segunda-feira, junho 22, 2020

Uma questão de decibéis


Ontem, falei por aqui de quanto me irritam as motos pela noite. Há pouco, lembrei-me que já estive do "outro lado". Não que eu tivesse alguma vez uma moto, mas porque já fui obrigado a defender o ruído das motos produzidas em Portugal.

Estávamos na segunda metade da década de 90. Eu representava Portugal no conselho de ministros do "Mercado Interno", em Bruxelas. A agenda dessas reuniões incluía a análise de uma imensidão de diplomas, relativos a questões técnicas para nós de grande complexidade, até porque diziam respeito a áreas muito diversas entre si. As temáticas ambientais e de proteção dos consumidores eram então as mais vulgares, num tempo em que se procurava legislar para que o "Mercado Interno" intracomunitário pudesse melhor funcionar (e, hoje, talvez valesse a pena completá-lo, como bem perceberá quem me ler e conhecer algo da matéria). A harmonização legislativa era essencial para proporcionar a livre circulação das mercadorias no espaço europeu. Por essa razão, era necessário produzir legislação à escala da Europa, que depois teria de ser transposta para a ordem interna de cada país. E, a partir daí, ser respeitada pelos operadores económicos.

Era isso que íamos tratar nessa reunião. Na véspera, no "hall" do Hotel SAS, com a Maria José Salazar Leite, a Lénia Real e a Regina Quelhas Lima, num ritual que iria durar alguns anos, eu tinha passado a pente fino a posição portuguesa sobre todos os diplomas que iam estar sobre a mesa do Conselho de ministros, neles identificando eventuais interesses nacionais a salvaguardar, alterações a propor e, em geral, o nosso sentido de voto na decisão final sobre as "diretivas" em causa. A nossa posição era baseada nas opiniões recolhidas junto dos "ministérios sectoriais" (fórmula algo pedante que o MNE utiliza para se referir aos outros departamentos governamentais), que deveriam ter auscultado previamente a nossa indústria interessada. Era assim que as coisas se passavam e, julgo, ainda se passam.

O grande berbicacho para nós, nessa reunião, era um diploma que incluía regras muito estritas sobre o ruído máximo permitido às motos e motorizadas. Recordo-me que, dentre os Estados dessa Europa então apenas a 15, Portugal e a Itália estavam em clara minoria, na defesa de um nível elevado de decibéis, que entendíamos deverem ser permitidos ao funcionamento dos escapes das viaturas dessa natureza produzidas pelas suas indústrias do setor. Ao ler a papelada à minha frente, lembro-me de ter pensado na barulheira que as "Zundapp", as "Pachancho" e as "Famel" faziam pelas ruas da Vila Real da minha juventude e, por um momento, senti-me representante dessa bárbara produção lusa de ruído e fumarada.

O assunto começara por ser analisado nos "comités" da Comissão europeia, onde os setores técnicos são ouvidos, mas o projeto de "diretiva" não contemplou os nossos interesses. A discussão do texto, nos meses anteriores, no seio dos "grupos de trabalho" do Conselho, também não acomodara as nossas pretensões e o diploma passara no "Coreper I" (comité dos representantes permanentes, versão representantes adjuntos) com as nossas "reservas". Porém, as objeções de Portugal e da Itália estavam longe de ser suficientes para construir uma "minoria de bloqueio", pelo que nos restava politizar o tema em Conselho de ministros, afastada, no entanto, a hipótese de invocar o chamado "interesse vital", para bloquear o diploma. É que um interesse só é "vital" quando os outros o reconhecem como tal.

Aquele era o primeiro Conselho de ministros em que eu participava, como secretário de Estado dos Assuntos europeus (quatro anos depois, havia de presidir a esse mesmo Conselho, durante um semestre). Como alguém dizia, "não há uma segunda oportunidade para se criar uma primeira impressão". Isto era válido perante os meus colegas de governos estrangeiros como o era perante a delegação portuguesa. Por isso, com base em sínteses, estudei o assunto tão bem quanto pude, a fim de bem defender as nossas "cores". A certo passo da reunião, pedi, para a fila de trás, onde estavam os técnicos, o texto completo do projeto legislativo: passaram-me um imenso "tijolo", com resmas de anexos, que devolvi discretamente, ciente de o não conseguir ali descobrir nada.

Chegado o momento na discussão da diretiva sobre o ruído das motos e motorizadas, intervim cedo, lendo uma "speaking note" que me havia sido preparada pelos serviços, texto que, na noite anterior, eu "oralizara" com umas expressões menos técnicas, para dar um tom mais político ao meu discurso. Fui solene e grave. Expliquei, com falsa sapiência e escudado em argumentos técnicos especiosos, que, em absoluto, era impossível à nossa indústria baixar de X decibéis, com os motores a operar a Y por cento da sua potência. Detalhei, com números catastróficos, os impactes sobre o desemprego que um grau de exigência maior na diretiva iria ter, com o encerramento de fábricas e crise nas regiões onde elas se situam. Em apoio às teses que defendia, disse (em português, porque nos Conselhos de ministros fala-se, em regra, a língua nacional) frases técnicas que eu só a custo havia entendido - e que, imagino hoje, devem ter chegado "lindas" aos ouvidos dos meus colegas holandês ou finlandês, retraduzidas através do inglês. Porém, acabei a minha prestação com a perceção, lida na cara das outras delegações, que a minha argumentação não os comovera minimamente. O "tour de table" foi, de facto, esmagador: constatava-se que Portugal e Itália estavam isolados.

Com simpatia e imensa ironia, o presidente da sessão, o secretário de Estado espanhol Carlos Westendorp, dirigiu-se então às delegações, dizendo qualquer coisa parecida com isto: "Agradeço as vossas intervenções, as de quantos apoiaram com veemência as virtualidades da diretiva como as de quantos ainda discordam de alguns aspetos que ela comporta. Mas, meus caros amigos, sejamos honestos connosco próprios: nenhum de nós sabe rigorosamente nada do que está a falar! Isto é uma matéria de alta tecnicidade, que somos chamados a decidir politicamente, mas sobre a qual a nossa opinião é apenas a que nos é dada pelos especialistas, que prepararam as "speaking notes" que, de forma tão esforçada, todos vocês leram. Verifico que a Itália e Portugal alegaram ter problemas com a diretiva e, a crer no "dramatismo" das suas declarações - em que todos somos obrigados a acreditar -, isso pode ter implicações para as suas indústrias. Convido, assim, a Comissão europeia a estudar, com essas delegações, a instituição de um "período transitório" para as mudanças a introduzir na sua respetiva legislação, dando às suas indústrias algum tempo mais para se adaptarem. E espero que, quando o assunto aqui voltar no próximo mês, todos me poupem à sua "sapiência" sobre os ruídos das motos".

A sala caiu em risos e, já não me recordo bem como, o assunto lá foi encaminhado. Por mim, e para o futuro, aprendi para sempre em não ser muito enfático sobre assuntos cuja tecnicidade desconheço.

A vida é feita de irónicas contradições. E pergunto: será que, um quarto de seculo depois, a diretiva está a ser cumprida? Ou ainda perdura alguma "derrogação" que dá liberdade a quem me estraga a noite? E será culpa minha, desses tempos, de algo que me tenha escapado? Terei razões para ter algum peso na consciência, desses (demasiados) anos nas lides europeias?

6 comentários:

Anónimo disse...

Como eu o entendo senhor embaixador! Deve-se a uma moto de barulho estridente o facto de a esta hora estar com uma tremenda insónia e aproveitar para ler o seu blog,deparando-me com um artigo que nem de propósito. Por favor cumpra-se e faça-se cumprir a referida diretiva de uma vez por todas!

José Sousa disse...

Mas que lindo texto...
“A sala caiu em risos” - não podia ser de outra maneira, pois não sabiam “rigorosamente nada” do que estavam a falar.
Decisões políticas!
PARABÉNS!

" R y k @ r d o " disse...

São assim os contrastes e contradições da vida
.
Tenha uma terça-feira de Paz e Bem
Cumprimentos

Luís Lavoura disse...

Eu creio que o problema não é a forma como as motas são produzidas, mas sim a forma como elas são modificadas. Ou seja, à saída da fábrica elas fazem pouco barulho, mas depois os utilizadores modificam-nas por forma a que façam muito.

Trata-se pois de um problema de fiscalização, não de um problema industrial.

Paulo Guerra disse...

Eu também concordo que poucas coisas irritam tanto como o barulho das motorizadas. De noite e de dia. Na maior parte dos casos por alterações dos proprietários que optam por suprimir o silenciador de fábrica.

Mas o que me apraz dizer sobre o sector e que se aplica a outros segmentos da indústria em geral é que podia e devia ter sido muito mais apoiado pelo Estado. Antes e depois da Revolução. Antes e depois do Mercado Único, onde podíamos e devíamos ter chegado muito mais fortes. Sobretudo para o bem-estar de uma zona muito específica do país que viu uma zona industrial de alguma dimensão e muita tradição fechar de um dia para o outro. Como, por exemplo, um projecto com investidores que ainda chegou a estar em cima da mesa na década de oitenta e que reunia numa holding as principais marcas de motociclos e que poderia ter formado um cluster interessante. Que mesmo sem internacionalização podia dar um bom contributo à balança comercial externa pela via de menos importações.

Hoje é tão errado um país pensar que pode produzir tudo e por essa via ser auto-suficiente em todas as áreas como não produzir qualquer bem transacionavel e passarmos todos a viver em exclusivo de serviços. Que porventura venderíamos todos uns aos outros. Em Portugal chegou a haver tradição, marcas e um know how bastante satisfatório no sector. Inclusive com marcas, como o Casal, que chegaram a ter algum reconhecimento internacional. Que como já disse ainda hoje podia ser um cluster interessante. Que podia ter enfrentado o mercado único e sobretudo o dumping japonês com outra força. Nem que fosse num segmento muito particular, como o das scooters. Uma óptima solução de locomoção diária num país felizmente com muito bom tempo e infelizmente de baixos salários e onde chegamos inclusive a produzir motorizações reconhecidas lá fora. Que evitavam muitas importações.

Senão veja-se como com a morte anunciada dos motores a combustão, portanto com o contador outra vez a zero para todos, um pequeno país como a Croácia já consegue ter hoje uma das marcas de topo – a Rimac – nos carros eléctricos. E poucas coisas elevam mais o nome de uma Nação que boas marcas. Em Portugal, no passado como hoje, precisamos de muito mais ligação do mundo da produção às Universidades. Nunca mais me esqueço que um dos maiores espantos dos estudantes portugueses nos primeiros anos do programa Erasmus, foi verificar que lá fora vários semestres das mais variadas áreas faziam-se já no mundo empresarial. Portanto fora dos muros das Universidades.

António disse...

As motorizadas modernas quase não fazem ruído. De origem...

Parabéns, concidadãos !