Há mais de uma década, numa passagem pela Torre do Tombo, inquiri sobre se que, nos arquivos da PIDE/DGS, haveria alguma informação a meu respeito. Foi-me dito que sim, tendo mesmo obtido o número de referência sob o qual esses dados estavam registados.
O facto de, desde então, nunca ter procurado ter acesso àquilo a que vulgarmente se chama a "ficha na Pide", revela a consciência que já tinha de que nada de muito relevante devia integrar esse dossiê. Antes de Abril, nunca fiz parte de qualquer organização política clandestina, nem nunca fui incomodado pela polícia política.
Hoje, aproveitando meia manhã livre, e porque andava por perto, decidi ir à Torre do Tombo.
Respira-se uma saudável serenidade naquele espaço. Há por ali um amável silêncio, quase ia jurar que único em Lisboa. (Não excluo voltar, sob qualquer pretexto, só para gozar aquela magnífico ambiente). Notei, além disso, uma excecional simpatia e profissionalismo por parte de todo o pessoal, que me atendeu a mim e a outra gente que estava por ali por coisas bem mais sérias do que a minha curiosidade sobre o que os "pides" pensariam a meu respeito.
E afinal, que descobri? Praticamente nada! A PIDE e, depois, a DGS - cuja Comissão de Extinção, agora me lembro, integrei, por alguns meses, em 1974 - apenas tinha anotado, a meu respeito, coisas inócuas, como pedidos de passaporte, entrada para a Função Pública e ida para a tropa.
Ora eu pensava que ter feito parte da "troika" que entregou a lista oposicionista ao Governador Civil de Vila Real, em 1969, sendo depois chamado à polícia local, por mais de uma vez, tinha marcado para sempre o meu destino. Ou que o facto de ter sido "não-homologado", por duas vezes, por decisão ministerial, como dirigente associativo universitário eleito, era a prova provada de que estava, para sempre, na "lista negra" do regime. Ou que o ter sido vetado expressamente pela Censura de continuar a escrever em "A Voz de Trás-os-Montes", por manifesta desafetação ao regime detetada nos artigos, abrira, de imediato, um severo processo a meu respeito. Ou que a minha assinatura, com trémula letra, em abaixo-assinados claramente ligados ao "reviralho", tinha sido posta a crédito (a débito, para eles) da minha "esquerdalhice". Ou que a circunstância de, por bastantes anos, ter andado da passarinhar por tudo quanto eram reuniões oposicionistas, desde manifestações de rua aos comícios mais diversos, tinha chamado a atenção dos "pides" sobre a minha pessoa. Ou que os incidentes disciplinares por que fora "chamado à pedra" na tropa, em Mafra, bem como a participação nas reuniões clandestinas de milicianos, nos meses que antecederam Abril, estavam a ser registados para devidos e futuros efeitos. Tudo somado a uma imensidão de outras muito pequenas coisas, desde distribuir literatura clandestina a pintar algumas (muito escassas) paredes, atos que pensava que não tinha escapado à argúcia do pessoal da António Maria Cardoso.
Qual quê! Nunca me ligaram peva, não me deram a menor importância, nem sequer tiveram a atenção de fazer um leve juízo apreciativo a meu respeito, fosse ele qual fosse... Uns ingratos!
Não se tivessem passado cinco décadas de ditadura, de perseguições, de torturas, de mortes, da infernalização da vida de muita e corajosa gente, pelo olhar para a minha "ficha da Pide" eu deveria concluir que nunca por cá houve qualquer coisa a que se pudesse chamar fascismo.
Saí hoje da Torre do Tombo devidamente "humilhado" pela descaso feito pela PIDE à minha, afinal minúscula e irrelevante, atividade oposicionista. Mas também saí com uma muito maior admiração por quem teve a coragem, que eu não tive, de enveredar pela luta aberta contra a ditadura, nas esquinas da clandestinidade ou a dar a cara na denúncia do regime, arrostando com as devidas consequências, em muitos casos trágicas.
Essa gente é que merece, com imensa honra, ter "ficha na Pide". Não eu.
2 comentários:
Pois... ou será que "eles" eram competentes ?
Vai-se a ver, não tarda, terá ficha no SIS.
Espanta-me que só agora tenha sido assaltado por tal curiosidade. Deve ser uma sensação e peras!
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