Há muito que Francisco Seixas da Costa tinha o dia 28 de Janeiro assinalado no calendário. Nessa data atingia os 65 anos e ficaria impedido de exercer funções no estrangeiro. No final do ano passado, quando soube que o embaixador Morais Cabral o iria substituir como representante de Portugal em Paris liguei-lhe a pedir uma entrevista de vida. Simpaticamente, pediu para esperar pelo seu regresso a Lisboa mas garantiu-me que a daria. Confesso que, na altura, desconfiei. Não seria a primeira vez que um “empurrão para a frente” serviria como desculpa para uma recusa encapotada. Ainda assim, no início de Fevereiro voltei a ligar-lhe. Já em Lisboa, andava ocupado com a mudança e com o novo cargo no Centro Norte-Sul para o Conselho da Europa. Mas agarrou na agenda e marcou um dia: 22 de Fevereiro, às 15h.
A capital francesa foi o último posto de uma carreira diplomática que começou em 1975 e que foi apenas interrompida pela passagem pelos governos de António Guterres. Em Lisboa, guia um Smart e, após 12 anos no estrangeiro, já se perdeu várias vezes nas artérias da capital portuguesa.
Recebeu a SÁBADO no seu gabinete na Lapa, sede do Centro Norte-Sul para o Conselho da Europa, onde é director não remunerado. Foi recentemente nomeado administrador não executivo da Jerónimo Martins, e entrou para os conselhos consultivos da Mota Engil e da Fundação Calouste Gulbenkian.
- Depois de uma vida como funcionário público entrou no mundo dos negócios. Porquê?
- A certa altura ainda pensei em dar aulas na universidade porque tive convites. O problema é que eram de universidades públicas e há uma lei que impede a acumulação de reformas com um salário no sector público. Depois, no dia 12 de Dezembro de 2012 [12/12/12], recebi três convites: para a Jerónimo Martins (JM), para a Monta Engil e para a Fundação Gulbenkian. Sou administrador não executivo da JM e posso contribuir em determinadas áreas devido à minha experiência e leitura da situação internacional. É vulgar ver diplomatas assumirem funções empresariais quando se desligam do Estado.
- Vai finalmente ganhar dinheiro a sério?
- O poder complementar a minha reforma – que não é das mais brilhantes – é um factor importante. E achei interessante ter uma segunda vida no plano profissional. Surgiram outras oportunidades, também na área empresarial, a que disse não. Estas achei compatíveis comigo e nunca me cruzei com elas ao longo da vida. Ainda por cima são duas das grandes empresas nacionais.
- Durante anos foi o único embaixador português a manter um blogue pessoal onde, além de memórias, dava a sua opinião sobre a actualidade. Porque decidiu fazê-lo?
- Quando estava em Viena, entre 2002 e 2004, os blogues começaram a explodir em Portugal. Na época achei que era um método interessante de partilhar ideias com meia dúzia de amigos. Eu e vários diplomatas fizemos experiencias, com pseudónimos. Era quase clandestino porque trocávamos opiniões e fazíamos comentários sobre a vida política. Quando fui para o Brasil suspendi isso e criei um para a embaixada que chegou a imensa gente. Ao preparar a ida para Paris pensei que seria uma forma interessante de comunicar com a segunda geração portuguesa em França.
- Funcionou?
- Foi um fracasso. Acho que cheguei a umas dezenas dessas pessoas. Mas percebi que o blogue podia ser uma revisitação da memória e actualidade cultural. Acaba por ser um exercício em que nos expomos e colocamos perante as pessoas para nos conhecerem melhor. Tem um defeito: as nossas opiniões e posições nem sempre obedecem a um padrão uniforme. E há pessoas que gostam de nós porque dizemos uma coisa e ficam surpreendidas quando dizemos outra. O blogue é um retrato mais ou menos curioso do que sou. Tenho levado para lá histórias inócuas da vida diplomática e algumas experiências das que se podem contar em termos de memória diplomática, politica e militar.
- Contém-se muito?
- Contenho. Há uma regra fundamental: não quebrar a lealdade em relação ao que soubemos em virtude das funções que ocupámos. Há coisas que nunca podemos contar. Em Paris continha-me muito. Hoje menos.
- Nasceu em Vila Real. O que faziam os seus pais?
- O meu pai era gerente da Caixa Geral de Depósitos. Casou com a minha mãe que era filha de um jurista da cidade. Foi gerente da Caixa durante 27 anos. Foi com ele que ganhei o sentido de serviço publico. Fiz a escola primária e o liceu em Vila Real e em 1966 fui estudar para o Porto.
- Como foi a transição para uma grande cidade?
- Era filho único e fiquei completamente perdido no Porto – que para mim era Nova Iorque. Fui estudar engenharia electrotécnica e viver num lar universitário. Fiz duas cadeiras em dois anos. Se tivesse mantido o ritmo estaria agora a acabar o curso. Andei em festas; dirigi um programa de rádio chamado Momento de Teatro, no Rádio Clube Português; escrevia crónicas de desporto para o Jornal de Notícias aos domingos, sobre jogos entre equipas como o Lordelo do Ouro-Campanhã; fiz teatro no Teatro Universitário do Porto…
- Que peças fez?
- Era a peça do ano que era a Ana Kleiber, de Alfonso Sastre em que a Manuela Melo era a nossa vedeta. Eu fazia de jornalista. Entrevistava o escritor no início e no fim da peça. Durante o resto do tempo era sonoplasta devido à experiência na rádio.
- Praticava desporto?
- Sim, era corredor de velocidade. Estraguei o meu menisco nessa altura. Corria 100, 200 e 4×100 metros.
- Quanto fazia?
- Éramos péssimos. Entrávamos nos 11 segundos à vontade. No Centro Desportivo Universitário do Porto fundei a secção de filatelia, a de xadrez era árbitro de ping-pong, joguei futebol pela universidade onde fui um péssimo lateral direito. Os pontas passavam todos por mim. Fazia tudo menos estudar. Foi um período magnífico da minha vida que me fez ter uma adoração pelo Porto. Em 1968 vim para Lisboa para o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Meti-me logo na primeira lista associativa desse ano que foi suspensa pelo ministro Hermano Saraiva.
- Meteu-se em movimentos políticos?
- Não. Trabalhei na CDE de 1969, em Vila Real. Nunca fiz parte de grupos políticos, nunca ingressei em grupos da extrema esquerda embora à época estivesse muito próximo deles.
- Em que sentido?
- Ideológico. Tinha uma atitude de esquerda radical mas nunca me senti próximo dos movimentos maoístas. Também nunca tive grande apetência para ser membro do Partido Comunista, que era a grande referência. Talvez porque tenho grande dificuldade em manter a disciplina. Gosto de pensar pela minha cabeça.
- Já escrevia?
- A partir de 1968 publiquei vários artigos na Voz de Trás-os-Montes sobre política interna e internacional. Fui proibido pela censura quando tentei publicar uns artigos cheios de ambiguidades com aquela linguagem críptica da época. Num, questionava: “será que o futuro da Rodésia é negro?” O censor deixou passar e a censura em Lisboa chamou-lhe a atenção. Depois publiquei um sobre um filósofo russo chamado Vladimir Ilyitch Uliánov que o censor não sabia que era o nome do Lenine e deixou passar. Foi chamado a atenção e a partir daí comecei a ter uma barreira.
- É verdade foi à boleia para França?
- Várias vezes. Fui em 1967, em 1969 e 1970. Uma vez fui da Rotunda do Relógio até à fronteira com a Noruega, sozinho, de mochila às costas. Era uma coisa que se fazia com facilidade e sem muito dinheiro.
- Onde ficava?
- Nas pousadas de juventude. No outro dia estava a confrontar experiências com o Luis Amado [ex-ministro dos Negócios Estrangeiros] que me contou que ficou em Paris a dormir debaixo de uma ponte, magnificamente, provavelmente com uma amiga [risos]. Eu era muito cuidadoso na organização das coisas.
- Como se sustentava?
- Com o dinheiro que levava. Era possível viver com pouco. As pousadas eram muito baratas e comia-se com parcimónia. Fiz uma viagem dessas de 35 dias e gastei três contos e quinhentos. Hoje são uns 17 euros mas na época era muito dinheiro. Juntei durante o ano para isso. Tive algumas aventuras agradáveis, nada que se possa contar [risos].
- Em Lisboa tornou-se melhor aluno?
- Tornei. Aluno de 14. Excepto no final do curso, que era de Ciências Sociais e Política Ultramarina, em que tive uns problemas a uma cadeira. Nessa altura, como não tinha acabado o curso por causa dessa cadeira, pedi para ir para o serviço militar. Entretanto, empreguei-me na CGD. Fiz concurso público e entrei. Um dia telefonei ao meu pai e disse-lhe “sou seu colega”. Fiquei lá de 18 de Novembro de 1971 até ir para a tropa, em 1973. Seria esse o meu destino de regresso normal. Entretanto acabei o curso, fui para a tropa e tive um percurso militar atribulado porque foi o 25 de Abril.
- Porque pediu para apressar o ingresso no serviço militar? Não tinha receio de ir para a guerra?
- Todos pensávamos que íamos fazer a guerra. Portanto, estávamos a perder tempo em relação à nossa vida profissional. É preciso ter a perspectiva da época: nós olhávamos para o regime e para a guerra colonial como um dado adquirido para o futuro. Não pensávamos que acabaria dois anos depois. Tive a sorte de ter uma especialidade militar rara, que é a da Acção Psicológica, e ficar em Portugal. Éramos um grupo pequeno. Dos 900 de Mafra só nove eram escolhidos. Fiz bons amigos nesse grupo que ultrapassam dimensões políticas. Um deles é o Jaime Nogueira Pinto.
- Quando soube do golpe do 25 de Abril?
- Na véspera, por volta do meio-dia. Estava na Escola Prática de Administração Militar. O António Reis, que fazia a ligação aos militares do quadro, veio à biblioteca e informou um grupo de milicianos sobre o golpe. Não se fazia ideia do que ia acontecer. Só que era naquela noite.
- O que fez?
- De manhã fiquei na unidade. A certa altura recebemos o comandante e tivemos que o deter. É uma cena patética. Os militares do quadro que tinham a unidade na mão sentiam-se intimidados porque era subverter a hierarquia. E éramos nós, milicianos, a estimulá-los: “é preciso prender o comandante” [risos]. Hoje tem graça. Na época havia alguma taquicardia. Depois fiz parte do grupo que fez uma espécie de guarda de honra à Junta de Salvação Nacional que foi à RTP. Tenho ideia de estar atrás das câmaras a ver o discurso do Spínola.
- Teve a noção do que estava a viver?
- Relativa. Se tivesse levava uma máquina fotográfica. Não temos a noção da importância das coisas. Tive isso presente na famosa Assembleia do 11 de Março, que foi histórica e não estava planeada.
- Esteve na sua origem?
- Estive. Depois do golpe spinolista do 11 de Março um conjunto de pessoas que diziam “é preciso tirar consequências disto” começou a reunir-se no que é hoje o Instituto de Defesa Nacional. Visto hoje, toda esta operação foi comandada pelo PC. Nós éramos inocentes úteis nessa manobra de tentar dar a volta ao 11 de Março. Fomos dali até Belém em vários carros e entrámos quase à força. O Conselho dos 20 suspendeu a reunião para nos ouvir. Exigimos que as pessoas fossem para o IDN onde se fez a assembleia que acabou às 6h. Foi onde se definiu uma linha mais radical que consagrou as nacionalizações da banca, seguros, etc
- Porque deixou a Escola Prática de Administração Militar?
- Fui expulso por esquerdismo. Não quis votar um castigo a um soldado cadete. Fui para a comissão de extinção da PIDE/DGS e depois tornei-me adjunto do General Galvão de Melo, na Junta de Salvação Nacional.
- Como se tornou diplomata?
- Um dia fui a um café e encontrei um colega que era diplomata. Ele disse-me que havia um concurso e eu meti os papeis. Foi quase um desafio intelectual porque nem tinha muito tempo. O serviço militar começava às 13h e acabava às 19h. De manhã trabalhava na Ciesa- NCK, uma agência de publicidade, onde fazia uma análise ao modo como a imprensa tratava os temas da semana com algumas pessoas que mais tarde fundaram O Jornal: o José Silva Pinto, Manuel Beça Múrias, Cáceres Monteiro. Isto era vendido a empresas estrangeiras e embaixadas que queriam perceber a situação portuguesa. Fiz esse boletim até muito tarde – mesmo depois de entrar para o Ministério (risos).
- No MNE alguém sabia disso?
- Isto começou antes de ir para lá e era um auxílio importante para a minha vida. Fazia-o aos fins-de-semana. Mas julgo que o eventual crime já prescreveu [risos].
- O seu exame de ingresso na carreira foi feito por Cavaco Silva?
- Foi. Fez-me a prova de Economia Política. Correu-me mal. Baixei da escrita para a oral mas acho que ele foi extremamente justo e rigoroso. O tema não me era muito familiar: a integração europeia. Mal sabia que mais tarde chegaria a secretário de Estado dos Assuntos Europeus [risos]. Mas não fiquei bem classificado no meu concurso, fiquei em 13º. Quando comecei as provas pensei que não entrava. Mesmo depois de receber a carta a dizer que tinha sido admitido hesitei entre regressar à CGD ou ir para o MNE.
- O que o fez optar?
- A graça do MNE, não o salário. Na CGD ganhava bastante mais. O MNE era mais apelativo. Isto parece estúpido, mas na época tinha a esperança de que era possível ser diplomata sem ir para o estrangeiro. Havia a ideia de que se iam criar uns postos de especialistas em política externa em Lisboa. No início não me apetecia ir viver para o estrangeiro. De tal maneira que durante anos não concorri. Primeiro porque o salário que me pagavam na Ciesa NCK era bastante bom. Conseguia somá-lo ao do ministério. Depois por causa da profissão da minha mulher.
- Ela acompanhou-o sempre?
- Sim. Ela era assistente social e perdeu a carreira dela. Também está aposentada e sofreu em matéria de promoções e lugares de chefia por me acompanhar.
- Quanto se casaram?
- Em finais de 1973. Conhecemo-nos quase desde a escola primária. Fizemos o liceu juntos, começámos a namorar em 1965. Estivemos juntos no Porto e depois em Lisboa. Ela só não me acompanhava nas viagens à boleia porque a família não deixava [risos]. Os tempos eram outros.
- Como foi para Oslo?
- Um dia telefonaram-me e disseram-me “estás colocado em Oslo”. Andava à tanto tempo a atrasar a saída do país que um dia meteram-me lá.
- Depois foi para Angola.
- Era um período muito complexo, de guerra civil. Luanda estava sitiada. Não saíamos mais de 30km a norte, 15 km a leste, 60, 70 km a sul, até ao cabo Ledo. Havia recolher obrigatório, não havia comércio, tínhamos de mandar vir tudo de Lisboa. A mala diplomática era feita num merceeiro da Av. Infante Santo. Até batatas e ovos recebíamos de Lisboa.
- Furavam muitas vezes o recolher obrigatório?
- Às vezes distraíamo-nos e passava da meia-noite. De repente tínhamos uma metralhadora à frente. Havia uns cartões com autorizações que nem sempre funcionavam. O ambiente e os nervos de militares, de madrugada, às vezes estimulados de forma alcoólica, não ajudavam muito a criar uma sensação de segurança. Lembro-me de uma cena patética. Tinha mandado vir um Golf novo. Um dia sou parado por um polícia que me diz com toda a delicadeza: “camarada, posso ver se os piscas funcionam? Posso ver se os stop funcionam?” Isto num carro impecável. Ao lado passavam automóveis sem portas. A certa altura ele pergunta-me: “e o triângulo?” Fui ver e não tinha. Aí ele diz: “sabe que é obrigatório?” Lá disse que sabia e saiu-me esta: “e onde é que se compra?” O tipo fez um sorriso magnifico e disse, “pode ir, camarada”.
- Mais ou menos 10 anos depois foi convidado para o governo de António Guterres.
- Em 1994 vim de Londres. Fui para sub-director-geral das Comunidades Europeias. Um dia fui convidado para trocar impressões com o engenheiro Guterres, que não conhecia. Queria discutir comigo a Europa. Disse-me uma coisa interessante: “você é diplomata e eu quero falar consigo, quero as suas ideias, não quero os seus papéis. Não quero nada do MNE.” Tivemos umas horas de discussão e passado um mês e tal fui convidado.
- Como surgiu?
- Estava numa reunião da Associação Sindical dos Diplomatas quando o telefone da sala tocou. Eu não tinha telemóvel. Era o Jaime Gama, que ia ser ministro, a convidar-me. Aceitei. Já tinha rumores de que isso podia acontecer e já tinha falado com a minha mulher sobre essa hipótese. Contra a vontade dela, aceitei.
- Porquê?
- Porque ela achava que eu não devia ter deixado a carreira. Nunca gostou da vida política. Se outras aventuras eu não tive, se calhar felizmente, foi graças à profunda rejeição da minha mulher pela vida política.
- Os colegas começaram a dar-lhe graxa?
- Não. Acho que as pessoas perceberam que tinha alguma especialidade técnica. Nos cinco anos em que fui secretário de Estado tivemos o Tratado de Amstrerdão, a presidência de Schengen, a Agenda 2000, a presidência portuguesa e o tratado de Nice. Aliás, acho que estive tempo demais no governo. Para quem não é político com assento na Assembleia da República, uma passagem pelo governo deve ser no máximo de quatro anos.
- Porquê?
- Há um momento a partir do qual já não conseguimos ser criativos. Já fomos novidade, já demos as nossas ideias, já fomos úteis. Claro que a experiência é importante. Mas há um momento terrível na política: quando temos a ideia de que fazemos as coisas com demasiada facilidade. Vamos a uma reunião e já não precisamos de ler nenhum papel. É o momento em que as pessoas começam a pôr os dossiers de lado. Já têm uma dose de confiança que se torna perigosa. É a altura de sair.
- Quando chegou, sentiu-se olhado de lado, como um intruso com ideias novas?
- No início não. No governo Guterres muitos dos ministros e secretários de Estado eram independentes. Mas à medida que vamos sobrevivendo no governo e nos vamos prestigiando fora dele tornamo-nos incómodos. Os partidos, que precisam dos independentes para chegar ao poder, se puderem ver-se livres deles, fazem-no. É a recuperação da máquina. É o upgrade de chefes de gabinete que passam a secretários de Estado e destes a ministros. A qualidade média começa a baixar em função de um uso excessivo de pessoal político sem dimensão técnica.
- Do que mais se recorda desses anos?
- Da importância das pessoas na afirmação dos países. O papel de António Guterres numa certa fase do processo europeu, ao nível da mesa do Conselho Europeu, era absolutamente desproporcionado em relação ao peso do país. Ele tinha uma influência e capacidade de mediação e de propor medidas tão grande… e Portugal estava muito abaixo disso.
- Dê-me um exemplo.
- Lembro-me de um Conselho Europeu em que houve um conflito entre o Jacques Chirac e o Helmut Kohl. Guterres tomou a palavra, fez uma proposta entre os dois, juntou a isso uma ideia do Wim Kok, da Holanda, e aquilo passou. Eu fiquei aturdido. Primeiro porque parecia uma presunção estar a intervir num processo tão elevado. E aquilo passou, com prestígio. Os países conseguem pela capacidade das pessoas uma dimensão que não têm. O Guterres teve isso.
- É verdade que Guterres teve hipótese de ser presidente da Comissão Europeia e recusou?
- Completamente. Só não aconteceu porque ele não quis. Surgiu uma janela de oportunidade e foi montada uma operação, da mesma forma que julgo que mais tarde se fez com Durão Barroso. Estava a criar-se um consenso naqueles que tinham uma palavra a dizer em relação a isso que tornavam o processo irreversível. O porquê da não ida terá de ser ele a contar.
- Internamente, pelo contrário, nos últimos tempos do guterrismo houve situações complicadas.
- Já não assisti à fase final. Saí em Março de 2001. Mas há sempre um problema na parte final dos governos que é a manutenção de confidencialidade. Vemos isto em todos.
- Como era o ambiente nos conselhos de secretários de Estado?
- Eles têm um carácter bastante burocrático. Trata-se de preparar os diplomas. Não há discussões de fundo. O de ministros é mais complicado. Com os tempos a grande camaradagem dá lugar a uma certa tensão. Porque há conflitos, porque o primeiro-ministro não gosta de um ministro…
- Viveu alguns?
- Vivi mas não posso contar porque é uma regra de ouro: nunca contar o que se passa num conselho de ministros.
- Sentia-se um diplomata na política ou um político a tempo inteiro?
- Na política só fazia política. Desliguei-me completamente do funcionamento do MNE. Afastei-me das promoções, colocações, tudo isso. Ao contrário é o mesmo: quando estava em funções diplomáticas não houve quem me apanhasse com um pé na politica. Em 2001 regressei à carreira diplomática e fui para Nova Iorque.
- Um ano e meio depois de chegar às Nações Unidas foi afastado. Foi uma retaliação política por ter sido secretário de Estado de um governo socialista?
- Quem tomou a decisão é que tem de o dizer.
- Não lhe comunicaram porquê?
Disseram-me que queriam mudar o embaixador nas Nações Unidas e deram-me algumas opções. O compromisso era a ida para a OSCE – que me pareceu a mais interessante – com a passagem posterior para outro posto, mas o governo não honrou esse compromisso.
- Sentiu a sua competência posta em causa?
- Creio que não. A presidência da OSCE foi um sucesso reconhecido pelo ministro de então. Haverá outros factores.
- As suas relações com o ministro António Martins da Cruz não eram as melhores…
- Tive 21 ministros dos Negócios Estrangeiros na minha carreira. Desafio qualquer um é a testar a minha lealdade. O ministro Martins da Cruz não encontrou da minha parte qualquer tipo de deslealdade funcional.
- Pensou abandonar a carreira?
- Mais do que uma vez tive tentado a outras opções profissionais. Curiosamente, nessa conjuntura, decidi continuar. Convidaram-me para ser representante especial da União Europeia para o Médio Oriente e não aceitei.
- Qual desses 21 ministros destacaria?
- É difícil. Mas o tempo que trabalhei com Jaime Gama marcou-me. Ele tem uma visão do país e da política externa extremamente completa e sólida. É talvez a pessoa mais bem preparada da minha geração para os mais altos cargos do estado.
- Foi embaixador em Nova Iorque, Rio de Janeiro e Paris, foi vice-presidente da Assembleia Geral da ONU e secretário de Estado. Depois da experiência nos negócios só lhe falta ser ministro?
- Já faltou. Acho que já não falta. Não tenho qualquer ambição política. Posso dizer que, em anos recentes, tive convites para ingressar em cargos ministeriais e não aceitei.
- Muito recentes?
- Recentes [risos]. Não aceitei por opção de vida. Hoje a vida política faz-se com outra idade, na casa dos 40 ou 50. Há uma grande exigência e é preciso estar fisicamente disponível para isso. Há um tempo para tudo.
- Os diplomatas são vistos como uns tipos que passam a vida em festas. Enquadra-se nesse estereótipo?
- Os cocktails e jantares fazem parte de um processo logístico Não sou avesso mas os cocktails são das coisas que mais me irrita. Os jantares podem ser simpáticos ou inúteis. Mas a vida diplomática é feita da relação entre colegas. Em Paris eram ocasiões interessantes para perceber como os parisienses que nos convidavam olhavam para o Sarkozy ou para os socialistas. O encontro com diplomatas era importante para cruzar informação. Há colegas bem e mal informados. Considerava-me bastante bem informado. A prova é que, nos dois meses que antecederam a chegada dos socialistas ao poder, eu e um pequeno grupo de colegas tivemos pequenos almoços, almoços e jantares de trabalho com personalidades, algumas desconhecidas, que viriam a entrar neste governo.
- Há ideia de privilégio sobre os diplomatas. Um estudo recente concluiu que são os funcionários públicos mais bem pagos.
- Mas só se incluir os abonos que recebemos no estrangeiro e sobre os quais não nos deixam fazer descontos. Esquecem-se que há pessoas com filhos na escola, que muitas vezes têm de manter uma casa em Lisboa e outra fora. Esquecem também que há uma dupla exclusividade, como aconteceu comigo, em que um dos membros do casal perde a sua profissão. A minha mulher manteve o direito à aposentação porque descontou, mesmo sem salário, com base no último rendimento antes de ir para o estrangeiro. A reforma de um embaixador, apesar de razoável, surpreendia muita gente. O que os diplomatas ganham a mais tem a ver com a compensação do custo de vida que é diferente de Lisboa. Mas não descontam sobre isso. Já percebi que é impossível vender a ideia que o diplomata não é um privilegiado.
- Como analisa a situação política portuguesa?
- Acho que o governo segue uma receita que não está a provar. Os sinais, a falta de resultados relativamente à aplicação da receita ainda não induziu o governo a mudar a receita. Não sei quanto tempo vai ser possível manter esta aproximação à realidade sem que a realidade lhe caia em cima.
- Qual o caminho alternativo?
- São muito escassos. Os discursos de retórica sobre crescimento são simpáticos e agradáveis. Parece-me que o acordo que foi feito pelo governo português, demitido, com o apoio dos maiores partidos da oposição, resulta da circunstância de esse governo estar fragilizado. Pergunto-me: se o acordo tivesse sido feito por um governo em funções teria sido outro? Dito isto, com a evolução da conjuntura e com a leitura da aplicação prática destas medidas, já há muito que devia ter sido feita uma correcção no plano europeu e internacional sobre isto.
- De quem é a culpa?
- Não sei. Se percebemos que os resultados que se esperam não chegam, se os sinais são contraditórios, tem de haver uma correcção de percurso. O mundo está a olhar para nós como uma espécie de cobaia de modelo. O eventual sucesso dessa experiência ser-nos-ia creditado mais tarde. Resta saber se o país aguenta o peso destas medidas sem uma forte ruptura do tecido económico e social. Internacionalmente tinha que haver uma atitude diferente. Quer o caso grego quer o português são baratos face ao que seria a crise global do euro. A prova é que a Grécia tem vindo a ter sucessivos perdões de dívida e alargamento de prazos. Se calhar devíamos jogar com isso, independentemente de devermos fazer os esforços para corrigir a situação interna.
- Isso deve partir de quem?
- Como é uma questão nacional, não pode deixar de envolver as oposições, particularmente o PS.
- Como viu o regresso de José Sócrates?
- É um factor de animação que não deixará de ter consequências no PS e na política portuguesa. Não estava à espera. Estou muito curioso para perceber o registo, o impacto que terá no país e como ele se vai colocar no panorama político.
- Seria possível, em França, um ex-primeiro-ministro ou ex-presidente ocupar um espaço de comentador político num canal público?
- Oh, meu amigo!!! Não conheço nenhum país em que haja utilização de figuras ligadas aos partidos na crítica televisiva. O que diz muito da capacidade dos jornalistas e dos comentadores de outra natureza se afirmarem. As televisões estão tomadas por um conjunto de políticos que fazem dos comentários tempo de antena. Às vezes de natureza partidária, outras pessoal. Mesmo nos jornais: não há mais países onde políticos no activo tenham colunas regulares. Podem publicar um artigo ou serem entrevistados. Os embaixadores estrangeiros ficam muito surpreendidos com isto. Também somos o único país do mundo onde há os “tudólogos”, pessoas que falam de tudo. Em mais lado nenhum a mesma pessoa fala de hospitais, remodelação, memorando da troika e esquadras de polícia. Conheço alguém que um dia falou com uma dessas pessoas e disse-lhe: “normalmente estou de acordo consigo, excepto quando conheço os assuntos”. São grandes momentos de “achismo”.
(Entrevista a Nuno Tiago Pinto)