A cerimónia de apresentação de cumprimentos de Ano Novo do corpo diplomático ao presidente da República é, em Portugal, um momento único, em que se reúnem todos os embaixadores estrangeiros residentes em Lisboa e aqueles que, embora estejam acreditados no nosso país, residem no estrangeiro - principalmente em Paris, mas também em Londres, em Roma e até em Rabat, mas nunca em Madrid.
(Para quem não saiba, anoto que Portugal não concede "agrément" a embaixadores estrangeiros que sejam residentes em Madrid, como forma de desestimular a possibilidade da capital espanhola vir a transformar-se no centro de "embaixadas ibéricas".)
A cerimónia, com os homens vestidos de fraque ou traje nacional, que conta sempre com a presença do ministro dos Negócios Estrangeiros, inclui uma longa sessão individual de cumprimentos, seguida dos discursos da praxe, do decano do corpo diplomático e do nosso chefe do Estado.
Em 2014, quando, após a minha reforma, representei em Portugal o Conselho da Europa, como diretor-executivo do respetivo Centro Norte-Sul, integrei essa cerimónia. Nem queiram imaginar a cara de surpresa do presidente Cavaco Silva quando deparou comigo a apresentar-lhe cumprimentos, como embaixador "estrangeiro"! O meu antecessor era francês.
No nosso país, como acontece em várias partes do mundo, o decano dos embaixadores não é o embaixador mais antigo: por tradição, é sempre o Núncio Apostólico, o representante diplomático da Santa Sé. É uma prática comummente aceite.
A historieta que vou contar passou-se numa dessas cerímónias, no Palácio da Ajuda, num qualquer mês de Janeiro. Na sala onde apresentação de cumprimentos ia ter lugar, o então presidente da República (qual era não interessa para o caso) e o chefe da diplomacia estavam já a postos, há alguns minutos. Os diplomatas estrangeiros encontravam-se do outro lado do palácio, numa sala bem longe, separada por um longo corredor. Algum inesperado atraso, talvez devido à tarefa de ordenação por antiguidade dos diplomatas estrangeiros, fazia com que o primeiro dos diplomatas que devia saudar o nosso Presidente - o tal representante da Santa Sé - ainda não tivesse surgido, à frente dos restantes colegas.
O chefe do Estado português dava já mostras de alguma impaciência. O ministro fez então sinal ao chefe do Protocolo para que este tentasse apressar as coisas. Pressuroso, o nosso homem aproximou-se da porta que dava para o corredor, ao fundo do qual se movimentavam os seus colaboradores. Fez-lhes imensos sinais com os braços, mas, do outro lado, ninguém parecia notar. Para grandes males, soluções à altura. De repente, no ambiente austero que precedia a solenidade, ouvem-se três sonoras palmas do chefe do Protocolo, seguidas de um berro de comando, bem alto e audível ao fundo do corredor: "Saia o Núncio!"
O presidente e o ministro desataram a rir. Entre a Ajuda e o Campo Pequeno a distância encurtou, nesse momento...
Porque é que me lembrei disto hoje? É que ontem, num corredor, algures em Lisboa, deparei com o meu colega que protagonizou esse episódio, um profissional da diplomacia que, aliás, foi um excelente chefe do Protocolo, um lugar muito exigente e de considerável importância.
4 comentários:
Portugal não concede "agrément" a embaixadores estrangeiros que sejam residentes em Madrid, como forma de desestimular a possibilidade da capital espanhola vir a transformar-se no centro de "embaixadas ibéricas"
Faz Portugal muito bem.
Em diversas empresas multinacionais, desapareceram os postos de trabalho (no setor do marketing, por exemplo) em Portugal, substituídos por postos de trabalho em Madrid que são responsáveis por toda a Península Ibérica.
Dessa forma desaparecem postos de trabalho qualificados em Lisboa (e em Barcelona, etc), em favor de postos de trabalho qualificados em Madrid.
Portugal deve lutar por ser percebido como uma entidade culturalmente distinta da Espanha.
Afinal há curros na Ajuda!
A propósito, ou não, conforme entenderem, talvez Madrid se tivesse transformado em bem mais do que " no centro das embaixadas ibéricas", não fora o apoio recebido da Inglaterra, em muitas ocasiões. Apoio interessado e interesseiro, certamente, mas que nos permitiu manter uma identidade e uma cultura que talvez tivéssemos perdido não fora esse interesse
Quanto à "historieta", tem muita, muita graça, e é tão portuguesa que havia de enternecer o José Lúcio Castanheiro!
Muito obrigada.
Teve graça:)
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