quinta-feira, julho 16, 2020

Engravatar os dias


Acabei de ver mais um Poirot, na “Fox Crime”, e notei o rigor do traje do detetive. Li, em tempos, quase toda a Agatha Christie, mas então não me tinha ficado na memória o requinte do vestuário do atento belga britanizado. Aquilo é que são gravatas!

Fui ontem, de casaco e gravata, ao Chiado. Com a caloraça que tinha estado durante o dia, havia gente que olhava para mim como se eu fosse um ET. Adoro andar de gravata e o local e a cerimónia (chamemos-lhe assim) a que eu ia exigia (e bem!) o seu uso. Nem imaginam o prazer que tive e o bem que me senti! 

Tenho de comprar mais gravatas, concluí. Em minha casa, atrás de duas portas, foram inventados dois armários, cada um com mais de dois metros de altura e uma profundidade que não chega a um palmo, onde jazem, por tons, algumas das muitas centenas de gravatas que fui acumulando na vida. De quando em vez, ofereço umas dezenas, mas cada vez tenho menos a quem. Chego sempre à conclusão de que me faltam ainda alguns padrões essenciais. A gravata é um sinal de civilização. Melhor: é um sinal de que ainda há civilização.

Três histórias de gravatas.

Há não muito tempo, fui com um amigo, diplomata inglês de passagem, jantar a um restaurante em Lisboa. Na televisão, essa praga que marca alguns locais feitos para se comer em descanso (“é por causa do futebol, shôtor!), passava uma cena de um debate parlamentar. O inglês inquiriu: “Não é obrigatório o uso da gravata no vosso parlamento?” Respondi que não. A certa altura, perante um deputado em traje bem simplificado, teve esta frase cruel: ”Aquele parece um sem abrigo!”. Calei-me, por respeito à instituição. E à verdade.

Há uns anos, vai para uma década, saiu na imprensa que, num determinado ministério, tinha sido abolido o uso da gravata (vá lá!, tinha deixado de ser obrigatório). Escassos dias depois da notícia, tive de ir ver o titular desse ministério e, claro, apresentei-me de fato e gravata. E perguntei, à entrada do gabinete: “Não se importa que eu venha de gravata, pois não?”. A senhora ministra não se importou.

Outra vez, em Chipre, nos anos 90, um ministro local contou-me uma história curiosa. Vou repeti-la, com todo o politicamente incorreto que ela comporta: “Durante alguns anos, após a saída dos britânicos, houve no país uma tendência para “abandalhamento” (não sei como ele disse isso, mas era essa a ideia) do vestuário. Estávamos a ficar tão levantinos como a nossa geografia apontava, com as nefastas consequências disso na nossa atitude. Porém, a partir de certa altura, o uso de ar condicionado passou a ser regra nas repartições públicas. As pessoas começaram então a vestir de forma mais cuidadosa, a usar fato e gravata e, quer acreditar?, a nossa atitude oficial mudou, para melhor. Mas, felizmente, não ficámos iguais aos ingleses, “thank god”!”

Dito isto, daqui a uns dias inaugura-se o belo mês em que o meu traje “de rigor”, de manhã à noite, serão jeans ou coisas parecidas, sapatos Timberland com idade para irem para o museu do fabricante e velhas camisas largueironas ou t-shirts. Se, nesse período, me surgir alguém de gravata à frente, estrangulo-o, como fazem na Fox Crime.

(Creio que morre bastante mais gente na Fox Crime do que na pandemia, mas não parece ser de bom gosto dizê-lo. Eu faço-o, porque este é um texto desengravatado, que tem quase tantas mentiras como escassas verdades).

8 comentários:

Anónimo disse...

"shôtor" é uma grafia absurda que mistura o "sh" inglês com o "ô" português.

O termo, consagrado já em dicionário (Porto Editora, por exemplo), é "sotor" e, se há necessidade de grafar uma determinada pronúncia do termo, então, haverá que respeitar as normas ortográficas portuguesas: "ch" ou "x". E nada de acento.

Anónimo disse...

Absolutamente de acordo. É uma questão de respeito para connosco e com os outros.
É lamentável o "abandalhamento" que se vai vendo nas nossas cidades.
O modo brasileiro de vestir, ou de despir mais correctamente, que invadiu o espaço público é um sintoma de degradação da sociedade que iremos lamentar.
Se não estou em erro, Barcelona proibiu que se andasse nas ruas de tronco nu. Deveríamos seguir o mesmo caminho.

Anónimo disse...

Há poucos anos, umas tontas tentaram mobilizar a sociedade para o drama de uma empregada bancária que era forçada pelo empregador a usar saltos altos. A coisa durou alguns dias, deu direito às habituais reações inflamadas das feministas radicais e dos machos virtuosos e morreu pouco depois.

Ninguém, por um momento, chamou a atenção para o drama dos milhões de homens que são forçados a passar dezenas de anos das suas vidas enfiados num quente fato, com os pés confinados em calçado desconfortável, o pescoço apertado com um colarinho e, finalmente, à guiza de trela, uma gravata.

A uniformidade de vestuário que se impõe aos homens é degradante para a sua condição individual, é limitadora da sua personalidade e é mais uma forma de afirmar, perante o mundo, a descartabilidade masculina. Ao homem pede-se que se dilua no conjunto, que seja uma peça da engrenagem, funcional mas anónima. Ao contrário, às mulheres dá-se a liberdade e o conforto, o prazer e o direito de se mostrarem e de projetarem a sua personalidade através do vestuário.

Ainda assim, há quem veja na liberdade das mulheres, uma demonstração de machismo...

Não. As regras de vestuário masculino não demonstram respeito pelo outro. A menos que aqueles que assim pensem, achem que uma mulher, por não estar sujeita aos mesmos ditames espartanos, é, consequentemente irresponsável, incompetente e desrespeitosa para com aqueles que lidam com ela. Mas, se assim pensam, porque não o verbalizam e deixam apenas aos pobres homens a obrigação de penar em nome da respeitabilidade.

Esta simples ideia, de que o homem necessita de ser disciplinado com a roupa e uma trela, se fosse aplicada às mulheres de uma forma infinitesimal, levaria a imediata e prolongada revolta e luta e, provavelmente, veríamos os cavalheiros do fato e gravata aliarem-se às senhoras em prol do fim do preconceito.

Não. O fato e gravata é uma vergonha, é o prolongamento de tendência histórica de despersonalização dos homens e é, na sua essência, um atentado aos direitos de personalidade. Tudo o resto é conversa elitista.

Já agora: porque cargas de água os soldados são obrigados a usar o cabelo curto mas as mulheres nas FA já podem ter rabo de cavalo? Também é por respeito aos outros?

Anónimo disse...

No que diz respeito ao conceito, não há diferença entre quem diz que um homem, para ser tido em conta de pessoa de bem, deve usar fato e gravata e aqueles que acham que uma mulher, para ser tida como respeitável, deve andar numa burka. É a mesmíssima coisa, sendo que já vi burkas de muitas cores mas, parece-me, que no que toca ao fato, só serve se for escuro. Outras cores são coisa de larilas e anarcas.

Luís Lavoura disse...

Na Dinamarca, que não é propriamente um país atrasado ou incivilizado, é normal as pessoas estarem no trabalho, ou seja onde fôr, descalças. Assim mesmo, com os pés no chão. Há uns meses, veio cantar na igreja de São José, em Lisboa, um coro de raparigas dinamarquesas, e metade delas estava descalça enquanto cantava. E eu tive no meu trabalho uma colaboradora dinamarquesa, que no verão andava descalça pelo instituto.
Isto só para dizer que os padrões de vestuário ingleses não são necessariamente sinal de civilidade. Há povos pelo menos tão civilizados como os ingleses (provavelmente mais, de facto) que não compartilham desses padrões.
Quando à gravata, especificamente, é para mim claro que se trata de um símbolo fálico, que os homens trazem pendurado do pescoço para sugerir às mulheres aquilo que têm pendurado entre as pernas.

Anónimo disse...

Jeans é muito quente para o verão
Fernando Neves

Anónimo disse...

A colheira do Lavoura não para!

Vá aprender sobre a origem da gravata (vem de "lenço croata"), e depois conversamos sobre essas manias freudianas.

Anónimo disse...

gravata com este calor?!
eu preferia pedir que construam piscinas oceânicas, com maior urgência na costa oeste
já que a água do Atlântico é bastante fria
as piscinas poderiam reduzir o impacto do frio das ondas e aumentar a segurança
sobretudo para as crianças que frequentam as praias
(estamos em época de promessas de obras públicas!)

Ai Europa!

E se a Europa conseguisse deixar de ser um anão político e desse asas ao gigante económico que é?