por décadas, geriu a entrada no MNE, se sabia quem era o “cantor”.

Conhecendo o Matos, creio que terá respondido, com a formalidade que lhe era própria: “Saiba V. Exª, senhor secretário-geral, que se trata do senhor doutor (...)” e disse o nome de um colega, que julgo era detentor de um título nobiliárquico, com um nome de família relativamente sonante.

O embaixador, cuja vontade, no instante, talvez fosse de mandar dar uma “rabecada” ao inconveniente intérprete lírico, rendeu-se aos “powers that be” da sociedade e terá comentado, à medida que se afastava, naquele andar enrolado que era o seu: “Bela voz! Tem uma bela voz!”. E saiu para o claustro.

Nunca ouvi cantar aquele nosso colega, pessoa aliás bem estimável. Mas a menos que seja pela graça do trocadilho, posso presumir que a sua qualidade lírica não deveria ser assaz notável, porque, com a crueldade típica da casa, era conhecido nas Necessidades pelo “tenor maligno”...

domingo, janeiro 07, 2018

Gall


Hoje é o dia em que o “Les sucettes”, talvez mais do que o “Poupée de cire, poupée de son”, vai ser recordado nas rádios e televisões francesas. É que France Gall, neste que é o ano certo para se fazer 70 anos, decidiu partir. E Serge Gainsbourg, lá onde estiver, deve estar com o seu sorriso de sátiro, o mesmo que sempre usava quando interrogado sobre a intencionalidade escondida no genial elogio aos chupa-chupas que decidiu escrever. Recordemos a música aqui.

No dia da morte de Mário Soares


Em 25 de janeiro de 1969, vi, pela primeira vez, Mário Soares. Foi no cemitério dos Prazeres, no funeral de António Sérgio, um ato reprimido pela polícia da ditadura. Soares estava no centro da manifestação sobre a qual a polícia de choque carregou violentamente.

Mário Soares morreu a 7 de janeiro de 2017. Hoje, quase 48 anos depois daquela data (e, por coincidência, 48 anos durou também a maldita ditadura), regresso aos Prazeres para uma homenagem a Mário Soares, no local onde está sepultado.

Ao eventual leitor que esteja em Lisboa e que reconheça que a liberdade e a democracia de que usufrui algo devem a esse homem, que por elas lutou quase até à hora da morte, pediria um pequeno esforço e faço um convite: venha juntar-se a nós, às 16 horas deste domingo, no Cemitério dos Prazeres.

sábado, janeiro 06, 2018

Carlos Heitor Cony


Acabo de saber que morreu Carlos Heitor Cony. Durante todo o tempo em que vivi no Brasil, e muitas vezes depois disso, fui leitor das suas curtas mas “sumarentas” crónicas no “Estadão”. Li, além disso, alguns dos seus livros. Era um magnífico contador de histórias, num português de lei, com humor e ironia culta. Um imenso cronista, na escola de Nelson Rodrigues ou de Luiz Fernando Veríssimo.

Um dia, no Rio de Janeiro, numa das minhas visitas à Academia Brasileira de Letras, fui-lhe apresentado. Ele era um dos 40 "imortais" daquela casa.

Por coincidência, uma semana antes desse encontro, tinha acabado de ler a sua autobiografia, intitulada "Quase memória". Disse-lho. O escritor, com aquele ar benevolente de quem acredita pouco que os diplomatas possam ler muito, retorquiu: "Ah! sim? Espero que tenha gostado..." E passou adiante. Aí eu insisti: "Diga-me uma coisa! Ao ler o livro fiquei com uma curiosidade: quando fala daquela falsa viagem do seu pai a Itália, para enganar os amigos, isso passou-se mesmo assim?". Cony abriu muito os olhos, "viu-me" pela primeira vez e exclamou: "Oh! Mas o embaixador leu mesmo o livro!"

Quem escreve morre “menos”. Deixa a escrita em herança e, como usufrutuários, quem o quiser continuar a ler.

A nossa diplomacia




Gostei de ver o presidente da República e o ministro dos Negócios Estrangeiros pronunciarem-se, em termos altamente elogiosos, há dias, durante o Seminário Diplomático anual do MNE, sobre a carreira diplomática portuguesa. Dizem-me que o primeiro-ministro terá dito basicamente coisas similares. 

Vai para cinco anos que deixei aquela casa, mas fico sempre muito satisfeito quando vejo reconhecida a qualidade do trabalho dos funcionários que integram aquele que é um dos corpos da Administração Pública onde continua a imperar uma elevada cultura de serviço público, com profissionais da maior qualidade, que garantem uma presença prestigiada de Portugal pelo mundo. 

Creio, porém, que o país não dá devida conta da importância que esse corpo de funcionários tem tido na obtenção de muitos dos êxitos nacionais na ordem externa, nos mais variados domínios. É justo, por isso, lembrá-lo.

A crítica invejosa que, demasiadas vezes, atinge a diplomacia portuguesa, fruto de despeitos corporativos e de algum populismo miserabilista, tem os seus cultores em certos setores da comunicação social, raramente aberta a escutar, em contraponto, quantos diariamente beneficiam da ação desse dedicado corpo de funcionários. Porquê? Porque dizer mal é o que “rende”.

Há algumas “ovelhas negras” na carreira diplomática? Há elementos que mostram menos empenhamento e que cometem erros? Claro que sim! Só por milagre isso não aconteceria. Ocorre em todas as profissões. 

Ao longo da vida, fui algumas vezes confrontado com queixas sobre o comportamento pontual de alguns colegas, que, no parecer desses meus interlocutores, não tinham estado à altura daquilo que era legítimo ser-lhes exigido. 

Sem exceção, dizia-lhes: queixem-se! Não em “bocas” para a comunicação social, em notas adjetivadas nas caixas de comentários da redes sociais, na cobardia do anonimato ou com generalizações preconceituosas sobre a profissão. Explicava-lhes que basta uma simples carta, assinada e com factos devidamente assinalados, dirigida a quem de direito. Podem crer que terão uma imensa surpresa: haverá sempre uma resposta e o assunto merecerá a devida atenção. 

É que quem não deve não teme e os diplomatas portugueses competentes e cumpridores, que são a maioria, só agradecem que o trigo seja separado do joio.

sexta-feira, janeiro 05, 2018

Reinventar vontades


O presidente da República convidou-nos a reinventar o país do futuro. Sendo o futuro o lugar onde vamos passar o resto dos nossos dias, convém começar já esse esforço. 

A cruel dualidade que o presidente sublinhou em 2017 foi a prova de que não devemos dar nada por adquirido. Somos um país frágil, marcado por um grave desordenamento sócio-territorial, com uma sociedade civil escassamente autonomizada e um tecido público com uma flagrante impotência para proteger, com eficácia, os interesses de muitos dos cidadãos. 

O fantástico salto que Portugal deu nas últimas décadas, na partilha das vantagens do processo europeu, teve efeitos muito assimétricos no seu tecido social e humano. Há um Portugal perdedor, em termos relativos, no banho de riqueza que mudou a paisagem e confortou os bolsos de muitos portugueses. Mais grave do que isso, não parece existir uma estratégia coletiva para reverter essa tendência desigualizadora. Vivemos com um Estado marcado por um tropismo centralista, que prolonga uma tutela paternalista de Lisboa que, desde há séculos, teima em não ceder.

A tragédia dos fogos revelou que Pedrógão não foi um acidente. A repetição, semanas mais tarde, de ocorrências com gravidade similar foi a prova provada de que estamos perante uma endemia estrutural, que pode facilmente emergir noutro contexto – num sismo, numa epidemia, num novo Entre-os-Rios do nosso desespero. 

Foi também a constatação de que o país das decisões fala sempre de fora para dentro do Portugal mais interior, cuja única voz parece ser sempre a da lamentação. Começa a ser insuportável continuar a viver nesta dualidade, que não só é profundamente injusta como induz ineficácia no desejável processo de coesão nacional. 

Há que encontrar rapidamente um modo de trazer para a esfera da reflexão e da decisão setores que delas estiveram, desde sempre, distantes. Nesse contexto, reinventar o futuro implica, em particular, mobilizar ideias e vertentes de ação que associem os mais jovens a um processo de “devolução” de poderes. As universidades e o mundo empresarial moderno são aliados essenciais para esse esforço.

O presidente tem razão. Mas precisamente porque ganhou autoridade como catalizador da resposta institucional ao sofrimento, tem agora de a utilizar e, aproveitando o novo ciclo do principal partido da oposição, somado a alguma instabilidade que ainda atravessa o governo, deve “chamar os bois pelos nomes” e forçar consensos de regime, ajudado pela imensa e entusiasmada plateia que ganhou pelo país. Deixar Belém com um Portugal mais solidário, mais organizado, com uma estratégia de futuro consensualizada para uma década – esse seria um belo presente de Anos Novos que gostaríamos de ter.


O Sporting, o Porto e o Benfica

Hoje, fui simpaticamente convidado para ir, com um grupo, ver jogar o Sporting com o Arsenal, em Alvalade, no dia 26 de novembro.  O Sportin...