domingo, junho 18, 2023

Bisalhães


O "Público" traz hoje algumas páginas sobre a louça preta de Bisalhães, uma aldeia perto de Vila Real.

Graças ao município da cidade, que conseguiu promover a arte daquela pequena indústria a Património Imaterial da UNESCO (iniciativa a que tive o gosto de ser convidado a associar-me, na preparação da candidatura), foi possível encontrar meios para redinamizar uma atividade que parecia em vias de extinção, embora nem todas as sombras que sobre ela se projetam tenham desaparecido, por completo.

Em Vila Real, na minha infância e juventude, só se comemoravam dois santos populares: o Santo António e o São Pedro. 

(Por essa altura, ninguém, em Vila Real, se lembrava do São João, que, desde há já alguns anos, passou ali a ser bastante celebrado. Foi um processo contrário ao que veio a acontecer em Lisboa, onde o São João, até bem dentro da primeira metade do século XX, foi a grande festa popular da cidade, para, depois, se "converter" ao Santo António. Curiosamente, Vila Real e Lisboa têm o dia de Santo António como data municipal.)

O São Pedro, lá por Vila Real, tinha a louça de Bisalhães no seu centro. A chamada Rua Central enchia os passeios com a gente que vinha da aldeia vender aquilo que fabricava. Além das peças artísticas, umas meramente decorativas, outras com algum uso prático, surgiam à venda "panelos" muito baratos, muito mais finos e leves, que eram utilizados para "jogar ao panelo", para serem atirados de uma pessoa para outra (normalmente entre um rapaz e uma rapariga), à distância, sendo o seu destino final, invariavelmente, o chão, que ficava recheado de cacos. Imagino que, pelo preço atual da loiça, a prática lúdica deva ter desaparecido. Mas ficou a quadra: "Pucarinho é jogado / Pelo ar, de mão em mão. / Traz e leva segredinhos / Até se quebrar no chão”. Com o fim da festa, a louça desaparecia da cidade e só era visível em exemplares nas montras do Turismo, na Avenida Carvalho Araújo. De há uns anos para cá, algumas barracas de venda permanente da louça ganharam lugar a norte do bairro de Almodena. 

Há precisamente 55 anos, como exercício prático para uma cadeira de Etnografia, dirigida pelo clássico professor António de Almeida, elaborei um trabalho universitário sobre "A louça de Bisalhães". Há tempos, descobri a "obra", numa papelada, lá por Vila Real. Tem umas dezenas de páginas, fotografias dos artesãos, do forno coletivo e da pequena aldeia. Reli o texto com alguma curiosidade, mas saí da leitura sem especial orgulho no produto final, que regressou, definitivamente, ao lugar onde estava. O trabalho mereceu um 13, recordo.

No "trabalho de campo" que então efetuei, tinha notado uma curiosa circunstância que, na altura, me abstive de relatar: os diversos fabricantes de loiça com quem tinha falado mantinham, entre si, uma forte conflitualidade, que aliás não escondiam. Anos depois, quando foi feito o trabalho para a UNESCO, inquiri se se mantinha esse conflito. Foi-me dito que sim e que isso tinha mesmo criado algumas dificuldades ao processo, bem como à montagem dos mecanismos de apoio à recuperação da indústria. Agora, o artigo do "Público" confirma que essa conflitualidade se mantém lá pela aldeia. Atirarão "panelos" uns aos outros, nas horas em que o conflito se agrava?

4 comentários:

Luís Lavoura disse...

É uma louça bem bonita, como decoração.
Pergunto: de onde vem a cor negra? É o barro que é dessa cor? Ou é algumcorante que lhe colocam?

Flor disse...

Luis Lavoura, "A cozedura e a origem da cor negra
A Olaria de Bisalhães é conhecida pela cor negra das suas louças. O segredo está no forno e nos métodos da cozedura. O forno (existem sete na aldeia) é um buraco aberto na terra, com paredes revestidas a barro, sendo as peças colocadas numa grelha em ferro, com a lenha a crepitar. Para que os artigos cozam totalmente, põe-se por cima da louça, uma camada de rama de pinheiro verde a arder. Para impedir a libertação de fumos na cozedura, o forno deve ser “abafado” com camadas de caruma, musgo e terra. Este é o segredo da cor do barro de Bisalhães. Abafar a cozedura faz com que a cor negra se espelhe no produto final, se não se abafasse, a cor da louça seria avermelhada. a louça ficava vermelha. Para se obter uma cozedura perfeita, são necessárias cerca de vinte e quatro horas."

Luís Lavoura disse...

Obrigado, Flor.

Nuno Figueiredo disse...

Vila Real sempre!

Dê-lhe o arroz!

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