terça-feira, junho 23, 2020

Duas pessoas


 

Falamos do final dos anos 50 do século passado.

A primeira pessoa. Recordo-me de lhe chamar senhora Gilberta. Na realidade, o nome dela era Maria, mas era conhecida por Gilberta, por ser a “Maria do Gilberto”, sendo que o Gilberto era o marido (ou seria o pai?). Morava depois dos Quatro Caminhos, lá para São Mamede. Vinha a nossa casa, em Vila Real, algumas vezes por semana, para trabalhos mais pesados, complementando aqueles que a “criada de dentro” fazia.

A Gilberta, recordo-me, tinha buço e um cabelo muito preto, apanhado atrás. Andava com um passo rápido.

A segunda pessoa. Convenhamos, para o que aqui conto, que se chamava Laurentino. Era meu colega de escola primária. O Laurentino era mais alto do que a maioria de nós e o professor, o Pena, tomou-o de ponta, sendo objeto das regulares reguadas nas mãos que, com evidente sadismo, ele nos distribuía com abundância.

Um dia, foi anunciado que um subsecretário de Estado da Educação ia visitar a nossa escola - que se chamava Escola Conde de Ferreira, o nome de alguém que tinha feito fortuna no tráfico de escravos e que, talvez para se absolver, tinha oferecido algumas dezenas de edifícios idênticos pelo país.

Para a visita do governante, foi pedido que os alunos tivessem uma bata. Nenhum de nós tinha bata. Os meus pais mandaram fazer uma para mim. Foi usada um dia, só nesse dia, apenas para o subsecretário nos ver, no breve minuto que passou na sala, connosco de braço estendido em saudação dita romana (outros diriam fascista). Nunca mais a usámos.

O Laurentino não esteve presente nesse dia. Os pais não tinham dinheiro para lhe mandar fazer uma bata. Aliás, não tinham dinheiro para muitas outras coisas.

Quer o aqui chamado Laurentino, quer a Gilberta, andavam, o ano todo, descalços. Fizesse sol ou neve, que às vezes também fazia, lá por Vila Real. Não me recordo dos pés do Laurentino, mas lembro-me bem de notar que a parte dos pés da Gilberta que andava em contacto com o chão tinha adquirido uma espécie de espessura, que funcionava como uma segunda pele.

Esta é uma conversa desagradável? Imagino que seja. Mas essa era a realidade do país da forte pobreza de alguns. O salazarismo era isso. Era desagradável.

18 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Aprecio ao seu justo valor que alguém vindo da "alta", porque a "alta" nesses tempos não era preciso vir da Serra da Estrela, bastava ser funcionário, por exemplo, tenha as palavras justas para descrever os "sinais" visíveis da imensa pobreza que reinava no famoso jardim à beira mar plantado.

Eu olhava para os "carrejoes" que levavam pesos enormes às costas, para ganhar a sopa de couves da Casa do Pobres...Nesses tempos, os humanos eram frequentemente concorrentes dos animais...Até puxavam carroças!

Eu "faltei" ao desfile da Mocidade Portuguesas no estádio 28 de Maio, em Braga, em 1940, porque o meu Pai não me podia ver "fardado" ! E muito menos ver o "salut fascista". Como o da Legião Portuguesa...

E pensar que existem saudosistas desse tempo, neste blogue...

alvaro silva disse...

Isto trás-me á lembrança um outro episódio do mesmo jaez.
A D. Amélia professora das quatro classes da única escola mista (não havia discriminação por sexo na minha aldeia regada pelo rio Minho)foi informada que o sr ministro da Educação desse tempo iria fazer uma visita a várias escolas do Alto Minho, como era uma aldeia rural nem se pôs a hipótese de usar bata pois ninguém a tinha, mas que as crianças se vestissem com a roupa de domingo e assim foi, Os rapazes carregaram ás costas uma mesa-secretária da escola cerca dum quilómetro, cortaram-se umas palmas e fez-se um arco festivo sobre a dita mesa coberta com toalha de alvo linho. A sra. professora fez duas filas, uma de rapazes e outra de raparigas. Esperamos nestes "preparos" mais de uma hora. Ás tantas aparece no fim da recta (nesses tempos era do-lá-vem-um automóvel) um carrão preto com uma bandeirinha na proa. Era o dito cujo homem. O carro abrandou um pouco os alunos batiam palmas (não houve saudação á romana por absoluto desconhecimento dos infantes e talvez da professora, abriram uma das janelas e só vimos uma mão e.... desapareceu para nunca mais ser visto pelos escolares. Lembro.me como se hoje fosse da desilusão nossa, da D. Amélia e da sra. presidente da junta de freguesia. Sim ouviram bem, era nesse tempo uma senhora a presidente da junta de freguesia pois havia nesse tempo autarcas mulheres, quem diria?

Anónimo disse...

Pois. A minha avó, com cinco ou seis anos, andava (descalça, claro) a apanhar bosta dos caminhos para vender. Ah, mas já me esquecia: não havia corrupção, os políticos eram honestos, e havia respeito, não era esta bandalheira que há agora. É assim que se deve dizer, não é?...

Luís Lavoura disse...

O salazarismo era isso. Era desagradável.

Não. O país era pobre e desagradável, não devido ao salazarismo, mas porque sempre assim fôra. Já antes do salazarismo o país era desagradável (na 1ª República passava-se muita fome).

Luís Lavoura disse...

Conde de Ferreira, o nome de alguém que tinha feito fortuna no tráfico de escravos e que, talvez para se absolver, tinha oferecido algumas dezenas de edifícios idênticos pelo país

Excelente lembrança. É exatamente a mesma história daquele indivíduo cuja estátua foi derrubada e atirada ao rio em Bristol, Inglaterra. E deve haver muitas estátuas deste Conde de Ferreira por este país fora...

Anónimo disse...

Agora imagine o meu espanto, menino da cidade de Lourenço de Marques (muito desenvolvida na altura) quando em 1960 e tal e depois em 1972 deparei com esta triste realidade, aqui na Metrópole. Via aqui nos brancos uma miséria que só via em alguns negros em Moçambique. E um nível civilizacional nas aldeias que não era muito superior às aldeias do mato de Moçambique. Se lá havia algum racismo (que não era de todo o modo agressivo) aqui havia, entre os brancos, uma brutal e agressiva discriminação social, que me chocou imenso. A metrópole era, afinal, uma terra assustadoramente atrasada.

Jaime Santos disse...

Era a 'ditadura dura' na Metrópole, por contraponto à 'ditadura doce' para as colónias, nas palavras de um desses anónimos que por aí andam. Resta saber para quem, claro.

Na Guiné-Bissau, era comum as populações serem recrutadas pelos administradores de posto para fazerem trabalho gratuito até à chegada da tropa, cuja mania de pagar salários minimamente decentes enfureceu os comerciantes da então Teixeira Pinto, actual Canchungo, porque ficaram sem mão-de-obra.

Trabalho forçado sem salário tem um nome. Chama-se escravatura, a mesma que fez enriquecer o Brasileiro torna-viagem, comerciante de 'grosso-trato' (um merceeiro grossista, diríamos hoje) de mercadoria, gado e gente, Joaquim Ferreira dos Santos, credor da coroa, sucessivamente, barão, visconde e conde de Ferreira. Sei alguma coisa dele porque faleceu perto de onde vivo, aqui no Bairro Oriental...

É, Senhor Embaixador, o colonialismo português era desagradável, o salazarismo era desagradável, viva o 25 de Abril!

Que naturalmente deve ser extremamente desagradável e indigesto para muita gente... Paciência, habituem-se...

José Manuel Silva disse...


O salazarismo, foi o que resumidamente descreveu, e muito mais. Nos dias de hoje, pasmo, como ainda tem tantos saudosistas. Algo, deve ter corrido mal, no nosso processo democrático

" R y k @ r d o " disse...

Só de ler esse nome me arrepia. Também vivi descalço e levei muitas reguadas. Nem é bom recordar esses tempos...Fico emocionado como podiam haver almas e corações tão cruéis.
.
Um dia feliz
Cumprimentos poéticos

dor em baixa disse...

Pelo que leio as coisas eram semelhantes em todo o lado. A minha escola também era Conde Ferreira, alguns dos meus colegas vinham a pé desde as aldeias, sempre descalços, verão e inverno. O professor também tinha prazer em aplicar pesadas doses de reguadas. Um dia,à 10a bem assente na mão do Rui ouviu-se um estar na turma que levou o professor a saber que era o dia do seu aniversário. Parou e disse"foi a sobremesa".

Anónimo disse...

No meio de todo este disparate que por aí anda, o FSC lá continua agarrado à sua "viagem" pelo Antigamente. O mundo talvez pegue fogo mas, à luz das labaredas, iremos poder ler mais um texto sobre os tempos da ditadura. Aguarda-se a publicação sobre a licença para isqueiros e a condução em mangas de camisa, duas coisas que traumatizaram gerações.

Entretanto, em Inglaterra, os trabalhadores do futebol são agora obrigados a fazer propaganda/ativismo e a ajoelharem-se nos jogos (numa chocante violação do princípio da liberdade de opinião), anunciam-se perseguições a quem se atreva a discordar da propaganda na via pública e continua-se a vandalizar estátuas e outro património.

Continuamos sem saber quem é o Jaime Santos.

Paulo Guerra disse...

Nas caixas de comentário do Observador dizem que na recta final já íamos a caminho da Suiça. Com metade do país analfabeto.

Anónimo disse...

Desculpe Jaime Santos mas o senhor deve ser dos tais que fala e sabe de colonialismo sem ter conhecido as colónias...

Anónimo disse...

Nessa mesma altura, no Porto, no Liceu Alexandre Herculano lembro-me da azafama para receber o Secretário de Estado da Educação.
Pode ter sido durante a mesma visita, talvez em 1957 ou 58.
Tenho é a certeza de quem era:
Baltazar Rebelo de Sousa in office de 1955 a 1961.

Reaça disse...

Isso de ir descalço para a escola é que ainda não havia a loja do chinês nem a loja dos trezentos, nem o pronto a vestir nem o pronto a calçar com fabrico de contravenção.

Os ciganos das feiras e o chinês foram a verdadeira revolução em Portugal.

De facto o Salazar não tinha a mínima imaginação para resolver os grandes problemas criados em oitocentos anos de história.

Deixou apenas um pequeno pé de meia que deu para se brincar aos prec e aos abrilismos durante uns tempitos.

Anónimo disse...

A democracia não conseguiu resolver muitas das questões que se lhe depararam.
Isso aconteceu por excesso de confiança, pois, um democrata acredita que a superioridade dos seus valores são praticamente universais.
O seu principal falhanço foi na "dessalazarização".
Esses brandos costumes vão custar-nos caro.
Hoje, a maioria dos portugueses não sabe nada do que era viver sem liberdade.
Se for necessário voltar a lutar por ela não vai ser fácil encontrar quem a defenda.

sts disse...

O pais era pobrete antes, continuou pobrete com o salazar e continua pobrete agora.Um terço dos portugueses são miseráveis e outro terço pobre. Mas o pais ficou mais rico... em palermice.

JFM disse...

Sr Embaixador, fez bem em lembrar estas realidades. Na minha mais tenra idade recordo-me de passar alguns dias, das férias grandes, em casa de familiares nas aldeias dos arredores de Aveiro e Viseu. Havia sapatos para alguns, muito poucos.
Havia isso sim cântaros à cabeça, em casa luz, uma lâmpada e fraquinha, e aquecimento central, os animais viviam por baixo, "na loja", etc..
Seria interessante que os teóricos estudar sem alguma coisa sobre o salazarismo, por exemplo sobre o delito de opinião.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...