terça-feira, julho 21, 2020

Onde anda a trovoada?



“Anda cá! Chega aqui!”.

Encostado ao muro de pedra da varanda da Casa do Pereiro, em Bornes de Aguiar, do lado do caminho, o meu tio Fernando, o mais novo dos irmãos da minha mãe, disse-me para olhar para o céu, onde raiava uma tempestade das antigas, com uma caloraça, soprada a vento, que, agora imagino, devia anunciar uma chuvada forte para dali a pouco.

Conto isto hoje, com toda a ciência e calma, mas, nessa altura, nos meus seis ou sete anos, estava completamente acagaçado com o ribombar dos trovões, com receio de que um daqueles raios acabasse por se despenhar sobre a casa dos meus avós, nesse início de noite de verão, depois do jantar.

Até a empregada lá de casa eu tinha visto a remoer orações a Santa Bárbara, prenúncio certo de que as coisas poderiam descambar para o torto. Em noites parecidas, na minha casa lá por Vila Real, havia assistido a tudo entrar no breu, com as luzes a irem abaixo, às vezes com estrondo, uma vela a surgir e alguém, mais jeitoso, a ir colocar um filamento metálico no fusível. Nada que sossegasse minimamente uma criança, filho único, nada dada a riscos, temente ao escuro e ao desconhecido! Ao lado do meu tio, contudo, sentia-me protegido, ao ver a sua coragem para enfrentrar os elementos, própria, penso hoje, de quem teve a infância no campo. 

“Vais aprender a que distância está a trovoada”. Achei aquilo estranho. A trovoada andava por ali, saltitava, via-se, mas era um pouco etérea essa ideia de onde ela “estava”.

“Já viste que entre o instante em que vês o relâmpago, a luz, e o momento em que ouves o trovão, o ruído, passa um certo tempo?”. De facto, notara isso, mas nunca ligara muito, eu que nunca tive uma grande curiosidade pelas coisas da natureza.

Ele explicou-me, então: “A luz anda mais rápido do que o som. O raio é praticamente instantâneo. O som é mais “preguiçoso”, anda a 330 metros por segundo. O que é que são 330 metros? Olha, é aí do Fundo de Vila até à estrada para Vila Real. Quer dizer: por cada três segundos que o som demora a chegar, isso significa que a trovoada está a um quilómetro, que é três vezes essa distância. Agora, olha e ouve-a bem!”.

E lá fiquei eu a contar pelos dedos, num ritmo que equiparei a segundos, o tempo que me demorou a ouvir o som correspondente ao raio seguinte que vira no céu. E recebi uma lição de geografia rural: se fosse a dois quilómetros, em linha, a trovoada andaria aí por Rebordochão ou por Vila Meã, se passassem cinco ou seis segundos já estava em Vila Pouca ou, se fosse para norte, depois de Sabroso, ia a caminho do Reigaz e de Oura.

Esta noite, sob a fortíssima trovoada que desabou sob Lisboa, lá estive eu a fazer as minhas contas, trocando o Beato por Eiriz, Odivelas por Nuzedo, Algés por Soutelinho, a outra banda pelo Bragado. E lembrei-me que devo isso ao meu tio Fernando. 

“Mas isso serve-te para alguma coisa?”, perguntará um cético, munido de alguma app que, se calhar, já foi criada para essas medições. Não sei, ou melhor, sei: sei que, entre saber ou não saber coisas, prefiro saber. Que se há-de fazer? Feitios! 

Raios e coriscos


Isto, aqui por Lisboa, na última meia hora, esteve tão animado em matéria de relâmpagos pela noite que, por um instante, dei comigo à espera de ouvir o Carlos Fino a relatar do quarto do hotel Palestina, em Bagdad... E lembrei-me das Lajes!

segunda-feira, julho 20, 2020

Livros para férias

Só para esclarecer: os livros que por aqui tenho mostrado como “para férias” não são, de forma alguma, recomendações: são apenas aquilo que vou (ou tenciono) ler (ou reler). Nada de confusões! 

Dois amigos


Conheço Carlos Costa há bastantes anos. Recordo-me da primeira conversa que tivémos, em Bruxelas, a meu pedido, em casa de João de Vallera, no final de 1995, tinha eu acabado deve entrar para o governo. Ele era então chefe de gabinete do comissário europeu Deus Pinheiro e eu pretendia algum “insight” sobre os equilíbros dentro da Comissão. Ao contrário de alguns outros portugueses que operavam nas instituições comunitárias, que se deliciavam a afirmar a sua “neutralidade” perante os interesses do país de onde eram originários (não me obriguem nunca a usar a memória sobre isto, por favor!), Carlos Costa foi sempre de uma grande lealdade face a Portugal. Acho que já posso revelar que, durante a delicada negociação da Agenda 2000 (o quadro financeiro plurianual entre 2000 e 2007, cuja negociação foi concluída em 1999), o tivémos em “alta voz”, numa chamada telefónica de Bruxelas, com Guterres como interlocutor, num conselho de ministros. Não tenho competência técnica para me pronunciar sobre o seu papel como governador do Banco de Portugal, mas não me custa admitir que possa ter cometido, com a sua equipa, alguns erros na forma e no tempo das suas funções de regulação. Mas tenho a certeza absoluta de ser um homem que sempre agiu, bem ou mal, tendo o interesse do país como referente da sua ação. Envio-lhe um abraço de amizade, neste momento.

Mário Centeno é um conhecimento mais recente. Fizemos dupla num debate, na Universidade Nova de Lisboa, creio que em 2013, sobre o processo de ajustamento da Troika. Nunca antes o tinha visto, embora tivesse lido coisas que publicou. Disseram-me então que era um quadro superior do Banco de Portugal e lembro-me que me impressionou pela simplicidade culta e profunda com que desenvolvia os seus argumentos. Voltámos a cruzar-nos em bastantes outras vezes, a partir de então. Mário Centeno demonstrou, nos anos seguintes, toda a sua capacidade técnica, mas também política, quando soube desenhar, com maestria, a planificação orçamental que permitiu compatibilizar o cumprimento estrito das obrigações europeias a que o Estado português estava comprometido com as medidas de política que permitiram ao PS garantir um apoio parlamentar, ao longo de toda a legislatura. Não foi só o país que apreciou o trabalho de Centeno: os seus colegas do Eurogrupo deram-lhe a presidência desse órgão, o que representou, simultaneamente, um raro reconhecimento e uma forte prova de confiança. A sua ida para o Banco de Portugal não é um prémio: é algo que deveria ser uma coisa óbvia para o país. Por mim, quero enviar-lhe uma saudação de amizade, com votos de muitas felicidades.

Só a medíocre chicana política em que está mergulhado o debate público em Portugal pode justificar a polémica que se criou a propósito da ida de Centeno para o Banco de Portugal. A inveja, o despeito e o horror ao sucesso alheio, que fazem parte da matriz comportamental de muita gente que por aí vegeta, no tempo que vivemos, procuraram criar obstáculos a que o antigo ministro das Finanças viesse a ter o destino a que melhor estava destinado. Ainda bem que António Costa não hesitou nunca nessa decisão. E que o presidente da República o apoiou. 

Ao que se sabe, Carlos Costa e Mário Centeno não são, entre si, os melhores amigos do mundo - e isto é um “understatement”... A mim, dá-me prazer tê-los a ambos como amigos.

A crise em várias perspetivas


Oitavo livro para férias


sábado, julho 18, 2020

Olha a mala!


O pequeno avião da Air Gabon que nos trazia de Libreville para S. Tomé nem sequer vinha cheio, nesse final de fevereiro de 1976. Fazia o percurso, de ida e volta, apenas uma vez por semana. Era a única ligação de S. Tomé ao mundo, nesse tempo em que os voos de Luanda estiveram suspensos, pela guerra junto de Luanda. 

Constava que, como passeio tradicional local, sem muito para fazer, havia pessoas de S. Tomé que se deslocavam de carro, da cidade até ao aeroporto, apenas para ver quem chegava nos raros aviões que pousavam na ilha. Chamavam-lhe mesmo, como acontecia em outras ilhas portuguesas, o “Dia de S. Avião”!

Tinha à minha espera, no aeroporto, um colega mais velho, que conhecia, embora sem intimidade, das férias da minha juventude em Viana do Castelo, João da Rocha Páris. Começou por dizer-me que decidira não me instalar, como eu tinha solicitado por telegrama à embaixada, num dos escassos e pouco confortáveis alojamentos da cidade: oferecia-me a sua própria casa. Também o embaixador, Amândio Pinto, me convidava, na residência, que era ao lado, para tomar todas as refeições do dia (foi, desde essa bela experiência, que passei a “pequenalmoçar” fruta, para o resto da minha vida). Que excelente e amável receção eu estava a ter! 

Aproximou-se de nós, entretanto, um homem, com idade que não deveria ser muito distante da minha, o qual, com um sorriso simpático, me disse: “Sou teu primo, sabias?” A surpresa era grande! Estranhei, confesso, o súbito tratamento por tu, logo apurando que era filho de um primo da minha mãe e neto de um farmacêutico de Vidago, irmão da minha avó, que eu nunca conhecera. Viria a oferecer-me, dias depois, uma bela almoçarada de cozinha africana, em sua casa, com amigos, graças ao hábil dedo culinário da sua mulher.

Entretanto, as malas saiam no tapete rolante. Eram poucas, tal como os passageiros, e a minha “Tauro”, de falsa pele acastanhada, lá estava. Levámo-la no banco de trás do “carocha” preto, que a tropa portuguesa tinha deixado para a embaixada. (Seis anos depois, eu viria a herdar, em Luanda, um carro idêntico, já com buracos de ferrugem no chão, por onde entravam baratas voadoras...)

Ainda em Libreville, a mala parecera-me um pouco mais pesada do que inicialmente a recordava, mas levei isso à conta da livralhada que adquirira em Paris, nos dois dias que por lá passara. A cave da “Joie de Lire” tinha sido irresistível.

Chegados à casa do João, decidi tomar um banho e mudar-me, para irmos jantar a casa do embaixador, uma hora depois. Abri a mala e... fiquei gelado, naquele infernal calor dos trópicos! Aquela não era a minha mala! Nela se destacavam duas “peças” que nunca mais esqueci: uma colcha acetinada, com desenhos coloridos de cavaleiros e castelos, e uns sapatos de homem, de tacão bem alto, de quem gosta de disfarçar a pequenês, de uma cor castanha amelada! 

Dei a trágica novidade ao João e, com a mala garantidamente alheia, que presumimos ter sido trocada na passadeira do aeroporto, logo partimos à desfilada, no “carocha”, para os três únicos locais onde havia hospedagem para quem vinha de fora: a antiga pousada, lá no alto, a conhecida pensão “Benguidoche” (não sei se se escreve assim!) e outro local qualquer. O património hoteleiro local esgotava-se nesse triângulo.

Não, em nenhum lado havia o menor registo de alguém ter levado a minha mala! Comigo desolado, regressámos a casa. Fez-se uma peritagem pelos pertences alheios e descobriu-se que era de alguém, de Guimarães, que aparentemente trabalhava nas plataformas petroliferas em Pointe Noire, no Congo ex-francês. Devia ter estado em Libreville, em trânsito, como eu.

A culpa tinha sido toda minha! “Puxada a fita atrás”, recordava-me de ter forçado a entrada na sala das bagagens, em Libreville, irritado com a lentidão do funcionário, deitando a mão à primeira “Tauro” que encontrei, sem sequer conferir o número da senha. Que não era a da minha mala! E despachara para S. Tomé a sua “sósia”!

No dia seguinte, foi mandado um “rádio” do aeroporto de S. Tomé para o de Libreville, para tentar localizar a minha mala. Mas fui logo avisado, pelo responsável (português) da torre de controlo: “Nunca, no passado, nos responderam a nada...” E assim iria ser dessa vez.

Ali estava agora eu, sem nenhuma roupa para mudar, sem alguns medicamentos (nada de essencial, porque então era novo e alguma coisa haveria na cidade, na farmácia da Dra. Rosa Botica, um apelido bem adequado), sem coisas para combater mosquitos de que, prevenidamente (eu fazia, há muito, minuciosas check-lists, quando viajava, mesmo à boleia), vinha munido. E sem água de colónia, sem gilete para a barba e coisas importantes assim! Estava furioso comigo mesmo! E o meu sobretudo e pullovers, essenciais para regressar por Paris, onde faziam temperaturas negativas? E a montanha de camisas, polos e calças, que caprichara em trazer?

Que fazer?, como se perguntava o clássico soviético que seguramente não perdeu a mala, quando chegou à estação da Finlândia, em Petrogrado, para os mais de dez dias que haviam de mudar o mundo.

“To make a long story short”, sobrevivi, por uma semana, com as mesmas calças e sapatos, pedi de empréstimo ao João alguma roupa interior, polos e camisas, sem grandes preocupações de vestuário protocolar, que a conjuntura não exigia. Bastava, se necessário, o meu blazer!

Sete dias depois, viajei de volta para Libreville. O avião atrasou-se um pouco em S. Tomé, à espera do primeiro-ministro Miguel Trovoada, o que me preocupou, pela possibilidade de poder vir a perder a ligação do voo da “Air Afrique” para França.

Fomos à conversa toda a curta viagem. Ele, que também acumulava com o cargo de ministro da Cooperação, tivera, num desses meus dias de S. Tomé, a imensa e inesperada gentileza de me receber em audiência. Ainda hoje penso, surpreendido: a mim, um jovem “adido de embaixada”, na sua primeira missão de responsabilidade! 

A minha semana tinha, aliás, sido bem proveitosa: além de ter resolvido a greve que mobilizara os professores cooperantes (o mundo lusófono é uma “aldeia”: o responsável santomense pelo setor era um velho amigo da universidade, que tudo facilitou), eu tinha decidido fazer dossiês individualizados sobre a situação de setenta e tal servidores públicos portugueses que tinham ficado, com diferentes estatutos, em S. Tomé. E, também sem que ninguém mo tivesse pedido, tomei notas para um longo relatório sobre as principais carências do país, em termos de cooperação, depois de conversas que também tivera com a presidente da Assembleia Popular, a carismática Alda do Espírito Santo e com quatro outros ministros, todos com uma grande disponibilidade. A semana, mesmo sem mala, tinha acabado por ser de intenso trabalho, mas ainda dei uma saltada a uma praia. Chegado a Lisboa, viria mesmo a receber um louvor do secretário de Estado da Cooperação, Gomes Mota, que muito me agradou! 

Durante a viagem para Libreville, ofereci a Miguel Trovoada um livro já clássico, que tinha acabado de ler: “L’ Afrique Noire est mal partie”, de René Dumont. Não havia, é claro, a menor ironia nessa oferta. Trovoada, a quem, na anterior conversa, eu já cedera um exemplar do “Le Monde”, que trouxera de Paris, ficou encantado. Cruzámo-nos várias vezes, no futuro.

Chegado ao aeroporto de Libreville, “voei” para o depósito das bagagens. E lá estava a minha mala! Com os segundos contados para poder fazer o “check-in” para Paris, expliquei tudo, aceitaram os meus argumentos, deixaram-me trocar as malas e embarquei. Nunca pude confirmar se o nosso compatriota de Guimarães chegou a receber a sua vistosa colcha e os sapatos alteadores, com a “Tauro” gémea da minha. Em África, tudo pode acontecer: até nada!

(ps - dei a este texto o título de uma canção de Celeste Rodrigues, que por cá foi muito famosa, em longínquos tempos idos)

sexta-feira, julho 17, 2020

Uma excelente notícia!


Sexto livro para férias


O sol do Gabão


O aeroporto de Libreville, no Gabão, chamava-se (e chama-se) Léon Mba, nome do primeiro presidente do país. Desembarquei nele, ido de Paris, na madrugada de um dia do final de fevereiro de 1976. A ligação a S. Tomé, que era o meu destino imediato, só teria lugar a meio da tarde. A aerogare era de uma grande simplicidade, sem a menor comodidade, para o tempo que mediava entre os dois voos. Fui tomar o pequeno almoço, num arremedo de restaurante, e comecei a impacientar-me. Teria mesmo de aguentar por ali, cerca de 10 horas?

Era a minha primeira viagem a África. Era também a minha primeira missão oficial. Não era muito curial que um jovem “adido de embaixada”, ingressado há menos de meio ano na diplomacia, fosse encarregado de uma missão numa ex-colónia, recém-independente. Havia por lá uma embaixada, com dois diplomatas, mas o então Ministério da Cooperação (onde eu tinha sido destacado) decidira ser eu era a pessoa que devia ir mediar o conflito que se gerara entre as autoridades santomenses e os primeiros professores cooperantes portugueses, que haviam chegado ao país há escassas semanas. Um dissídio que a embaixada informara não conseguir resolver. A minha missão iria durar uma semana, porque só havia um voo semanal entre Libreville e S. Tomé, num tempo em que as viagens por Luanda, em clima de guerra, estavam suspensas.

Por essa época da minha vida, eu tinha a “mania” de que era um “expert” em viagens. Tinha atravessado à boleia, por duas vezes, durante semanas, vários países europeus, tinha a experiência de uma viagem de férias aos Estados Unidos, o que então não era muito vulgar para a gente da minha geração, tinha já feito bastantes deslocações aéreas ao estrangeiro. Achava, na minha auto-suficiência, que já tinha apanhado os “códigos” para todas as aventuras pelo mundo. Decidi, assim, “ir dar uma volta” a Libreville. Com os diabos! Não devia ser muito diferente de passear em Copenhague ou em Viena! 

Coloquei a minha mala num depósito do aeroporto (o que eu me iria arrepender desse gesto, porque, horas mais tarde, me devolveram uma mala errada, que levei comigo para S. Tomé...) e, com uma pasta negra de couro na mão, atulhada de documentos, depois de trocar francos franceses por francos CFA, aluguei um táxi e fui para a “baixa” de Libreville. 

O motorista ficou intrigado quando lhe pedi para me levar ao “centro” da cidade. “Quel Centre, Monsieur?”. Então ele não sabia onde era o centro? Disse-lhe para ir andando, que lhe diria depois onde parar. À medida que o casario se adensava, percebi que nada daquilo parecia ter um centro, como estava habituado nas cidades que conhecia. Quase todas as lojas que via estavam fechadas. Era, além disso, um domingo! 

A minha confiança, própria de um “maçarico” sem a menor experiência africana, era, no entanto, imensa. A certa altura, decidi mandar parar o carro, paguei ao homem e comecei a caminhar. A manhã ia avançando para o meio-dia, o sol começava a torrar e ali ia eu, de blazer e pasta preta, a passear por uma cidade meio deserta. 

Vou dizer algo politicamente incorreto, mas muito verdadeiro, para quem conhece África: em regra, um branco não se passeia, a pé, sem rumo, vestido à europeia, numa cidade africana. Os locais que comigo se cruzavam, ou quem passava de carro, todos olhavam para mim com uma evidente estupefação. Era uma imagem bizarra, agravada pelo imenso suor que me começava a invadir, sem que descortinasse lugares onde me abrigar ou tomar alguma coisa. 

A partir de uma certa altura, também eu comecei (já não era sem tempo!) a achar a minha aventura um tanto insólita. E a arrepender-me da “brilhante” ideia que tivera de “ir dar uma volta a pé“ por Libreville. De facto, estava a aprender, à minha custa, que nada ali era parecido com Amesterdão ou Zurique.

Perguntei onde podia apanhar um táxi. Faziam-me gestos vagos, apontando-me sítios distantes. Inquiri de algum hotel, onde tudo se tornaria mais fácil, mas as indicações eram no sentido de que estava a quilómetros de um desses oásis. Não sou de empanicar, mas tinha o bom-senso mínimo para começar a preocupar-me. Porém, sempre com um ar grave e decidido, para fingir que me sentia dono da situação, lá ia eu por avenidas poeirentas, em direção a sítio nenhum. E, claro, táxis nem vê-los! 

Até que, quase uma boa meia hora passada, comigo a derreter de calor, com uns “Ray ban” que já escorriam água, avistei um táxi na minha direção. A esperança rapidamente se diluiu: vinha cheio, a abarrotar. Arrisquei e fiz sinal para ele parar. E, para minha surpresa, ele parou. Perguntei onde havia táxis. Nem sei bem o que o motorista respondeu, só sei que, quando mencionei o aeroporto, os olhos se lhe arregalaram: “Pour l’aéroport, Monsieur? Ah! Mais ça c’est une bonne course!” Para grandes males, grandes remédios: disse que lhe pagava a “course” e que ainda lhe dava mais uns tantos francos CFA, se me levasse ao aeroporto.

Foi remédio santo! Os passageiros, uma mulher e uma criança incluídos, foram logo expulsos pelo motorista no táxi. Estavam compreensivelmente furibundos, lançavam-me olhares ameaçadores, ao serem afastados pela arrogância de um branco, que “comprara” o seu transporte. Fiquei orgulhoso? Não fiquei, mas o alívio que senti absolveu, até hoje, bem mais de quatro décadas passadas, o meu sentimento de culpa. 

Nesse dia, aprendi, em vários sentidos, o que a África pode significar de diferente. E que o tal “centro” de Libreville tinha, afinal, muito pouco a ver com as “baixas” que eu conhecia... na Europa e na América do Norte! Nos anos seguintes, visitei muitas cidades africanas, do Magreb à África do Sul, de Angola à contra-costa. E aprendi bem o que é a geografia social urbana dessas terras.

Lembrei-me ontem disto quando, sob um sol muito raro na sua inclemência, cometi a patetice, após o almoço, de arriscar fazer a pé uma caminhada, numa distância que ainda era longa, por uma Lisboa sem sombra de sombras. Por instantes, veio-me à memória aquele sol antigo do Gabão. Sem uma réstea de saudade, confesso.

quinta-feira, julho 16, 2020

António Franco

A lealdade para com os amigos e a elevada exigência para consigo mesmo estavam-lhe coladas à pele. Vivia, sem a menor dificuldade, esse comportamento extremo de rigor, mas sempre num tom nada macambúzio, com um eterno espírito de bonomia, de graça, de alegria de vida. 

Falámos pelo telefone, pela última vez, na passada semana, a minutos de ele partir para o hospital, de onde já não sairia. Estava a comer uma “bacalhauzada”. A mim, sem o menor jeito para estas cenas, saiu-me um qualquer dito tolo. A reação dele foi: “Que diabo de frase é essa?” Dias antes, num prenúncio, tinha-me dito que, sem remorsos, estava a ter a paga dos prazeres e da liberdade de que nunca se privara, ao longo da vida. 

Acabo de saber que morreu António Franco, um colega um pouco mais velho do que eu, a conselho de quem entrei para o Ministério dos Negócios Estrangeiros e que, curiosamente, viria a substituir no seu último posto como embaixador. Conhecemo-nos na parada de Mafra e fomo-nos encontrando a partir daí pela vida, com imensa frequência e regularidade.

Fomos muito amigos. Se posso contar os meus amigos dos dedos de uma mão, o António, sem a menor dúvida, foi um deles. Por décadas, cultivámos imensas cumplicidades, de toda a natureza. Em todos os passos importantes da minha vida, consultei-o sempre antes, pela certeza do seu bom senso e do seu equilíbrio. 

Nos últimos anos, por motivos que para aqui agora não importam, não olhámos da mesma forma para algumas coisas e isso afastou-nos um pouco. Tive muita pena. Porém, nos últimos meses, voltámos a falar bastante. E isso fez-me muito bem.

A morte do António não foi uma surpresa, já era prenunciada por uma mensagem recebida da Ana, há escassas horas. Sinto-me muito triste com a partida do António.

Para a Ana e para os filhos do António, a quem ele se dedicava sem limites, deixo aqui um forte abraço e o nosso imenso pesar.

Engravatar os dias


Acabei de ver mais um Poirot, na “Fox Crime”, e notei o rigor do traje do detetive. Li, em tempos, quase toda a Agatha Christie, mas então não me tinha ficado na memória o requinte do vestuário do atento belga britanizado. Aquilo é que são gravatas!

Fui ontem, de casaco e gravata, ao Chiado. Com a caloraça que tinha estado durante o dia, havia gente que olhava para mim como se eu fosse um ET. Adoro andar de gravata e o local e a cerimónia (chamemos-lhe assim) a que eu ia exigia (e bem!) o seu uso. Nem imaginam o prazer que tive e o bem que me senti! 

Tenho de comprar mais gravatas, concluí. Em minha casa, atrás de duas portas, foram inventados dois armários, cada um com mais de dois metros de altura e uma profundidade que não chega a um palmo, onde jazem, por tons, algumas das muitas centenas de gravatas que fui acumulando na vida. De quando em vez, ofereço umas dezenas, mas cada vez tenho menos a quem. Chego sempre à conclusão de que me faltam ainda alguns padrões essenciais. A gravata é um sinal de civilização. Melhor: é um sinal de que ainda há civilização.

Três histórias de gravatas.

Há não muito tempo, fui com um amigo, diplomata inglês de passagem, jantar a um restaurante em Lisboa. Na televisão, essa praga que marca alguns locais feitos para se comer em descanso (“é por causa do futebol, shôtor!), passava uma cena de um debate parlamentar. O inglês inquiriu: “Não é obrigatório o uso da gravata no vosso parlamento?” Respondi que não. A certa altura, perante um deputado em traje bem simplificado, teve esta frase cruel: ”Aquele parece um sem abrigo!”. Calei-me, por respeito à instituição. E à verdade.

Há uns anos, vai para uma década, saiu na imprensa que, num determinado ministério, tinha sido abolido o uso da gravata (vá lá!, tinha deixado de ser obrigatório). Escassos dias depois da notícia, tive de ir ver o titular desse ministério e, claro, apresentei-me de fato e gravata. E perguntei, à entrada do gabinete: “Não se importa que eu venha de gravata, pois não?”. A senhora ministra não se importou.

Outra vez, em Chipre, nos anos 90, um ministro local contou-me uma história curiosa. Vou repeti-la, com todo o politicamente incorreto que ela comporta: “Durante alguns anos, após a saída dos britânicos, houve no país uma tendência para “abandalhamento” (não sei como ele disse isso, mas era essa a ideia) do vestuário. Estávamos a ficar tão levantinos como a nossa geografia apontava, com as nefastas consequências disso na nossa atitude. Porém, a partir de certa altura, o uso de ar condicionado passou a ser regra nas repartições públicas. As pessoas começaram então a vestir de forma mais cuidadosa, a usar fato e gravata e, quer acreditar?, a nossa atitude oficial mudou, para melhor. Mas, felizmente, não ficámos iguais aos ingleses, “thank god”!”

Dito isto, daqui a uns dias inaugura-se o belo mês em que o meu traje “de rigor”, de manhã à noite, serão jeans ou coisas parecidas, sapatos Timberland com idade para irem para o museu do fabricante e velhas camisas largueironas ou t-shirts. Se, nesse período, me surgir alguém de gravata à frente, estrangulo-o, como fazem na Fox Crime.

(Creio que morre bastante mais gente na Fox Crime do que na pandemia, mas não parece ser de bom gosto dizê-lo. Eu faço-o, porque este é um texto desengravatado, que tem quase tantas mentiras como escassas verdades).

quarta-feira, julho 15, 2020

Severino Cavalcanti


Morreu, no Brasil, Severino Cavalcanti. Tinha 89 anos.

Na história política daquele país, o seu nome não passará de um pé de página. Um dia, durante o segundo mandato de Lula, um grupo de deputados, aproveitando um impasse na eleição para a presidência da Câmara de Deputados, decidiu apresentar o nome de Cavalcanti, um nordestino pernambucano, figura nada notável daquilo a que se chama o “baixo clero” (deputados sem grande projeção, que os britânicos designam por “backbenchers” e os franceses “d’arrière-ban”, mas não “banc”). E a aposta, insólita e divertida, para atrapalhar o governo, saiu vencedora.

Cavalcanti, oriundo do Partido Progressista (PP), um partido “fisiologista” (expressão que se usa no Brasil, significando que mistura a política com interesses económicos e financeiros), com um histórico no jogo de negociação de cargos e que viria a envolver-se em tramóias sucessivas nos anos posteriores, disse logo ao que vinha: pediu, para os seus, um lugar na direção da Petrobrás. Mas não um lugar qualquer. Queria um posto operacional, com poder, “dos de furar poço” de petróleo. A expressão ingressou logo no anedotário político.

Mais tarde, viviam-se os tempos do “mensalão” (mesadas pagas pelo governo Lula a deputados de certos partidos, oriundas de fundos ilegais, para recompensar votos favoráveis ao governo), Cavalcanti viria a ser apanhado numa trafulhice menor, na qual se apurou que um fornecedor da cantina da Câmara de Deputados lhe pagava uma “propina” regular. Naquela fértil imaginação semântica que só os brasileiros têm, o esquema passou a ser designado pelo “mensalinho”...

Cruzei-me com Cavalcanti duas vezes.

A primeira foi quando o fui visitar, para o cumprimentar, pouco tempo após a sua turbulenta e inesperada eleição. A Hebe Guimarães, uma amiga que tinha uma posição proeminente na máquina político-administrativa do parlamento brasileiro (hoje, infelizmente, bastante doente), arranjou-me o encontro.

Nunca, em toda a minha vida oficial, me deparei com um caos análogo àquele que se vivia no gabinete de Cavalcanti. Simultaneamente, tinha ali lugar uma reunião, com vários deputados, àcerca de um diploma legislativo. Em frente, em sofás, assistindo sem limitações àquela “marchandage”, estavam as pessoas que o presidente da Câmara dos deputados iria receber. Por ali estive vários minutos, no segredo “dos deuses” da barganha legislativa em curso. Graças à “cunha” da minha amiga, o embaixador de Portugal passou à frente de todos os que aguardavam.

Cavalcanti, um simplório senhor idoso, estava sentado numa secretária, por detrás de uma meia parede que fazia de uma espécie de biombo. Foi simpático, conversador, falou-me do “Solar dos Presuntos” onde, em Lisboa, um dia comera magnificamente e exultou quando se deu conta de que ambos tínhamos coincidido em Nova Iorque, no dia fatídico do 11 de setembro de 2001: eu era embaixador por lá, ele estava na cidade, numa visita parlamentar. Contou-me que, na falta de voos para regressar ao Brasil, a delegação que integrava ficou quase sem lugares no hotel, tendo de dormir em escassos quartos. “Dormi na cama com dois colegas, embaixador. Felizmente que a minha mulher sabe que não sou viado!” E todos rimos imenso, sempre com gente a entrar e a sair do espaço, com a sua atenção a ser suscitada para assinar coisas que despachava, à confiança. Foram vinte minutos inesquecíveis.

Um outro dia, e foi a última vez que o vi ao vivo, testemunhei a sua intervenção inicial numa bizarra homenagem póstuma feita pela Câmara dos Deputados brasileira a Sérgio Vieira de Mello, reunião que viria a terminar com a sala quase vazia, praticamente só comigo, com a família do diplomata da ONU e uma banda de música, que no final tocaria o hino nacional. Cavalcanti abriu a sessão, mas logo ficou evidente que não tinha a menor ideia daquilo que lhe tinham agendado para ir ali fazer. Iniciou o seu discurso dirigindo-se a ... Sérgio Vieira de Mello! Um fâmulo acorreu, pressuroso, informando-o de que, tendo o passamento do homenageado ocorrido já há dois anos, era justificável a sua ausência da sala e que era a família do homenageado que deveria começar por saudar. Ele corrigiu, leu o que tinha a dizer e desapareceu.

Hoje, morreu.

Haja coerência!

Lamento bastante a posição assumida por António Costa face a Viktor Orbán, “desligando” a questão dos fundos europeus do cumprimento dos valores e princípios da União. Não me revejo nessa “realpolitik” de oportunidade, que abertamente favorece o detestável e reiterado comportamento do autocrata húngaro. O argumento de que há outras áreas dos tratados europeus em que o tema melhor caberá é muito débil.

Mas quem, entre nós, nunca mostrou o menor empenho em isolar Orbán e o seu partido, no seio do Partido Popular Europeu - o grupo político onde estão o PSD e o CDS -, alinhando na oportunista tática de o “suspender” antes das últimas eleições para o Parlamento Europeu, não tem hoje a menor autoridade para criticar o primeiro-ministro por aquele infeliz gesto.

Lembram-se?


Alguns não se lembram, outros nem se querem lembrar, muitos desconhecem. Por esta época, nas revistas “do social”, era o período áureo das festas de verão, dos “dias nacionais” das embaixadas lisboetas, dos que “recebiam”, era o início dos eventos chiques da “saison” algarvia, um mundo cheio de nomes sonantes, uns porque sim, outros porque eram repetidos à exaustão. A Comporta só veio mais tarde, o Norte nunca foi muito “in”, salvo no registo de quem ia para os nevoeiros nobilitadores do Moledo.

Era o Portugal “dourado” da época, assente nos fundos europeus e na nova classe política, nas fortunas antigas ou no dinheiro novo, das empresas na moda aos ”cromos” da noite de Lisboa. Era o estatuto do novo regime. 

Em noites resplandecentes, eles viam-se de smoking ou de calças vermelhas e camisas abertas até à cruz no peito, elas surgiam “produzidas”, longos cabelos loiros, peles escurecidas, sorrisos de circunstância, guarda-roupa muito cuidado. Alguns lutavam para aparecer nessas ocasiões e para a sua presença ser citada, às vezes notados pelos “nicknames” que eram meio caminho andado para o reconhecimento. Os menos poderosos e mais arrivistas metiam cunhas aos fotógrafos ou a umas senhoras, reverenciadas e mimadas por quem queria aparecer, que iam dando indicações sobre de quem guardar a imagem para essa efémera posteridade, se me permitem a contradição. Outros estavam lá pela ordem natural dessas coisas, pelo apelido, pela “função” social, porque era assim. Depois, com maior ou menor destaque, lá saíam todos, ao final da semana, em papel “couché”, no “Olá Semanário” e revistas parecidas, num arremedo do que se fazia em Espanha, uma terra com mais aristocracia e mais “grandes” para mostrar.

Nos dias de hoje, a “Olá”, que até chegou a ter alguma graça, desapareceu já há muito, mas surgiram entretanto os seus sucedâneos, mais modestos mas, nem por isso, menos coloridos e a puxar para o glamoroso iluminado. Era um tempo em que ainda apareciam crianças nas fotografias, hoje, pudicamente, mostradas com as caras glicerinadas, como nos quadros do Noronha da Costa. 

A sociedade - que, a certa altura, tinha já sido substituída por reportagens de casamentos e batizados de ignotas famílias, que pagavam o frete a metro - deixou definitivamente o lugar aos atores e atrizes das telenovelas, aos futebolistas, às figuras televisivas, aos saídos dos “big brother”. Reportam hoje separações, óbitos, azares, doenças, namoros, ciúmes, intrigas, perdas de emprego, programas que começam ou acabam, coisas assim. Para quem não segue muito esses mundos, chega a não ser fácil saber quem é essa “beautiful people” de nova extração. Mas que há quem ainda goste, lá isso há!

Por que me lembrei disto? Foi ontem, ao ver nas televisões as imagens de arquivo do caso BES. Recordei-me que há um mundo que, por um novo e receoso pudor, temente à inveja que campeia e à crítica raivosa da ostentação dos outros, tida como ofensiva para as desigualdades, passou a viver as suas festas atrás de muros e a ter uma vida social em voz mais baixa. Hoje, mostrar os cavalos ou os carros de última gama, as festas de champanhe e caviar, ostentar as jóias e tudo o que possa ser lido como sinais exteriores de riqueza, como belas mansões e até excessiva alegria passou a não estar no “l’air du temps”, no politicamente correto. É uma hipocrisia, deixemo-nos de coisas!, mas é assim mesmo. Essas pessoas passaram a ter de ser mais discretas, mais contidas na exposição da sua imagem. É a nova vida!

Mistura de sentimentos


Não há expressão consagrada em português para “mixed feelings”. E, no entanto, é isso que sinto, uma mistura contraditória de sentimentos, face à saga que marca os dias do antigo rei espanhol, Juan Carlos.

As moscambilhas financeiras em que o rei emérito se envolveu, recebendo chorudas comissões de nababos medievais que dirigem países do Golfo, em troca de influência junto de empresas espanholas, colocam-no numa situação de extrema delicadeza, fragilizando a própria monarquia. Agora se percebe melhor o inusitado anúncio, feito há semanas, pelo filho, Filipe VI, de que renunciava a qualquer herança do pai. Pelo meio da história, para lhe dar mais picante e colorido, surge a figura de uma bela amiga do velho rei.

Juan Carlos tinha já saído do trono muito debilitado na sua imagem, por gestos insensatos, à revelia da sobriedade de costumes que os tempos exigiam.

Os reis são hoje uma “raça” ameaçada de extinção. Os escassos que sobrevivem, em ambiente democrático, afastados de qualquer poder executivo, são obrigados a observar um comportamento que atenue o risco dos seus “súbditos” poderem vir a optar por uma chefia eleita do Estado.

Como muitos portugueses, criei, no passado, uma forte admiração pelo rei espanhol, que aqui viveu e nunca desmentiu a grande simpatia que tem pelo nosso país. Franco usou-o para uma transição política cujos contornos, no entanto, fugiram à ideia de que tinha deixado tudo “atado y bien atado”. Juan Carlos soube então “ler” os dias, estruturou, com legitimidade histórica reconhecida pelos militares, uma autoridade que lhe permitiu pilotar a mudança, correndo riscos mas ganhando um país democrático, não obstante as tensões regionais centrífugas. Por muitos anos, a Espanha, salvo nas suas expressões mais extremistas, rendeu-se à sua dialogante autoridade e simpatia.

E não se diga que foi tarefa fácil! Não eram apenas as “duas Espanhas”, do tempo do seu pai, que, por vezes, ameaçavam aflorar, foram jogos partidários complexos, para os quais ele conseguiu, sob uma nova constituição, estruturar um terreno hábil de diálogo.

Depois, as coisas começaram a correr mal, não obstante algum cuidado na sucessão. Mas seria ele próprio quem contribuiu, em grande parte, para a perda da “magia” da monarquia espanhola.

Não se sabe agora o que aí vem. Por mim, republicano que sou, com sentimentos contraditórios face ao antigo rei, desde que ficassem devidamente acertadas as suas contas com a Espanha, não me importaria de vê-lo acabar os seus dias em Portugal.

Quinto livro para férias


terça-feira, julho 14, 2020

Ao fresco


Passei, há minutos, no lugar onde ficava o “33”, um agradável restaurante na rua Alexandre Herculano. Tinha um pátio magnífico onde, no verão, se almoçava ou jantava. As suas portas estão fechadas há já bastante tempo.


Depois de almoço, ali em frente da Gulbenkian, neste dia de calor, tinha-me lembrado da “Gôndola”, por ora transformada num buraco à espera de um banco. Tal como no “33”, a oferta gastronómica nunca foi por aí além, mas o espaço era soberbo. Tenho muito boas memórias de almoços por ali.


Na parte norte do Campo Grande, bem antes da igreja, quem se recorda do interessante jardim traseiro daquele que foi, por muito tempo, um dos mais antigos restaurantes de Lisboa, muito ao jeito das casas de comida “fora de portas”? Chamava-se o “Antigo Retiro do Quebra Bilhas”. 

Lisboa tem hoje muitos mais lugares onde se janta, ao fresco, comendo bem melhor do que naqueles restaurantes que fomos perdendo. Mas o que é que hei-de fazer? Aqueles três fazem-me falta.

Quarto(s) livro(s) para férias


segunda-feira, julho 13, 2020

Havemos de ir a Viana!


Palermices

Há uma coisa tão palerma como comemorar os êxitos da luta contra o vírus em Portugal: é mostrar um cínico regozijo com o agravamento dos números da pandemia entre nós. No primeiro caso, é parolice, saloiíce, deslumbramento. No segundo, é estupidez, sadismo, crueldade. Escolham!

Aviso à navegação


Já o disse, no passado, mas repito: este blogue não é um “cabide” em que os comentários servem para “pendurar” outros blogues ou links. Só excecionalmente isso pode acontecer. Por isso, desistam quantos tentam, por aqui, ganhar popularidade indireta.

Terceiro livro para férias


domingo, julho 12, 2020

sexta-feira, julho 10, 2020

Segundo livro para férias


A vida como ela está!


Os dias estão espessos. Por muito que os tentemos normalizar, que nos esforcemos para nos adaptar às novas rotinas, todos já percebemos que, ao contrário de alguma ilusão que existisse no início da crise pandémica, não há a menor ideia de até quando as coisas podem ter de permanecer assim. Pelo contrário, depois de recuos já operados em outros países, nada garante que as coisas não tenham de voltar para trás.

Mas não é sobre os riscos da pandemia que quero elaborar, porque de especialistas sobre o vírus o país parece (afinal) cheio. Gostava apenas de refletir, brevemente, sobre as suas consequências – materiais e humanas. Sem certezas, mas procurando ter os pés no chão.

Do que vou observando na nossa vida económica, não obstante as “almofadas” públicas que foi possível colocar em prática, de que o “layoff” foi um importante instrumento (embora fortemente emperrado pela burocracia), há uma parte significativa do tecido económico que está a sofrer de forma irremediável. Há pequenas e médias empresas que se tornaram inviáveis, o desemprego cresce a cada dia. Conta-se com a “bazuca” da ajuda europeia, mas há impactos que esse apoio não vai conseguir atingir ou chegará tarde, porque o calendário de desembolsos será sempre lento. Acresce que, sendo esta uma crise global, logo relativamente “simétrica”, haverá destinos, que nos últimos anos absorviam a nossa exportação, que deixarão, por algum tempo, de o poder fazer, a acreditar na modéstia das taxas de crescimento que se anunciam. E, como já se está a ver no caso do turismo, mudar de mercados-alvo é uma missão quase impossível, em tempos de crise.

A dimensão social dos impactos económicos da crise pode vir a ser atenuada, a prazo, pelo apoio europeu – e parece ser essa a aposta oficial. Mas é inevitável que, por bastante tempo, se agravem algumas consequências, como o aumento da pobreza e da exclusão, nomeadamente de imigrantes, trazidos pelo surto de turismo e pela agricultura. Por outro lado, é sabido que o desemprego é sempre fonte de uma pequena criminalidade que afeta a perceção de insegurança, induzindo pulsões securitárias, potenciadas por uma comunicação social que faz disso o seu “fond de commerce”, aproveitadas por forças populistas.

O país reagiu com sensatez à crise, aceitou, em regra, as limitações que a situação impunha, mas foi mostrando progressivo e natural incómodo com o espartilho ao seu quotidiano. Questão é saber se, em caso de ter de haver um recuo na abertura da sociedade, por virtude de um agravamento da situação sanitária, haverá consenso para a adoção de novas medidas restritivas.

As pessoas vivem hoje bastante tensas, os efeitos das medidas de confinamento revelaram-se assimétricos e injustos, há setores em compreensível desespero, em especial por não haver uma perspetiva temporal para a normalização da vida.

Reconstituir alguma esperança coletiva é a tarefa fundamental de quem atua na esfera pública, em que a comunicação social também se insere.

Não sei o que te diga


Não sei o que te diga, Mena. Hoje, 10 de julho, uma data muito triste para ti, tu que colecionas tantas datas tristes. Viste partir uma filha, viste desaparecer o teu filho e, há não muito, também, o teu companheiro de vida. Já os teus pais e um irmão tinham saído de cena. Resistir à dor, sublimando-a à tua maneira, passou a ser a tua forma de vida. Às vezes, estranhamos aquilo que parecem ser os teus delírios, os teus mundos algo míticos e oníricos, algumas reações que nos chocam. Mas nenhum de nós ousa sequer pensar o que seria, como reagiria se estivesse no teu lugar, se fosse o protagonista desse teu mundo de tristezas, feito de tantas perdas acumuladas, de futuros não cumpridos. Eu, que te conheço de toda a vida, desde a infância comum, que acompanhei todos esses tempos, que assisti à tua transformação por todas essas dores, que aprendi a ler as sombras que estão por detrás desse teu sorriso tão bonito, quero deixar-te aqui, hoje, dia 10 de julho, um beijo fraterno de grande admiração pela tua imensa e ímpar coragem.

Primeiro livro para férias


A esperança europeia


Quando falamos de Europa, referindo-nos à atual União Europeia, tendemos a esquecer que as instituições do processo integrador são uma realidade mutante com o tempo - desde as políticas à sua própria abrangência geográfica. Se a ambição última - paz, liberdade e desenvolvimento – permanece, basicamente, a mesma, o modo de a materializar e de lhe conferir densidade mudou imenso.

Também o olhar dos europeus sobre esse processo passou a ser outro, e isso explica muitas coisas. Quando a Europa iniciou o seu percurso de integração, vinha de uma guerra que deixara o continente devastado. A recuperação das economias, com a ajuda do Plano Marshall, fez muito pelo bem-estar dos integrantes do projeto e o óbvio sucesso deste constituiu-se como o seu melhor cartão de apresentação. A melhor prova disso foi, aliás, o interesse do Reino Unido de se juntar aos países fundadores, superando as suas reticências e a sua óbvia relutância de se inserir num processo de partilha de soberanias, bem contrário à sua arraigada matriz institucional.

Os trinta anos “gloriosos” trouxeram um prestígio imenso à ideia europeia, com uma forte adesão a um modelo consubstanciado em bem-estar, num contexto de liberdade e democracia.

Com a vitória ocidental da Guerra Fria, a Europa integrada acabou por ser vítima do seu sucesso e da ambição que este desencadeou. Os Estados saídos da tutela soviética vieram bater à porta do projeto que lhes tinha sido mostrado, do lado “de cá”, como miragem a que então já podiam aspirar. E a euforia da conjuntura levou os Estados mais integradores à ideia de que um salto de aprofundamento era compatível com a absorção do Centro e Leste do continente. Maastricht foi a tradução institucional dessa ambição – moeda, política externa, união política.

Muita água correu depois sob as pontes, com sucessivas reformas dos tratados a tentarem conferir funcionalidade a uma Europa simultaneamente alargada e mais densa de políticas. Um espaço que, não obstante a sua excecional vitalidade, como potência comercial e expoente económico, estava a perder competitividade e a ficar para trás na corrida global.

O contexto, não sendo de estagnação, passou a não ser já de euforia. Em muitos Estados, o crescimento reduziu-se, o desemprego subiu, as deslocalizações foram incompreendidas, algum recuo soberanista começou a fazer o seu caminho.

As novas gerações, frustradas com a falta de oportunidades já não olham hoje o pós-guerra desolador, como os seus pais haviam feito. Ao invés, passaram a comparar as suas limitadas expetativas com os tempos fartos que tinham, entretanto, deixado de existir.

A globalização converteu-se no bode expiatório dessas frustrações, os choques com o estrangeiro que ameaça os empregos e fere a identidade cultural passou a ter um terreno fértil, com o terrorismo e as pulsões securitárias daí derivadas a provocarem tropismos nacionalistas. A falência ou a rotura do projeto europeu, como se recordarão, chegou então a ser anunciada.

Ora a Europa, não obstante todas as suas clivagens, foi bem resiliente. Conseguiu superar a crise financeira de 2007, acabou por resolver, “tant bien que mal”, a crise das dívidas soberanas, uniu-se para afrontar o fantástico desafio que é o Brexit, suportou estoicamente a pressão da crise dos refugiados e dos migrantes económicos e, no fim da linha, mostra agora uma insuspeitada vitalidade para contrariar, com imaginação económica e vontade política, os embates da crise pandémica. Tudo isto, nos anos mais recentes, sem poder contar com o tradicional “amigo americano”, que põe em causa o sistema multilateral que é a sua matriz de ação internacional.

O vírus maligno que por aí anda vai ser um desafio imenso para a estabilidade do projeto europeu. Contudo, se este souber encontrar os anti-corpos, em matéria de políticas, para lhe fazer face com algum êxito, a Europa pode acabar por sair reforçada, à escala global, deste desafio. E, no plano interno, pode ter encontrado um novo sopro de estamina e coesão política. Será isto “wishful thinking”? Talvez, mas não há futuro sem esperança.

quinta-feira, julho 09, 2020

Melros e coisas assim


Neste tempo de confinamento, passei a notar mais nos melros que pousam no meu jardim. 

Sou um insuperável nabo quanto às coisas da natureza: reconheço uma pereira ou um pessegueiro, mas apenas quando neles estão pendurados peras ou pêssegos; se lá estivessem ameixas ou cerejas, a minha conclusão seria outra e já se imagina qual. 

Não identifico um pardal ou uma águia, não me atrevendo, como é óbvio, a chamar pardal àquilo que pode ser uma águia, embora fique na dúvida sobre se trata de uma águia ou de um milhafre ou de qualquer outra coisa parecida. Mas, a sério!, fico sempre na dúvida sobre se o pardal não será uma andorinha...

O meu pai era um imbatível ás em questões de passarada: conhecia-lhes os nomes, identificava as aves mais diversas. Até pela forma de voar! E, então, em matéria de árvores, era um perito, delas sabendo mais do que muita gente que vivia no campo. Como, no caso dele, sempre habitou em cidades, ficou-me a dúvida eterna sobre a origem dessa ciência. Que, como se vê, não passa pelas gerações.

Voltando aos melros. Até à pandemia, andei convencido de que aquelas aves de bico amarelo que me visitavam eram (acreditem!) corvos! Disse isso a um amigo e ele deu-me um berro amesquinhante: “Estás maluco?! São melros, homem! Se tiverem bico amarelo são machos, se o bico for mais escuro são fêmeas”. Há dias vi um que tinha um bico que não era bem amarelo nem escuro, mas tive receio de mandar um bitaite politicamente incorreto, nos tempos que correm...

Arquivei a sapiência e, um destes dias, fui mesmo honrar a memória poética de Guerra Junqueiro, relendo “O melro”, um poema que o meu pai “recitava” em família (imagino agora que só uma parte, porque aquilo é longo e, aqui entre nós, bem chato). O meu pai adorava a arte do criador da bandeira da República e ficava furioso quando eu o qualificava de “poeta menor”. (Tinha idêntica reação quando eu me atrevia a dizer o mesmo sobre Pedro Homem de Mello. A nossa sintonia nunca foi lírica). 

Às tantas para me absolver da minha ignorância sobre os melros (ou por ter pouco que fazer), passei a alimentá-los, diariamente. Dava-lhes pão, bolachas e o que estivesse à mão. Por bastantes dias, tudo correu bem. A escada para o jardim passou a estar cheia de melros, que se aproximavam bastante, à hora das refeições. Depois, eles começaram a pousar dejetos, o que levantou objeções familiares sobre a justeza da minha generosidade alimentar. Um dia, chegaram os pardais, sempre aos pares (os tais que eu não sabia se eram andorinhas). Constatei então que os melros, naquele seu porte simpático e frágil, eram afinal egoístas e lhes davam bicadas, para eles se não aproximarem das vitualhas, embora elas chegassem para todos. Até que, finalmente, vi surgirem as pombas, avisadas da fartura da zona, sabe-se lá por quem. Comecei mesmo a temer a chegada das gaivotas (sempre as confundi com as pombas, confesso!). Depois, li na net que havia o risco do surgimento de gatos da vizinhança. E decidi então fechar o “restaurante”. 

Ontem, deu-me para pôr no meio do jardim uma ave metálica que, há muitos anos, comprei no sul de França, e que tem estado, desde então, a criar patine de ferrugem. Coloquei-a na relva. Mas os melros não lhe ligaram peva, nem se aproximaram, não se deixaram enganar. Cheguei à conclusão de que eles sabem muito mais de aves do que eu. O que já terão percebido que não é difícil.

Alfredo Tropa


Foi-se o Alfredo Tropa, uma grande figura da RTP e um nome importante do cinema português. Conhecemo-nos em 1974, durante os dias ”épicos” que se sucederam à ocupação da televisão pelas tropas da EPAM, unidade militar em que eu então fardava os meus dias. Uma década mais tarde, congregados pelo Alfredo Magalhães Coelho, juntámo-nos numa tertúlia que assentava praça aos fins de tarde no “Metro e Meio” e refeiçoava, com regularidade, na “Travessa”, na sua primeira “versão”, também na Madragoa. Ali criámos, sob a direção “estratégica” do José Emílio Amaral Gomes, um infausto “clube” de investimento na bolsa. Voltámos a ver-nos, anos mais tarde, por acasos da vida. Ficou a combinação de um almoço que já se não fará.

quarta-feira, julho 08, 2020

Amigos, amigos


Durante os anos em que vivi em Londres, alguns portugueses inquiriam-me sobre o modo como os britânicos olhavam a velha Aliança com Portugal.

A questão não estava entre as que, minimamente, preocupavam quem quer que fosse, por esses tempos. O tema só surgia na retórica dos discursos oficiais ou vocalizada por britânicos que, simpaticamente, queriam um pretexto de conversa, alternativo à estafada menção ao Vinho do Porto.

Aos meus interlocutores portugueses , eu procurava dizer a verdade. E a verdade é que a generalidade dos britânicos com quem falava, além de raramente referirem esse tratado do antanho, quando o faziam colocavam-no num patamar de mera curiosidade histórica e, sem exceção, a nenhum passava pela cabeça a plausibilidade da sua menor invocação nos tempos que corriam. Um dia, numa palestra em Londres, perante uma questão sobre se ainda cria na Aliança, respondi, por entre britânicos sorrisos amarelos: “Acredito! Acredito tanto como os ingleses...”

Vale um belo livro nunca escrito o histórico das relações luso-britânicas, ao longo de séculos. Tratados, entendimentos, desencontros, perfídias, interesses comuns ou contraditórios – há um pouco de tudo. Aliás, uma pequena amostra de tudo isso guardo na minha memória profissional, fruto daquilo de que fui testemunha presencial em vários momentos.

Às vezes, diz-se que devemos aos britânicos a nossa independência. É um erro: talvez lhes devamos uma ajuda pontual à preservação histórica da nossa soberania, mas isso custou-nos, por séculos, precisamente a nossa independência, que ficou sob a sua tutela.

Para tempos recentes, fica a imagem de uma relação bilateral a que a nossa comum presença nas instituições europeias só trouxe maior distância e um crescente afastamento do padrão de interesses. Salvo no sublinhar da importância em manter a Europa num laço transatlântico forte, raramente detetei pontos de aproximação entre Londres e Lisboa, que pudessem configurar eixos de ação comum na esfera comunitária.

A decisão britânica de excluir Portugal das rotas turísticas, levantou por aí um “Mapa Cor-de-Rosa” de indignações. Com razão, protestámos, alto e bom som, para inglês ouvir. Esse tempo passou: agora, com serenidade, discutamos com eles os nossos comuns interesses.

É que já Palmerston dizia que “a Inglaterra não tem amigos, tem interesses”. Às vezes, contudo, a História provou que Londres também tem interesse em ter amigos. Lembremos-lhes isso.

terça-feira, julho 07, 2020

Vírus


Se a nova recomendação da OMS, no sentido de serem evitados os espaços fechados, pela possível transmissão do vírus pelo ar, vier a ser seguida com algum rigor, podemos estar perante um caso com fortes implicações negativas na recuperação económica.

segunda-feira, julho 06, 2020

Jogos com fronteiras

O “Expresso” perguntou-me, na sua edição de sábado, se faz sentido não impor um controlo sanitário na fronteira com Espanha. Respondi isto:

”Há um registo de otimismo que é imanente a todo o discurso do poder. As dúvidas, mesmo que intuídas, passam quase sempre para segundo plano, porque elas não devem poluir o objetivo de criação de confiança que é pretendido com a mensagem. 

Lembrei-me disto ao ouvir os responsáveis políticos, dos dois lados da fronteira do Caia, no anúncio da reabertura da passagem entre Portugal e Espanha. Pelo que foi dito, perpassou a ideia de que o pior já passou, que caminhamos para um tempo novo, exigente mas superável. 

Por razões óbvias, Portugal nunca foi adepto da invocação reiterada de excecionalidades na livre circulação europeia. Mas adotámo-las, com indiscutível lógica, no auge da pandemia, numa modelar articulação pública com o nosso único vizinho terrestre. Na “exit strategy”, a consonância foi menos brilhante, mas a recente cerimónia com os poderes de Estado tudo acabou por disfarçar.

Agora, vive-se o dia seguinte. Terá sido prudente adotar uma abertura de fronteiras sem prever, ao menos temporariamente, controlos de segurança sanitária? 

Percebo bem o sentido estratégico do risco assumido, pelo dramatismo das consequências económicas desta crise. Não estou seguro, contudo, de que a solução adotada tenha sido a melhor, esperando poder vir a ser convencido pelos factos. 

A situação sanitária que se vive em Portugal e em Espanha está bastante longe de estabilizada. Confie-se ou não nas estatísticas que nos chegam de Madrid, a verdade é que o curso da pandemia, na península, continua preocupante. E que uma segunda onda não pode ser descartada.

Neste contexto, nos últimos meses, aprendemos que os sinais públicos são de extrema importância. Não quero fazer chover no molhado, mas é mais do que óbvio que as imagens do 1° de Maio ou a manifestação contra o racismo foram momentos infelizes que ajudaram a potenciar algum laxismo, que todos estamos a pagar.

Em matéria de luta contra a pandemia não podemos continuar a viver numa espécie de “banho escocês”, em que tanto nos dizem que é possível ter fronteiras abertas como ouvimos, das mesmas autoridades, que temos de recuar em algumas aberturas do desconfinamento. Dir-me-ão: uma coisa não é contraditória com a outra, desde que haja cuidados. Para a generalidade da opinião pública as coisas não são lidas assim. E, em política, como diria alguém que curiosamente tinha da relação com a Espanha uma visão desencantada, o que parece é.”

domingo, julho 05, 2020

Fim do dia


Sempre apreciei os dias de verão em que, depois do jantar, sentadas as cadeiras confortáveis, as pessoas têm conversas sem agenda, com a luz a desaparecer, numa varanda ou numa sala de janelas largas. O dia ainda lá estava quando se sentaram e vai desaparecendo, quase sem darem por isso, até entrarem numa quase escuridão.

Na casa das minhas tias, nas Pedras Salgadas, no belo terraço arredondado com cadeirões de verga ou de madeira, com largos braços, guardo a imagem dos mais velhos a porem a conversa em dia, comentando os casos da vida.

Na varanda que torneia o pátio da casa dos meus avós maternos, não muito longe, em Bornes, com as pessoas no escano ou nas muitas cadeiras que por lá havia, formava-se um cenáculo de belas conversas, com gente da família ou amigos a juntarem-se, vindas de outras casas, a quem era oferecido um cálice de “vinho fino”.

Eram também assim as noites em Viana do Castelo, nas férias grandes, em torno da minha avó paterna, na casa do largo Vasco da Gama, com os filhos no ritual da visita diária. Recordo-me que a claridade declinava, quase subitamente, e, se alguém, inesperadamente, entrasse na sala, ficaria com a ideia de que todos tinham para ali ido às escuras.

Esse é o segredo desses momentos. Se uma luz se acende, e cedo ou tarde isso acontece, toda a magia de penumbra desaparece. As conversas já não voltam a ser as mesmas.

Bolton


Escorreito na escrita mas, às vezes, demasiado “notarial”, traz muito poucas verdadeiras novidades, embora revele curiosidades sobre a liturgia do poder americano.

Falo do “The Room Where It Happened”, de John Bolton, antigo Assessor para a Segurança Nacional de Trump. https

Faz Figura


Almoçar com vista para o Tejo - e almoçar bem!  - é um privilégio. Uma varanda arejada, com espaço e toda a “distanciação” necessária, com um menu criativo, uma das melhores listas de vinhos de Lisboa. 

Eu sou fã do “Faz Figura”. Estacione junto à Feira da Ladra e aproveite! Façamos figas contra o vírus!

sábado, julho 04, 2020

Diplomacia

A anunciada atitude britânica face ao turismo com Portugal revela o que parece ter sido um lamentável viés, isto é, a utilização de índices que abertamente desfavoreceram o nosso país, em paralelo com outros. A ironia, que poderia ser utilizada se não se tratasse de um caso com sérias implicações económicas, é que, comparativamente com o Reino Unido, a situação sanitária portuguesa, sendo menos brilhante do que já foi, continua a ser bem mais positiva do que a que por lá se vive.


Tudo indica que Portugal tem toda a razão do seu lado e que o Reino Unido a não tem. Percebo assim perfeitamente que o ministro dos Negócios Estrangeiros tenha tido a reação que teve, porque era importante fazer chegar a Londres um sinal político forte da nossa insatisfação. Ele ficou dado e bem, como Augusto Santos Silva sabe fazê-lo. E o mesmo foi ecoado, com brilho, por um alto responsável político do principal partido da oposição.


Mas isto não é o Mapa Cor-de-Rosa! Haja bom senso e não se enverede por movimentos públicos de desagravo patrioteiro. Agora, começa um novo tempo: pelo menos por quinze dias (tempo em que se fará a eventual revisão da medida), tudo continuará nos termos que Londres anunciou. Há que encetar - e estou certo que isso já está a ser feito - um rápido trabalho de sensibilização, com base num diálogo sereno, para demonstração rigorosa das nossas razões, com base em critérios técnicos e científicos, credíveis e insofismáveis. É assim, e só assim, que se poderá conseguir reverter a situação. A diplomacia é isso.

sexta-feira, julho 03, 2020

Ainda existe “a mais velha aliança”?

Muita da tradicional proximidade entre Lisboa e Londres esbateu-se fortemente após a nossa entrada nas então chamadas Comunidades Europeias, em 1986. 

A partir daí, e enquanto o Reino Unido continuou a ser um parceiro relutante do processo europeu, Portugal tentou dar um salto "centrípeto", colocando-se no eixo da União, com a deliberada intenção de evitar cair num novo ciclo de perifericidade na sua história contemporânea. Salvo o interesse em manter viva na Europa a relação transatlântica, quase tudo, a partir de então, nos fez afastar dos britânicos. 

Será que a "mais velha aliança", nomeadamente no contexto da sua singularidade britânica perante a Europa dos 27, tem condições para poder ter um novo fôlego? 

Para aquilo que verdadeiramente nos importa no quadro externo, estamos estritamente ligados ao quadro europeu, que tanto nos condiciona como nos protege e amplifica a nossa capacidade de defesa de interesses. Tudo o resto, podendo ser interessante de explorar no terreno bilateral, acabará por ter uma dimensão menor e residual. 

Acredito na "mais velha aliança"? Acredito, tanto como os ingleses...

quinta-feira, julho 02, 2020

Aos bonés


O mundo anda esquisito. Agora, já nem os porteiros dos hotéis têm bonés parecidos com os dos generais ou ditadores “graduados“ do Leste.

O Sporting, o Porto e o Benfica

Hoje, fui simpaticamente convidado para ir, com um grupo, ver jogar o Sporting com o Arsenal, em Alvalade, no dia 26 de novembro.  O Sportin...