quarta-feira, julho 15, 2020

Severino Cavalcanti


Morreu, no Brasil, Severino Cavalcanti. Tinha 89 anos.

Na história política daquele país, o seu nome não passará de um pé de página. Um dia, durante o segundo mandato de Lula, um grupo de deputados, aproveitando um impasse na eleição para a presidência da Câmara de Deputados, decidiu apresentar o nome de Cavalcanti, um nordestino pernambucano, figura nada notável daquilo a que se chama o “baixo clero” (deputados sem grande projeção, que os britânicos designam por “backbenchers” e os franceses “d’arrière-ban”, mas não “banc”). E a aposta, insólita e divertida, para atrapalhar o governo, saiu vencedora.

Cavalcanti, oriundo do Partido Progressista (PP), um partido “fisiologista” (expressão que se usa no Brasil, significando que mistura a política com interesses económicos e financeiros), com um histórico no jogo de negociação de cargos e que viria a envolver-se em tramóias sucessivas nos anos posteriores, disse logo ao que vinha: pediu, para os seus, um lugar na direção da Petrobrás. Mas não um lugar qualquer. Queria um posto operacional, com poder, “dos de furar poço” de petróleo. A expressão ingressou logo no anedotário político.

Mais tarde, viviam-se os tempos do “mensalão” (mesadas pagas pelo governo Lula a deputados de certos partidos, oriundas de fundos ilegais, para recompensar votos favoráveis ao governo), Cavalcanti viria a ser apanhado numa trafulhice menor, na qual se apurou que um fornecedor da cantina da Câmara de Deputados lhe pagava uma “propina” regular. Naquela fértil imaginação semântica que só os brasileiros têm, o esquema passou a ser designado pelo “mensalinho”...

Cruzei-me com Cavalcanti duas vezes.

A primeira foi quando o fui visitar, para o cumprimentar, pouco tempo após a sua turbulenta e inesperada eleição. A Hebe Guimarães, uma amiga que tinha uma posição proeminente na máquina político-administrativa do parlamento brasileiro (hoje, infelizmente, bastante doente), arranjou-me o encontro.

Nunca, em toda a minha vida oficial, me deparei com um caos análogo àquele que se vivia no gabinete de Cavalcanti. Simultaneamente, tinha ali lugar uma reunião, com vários deputados, àcerca de um diploma legislativo. Em frente, em sofás, assistindo sem limitações àquela “marchandage”, estavam as pessoas que o presidente da Câmara dos deputados iria receber. Por ali estive vários minutos, no segredo “dos deuses” da barganha legislativa em curso. Graças à “cunha” da minha amiga, o embaixador de Portugal passou à frente de todos os que aguardavam.

Cavalcanti, um simplório senhor idoso, estava sentado numa secretária, por detrás de uma meia parede que fazia de uma espécie de biombo. Foi simpático, conversador, falou-me do “Solar dos Presuntos” onde, em Lisboa, um dia comera magnificamente e exultou quando se deu conta de que ambos tínhamos coincidido em Nova Iorque, no dia fatídico do 11 de setembro de 2001: eu era embaixador por lá, ele estava na cidade, numa visita parlamentar. Contou-me que, na falta de voos para regressar ao Brasil, a delegação que integrava ficou quase sem lugares no hotel, tendo de dormir em escassos quartos. “Dormi na cama com dois colegas, embaixador. Felizmente que a minha mulher sabe que não sou viado!” E todos rimos imenso, sempre com gente a entrar e a sair do espaço, com a sua atenção a ser suscitada para assinar coisas que despachava, à confiança. Foram vinte minutos inesquecíveis.

Um outro dia, e foi a última vez que o vi ao vivo, testemunhei a sua intervenção inicial numa bizarra homenagem póstuma feita pela Câmara dos Deputados brasileira a Sérgio Vieira de Mello, reunião que viria a terminar com a sala quase vazia, praticamente só comigo, com a família do diplomata da ONU e uma banda de música, que no final tocaria o hino nacional. Cavalcanti abriu a sessão, mas logo ficou evidente que não tinha a menor ideia daquilo que lhe tinham agendado para ir ali fazer. Iniciou o seu discurso dirigindo-se a ... Sérgio Vieira de Mello! Um fâmulo acorreu, pressuroso, informando-o de que, tendo o passamento do homenageado ocorrido já há dois anos, era justificável a sua ausência da sala e que era a família do homenageado que deveria começar por saudar. Ele corrigiu, leu o que tinha a dizer e desapareceu.

Hoje, morreu.

1 comentário:

Anónimo disse...

Simplesmente delicioso.
Caro Embaixador.
Devia passar as suas suculentas memórias ao papel.

Ass. Um antigo condiscípulo

O futuro