quinta-feira, junho 25, 2020

Um adeus especial


Há semanas, tomei a decisão de entregar ao espólio bibliográfico que, com o meu nome, existe, desde há uns anos, na Biblioteca Municipal de Vila Real, um conjunto de livros que, há mais de meio século, tinha começado a organizar. 

Já estavam, pela Biblioteca, muitos e muitos livros, que lhes fui, aperiodicamente, encaminhando, desde que regressei definitivamente a Portugal. 

Mas esta era uma coleção muito especial. Comecei-a quando tinha menos de 20 anos. Trata-se de obras políticas sobre a I República e, em especial, sobre o Estado Novo (tenho orgulho de dizer que está lá quase tudo o que foi publicado, em livro, sobre a luta da Oposição contra a ditadura), complementadas por bastante daquilo que saiu do prelo sobre o 25 de abril e a sua sequência imediata. A luta anti-colonial tem também ali farta representação. Particularmente curiosos são livros publicados no estrangeiro sobre Portugal, quer por adeptos de Salazar, quer pelos seus exilados opositores ou por críticos estrangeiros da ditadura colonialista. Em muitos países descobri coisas interessantes sobre esse tempo de Portugal. Com franqueza, creio que nenhum daqueles livros é particularmente valioso, mas alguns são hoje muito raros, difíceis de encontrar no mercado.

Neste lento processo de “desligamento” voluntário de parte da minha biblioteca (ainda fico com uns milhares de volumes para me entreter, para além do que vou comprando), devo confessar, aqui entre nós, que este foi o único momento verdadeiramente traumático. Quantos anos andei eu, pelos alfarrabistas, a tentar encontrar alguns daqueles livros! Quanto prazer tive em ler aqueles textos bem datados, desde memórias ingénuas a coisas mais elaboradas, alguns com mensagens cheias de esperança, outros cheios de prosápia politiqueira. Mas está ali a História contemporânea de um país que é o nosso.

“Mas, se teve tanto trabalho a coletar esses livros, a que se sente afetivamente tão ligado, por que os não conserva consigo? Já não tem lugar para eles nas suas estantes?”, perguntarão alguns.

Tenho espaço (embora em dupla fila...), mas acho que dar-lhes um destino institucional acaba por ser a solução mais racional, até para proteger a sua integridade física e a sua integralidade como conjunto. Ao longo destes meses de confinamento, olhando para eles, dei-me conta de que só se tivesse sete vidas, como os gatos, é que conseguiria reler tudo aquilo (e alguns, dei-me conta, não cheguei nunca a ler, admito sem o menor problema).

Não sou, em geral, dado a grandes nostalgias. Mas, ao olhar aquelas centenas de volumes que agoram partem para Vila Real, algo em particular me tocou. Mas, adiante!

7 comentários:

Paulo Guerra disse...

Parabéns e obrigado por mais este serviço público.

José Sousa disse...

Só pessoas com muito boa formação, capazes de pôr o coletivo à frente do individual, podem tomar essa posição altruísta. Todos nós, mas em especial aqueles que vierem a beneficiar da sua utilização, ficaremos sempre agradecidos. PARABÉNS!

" R y k @ r d o " disse...

Bom dia:- Elogiável decisão.
.
Cumprimentos

Manuel disse...

não é espólio, é acervo.
espólio é o que fica de quem parte, e isso nós não queremos.

Anónimo disse...

Noto uma certa melancolia Senhor Embaixador! Julgo que todos o entendem, os nossos livros são parte de nós e da nossa história. É muita generosidade sua a doação a um espaço onde os vão valorizar. Agora permita-me um desabafo, também eu sinto nostalgia de outrora, da alegria das cidades de um futuro que não se avizinha nada promissor. Somos um país eternamente adiado, governado por vendedores de ilusões que apenas nos trazem tristeza, desanimo e pobreza!

Anónimo disse...

"Nostalgia de outrora".
A vida como a conhecemos está suspensa. Agora temos de aprender a viver numa pandemia, esperando que se transforme numa endemia.
Sem medo e muita responsabilidade individual. O SARS-CoV-2 vai continuar por aí enquanto houver hospedeiro...

É urgente proteger os mais vulneráveis, proteger não é transformar as suas moradas em guetos. É garantir acesso a bens essenciais, se, por estarem infetados ou em vigilância profilática, não puderem trabalhar.

Os portugueses são todos iguais, mas, precisam de cuidados diferenciados.

Tem de passar uma mensagem não repressiva.
Uns na praia e outros fechados em casa, não vai dar.

Mais, mais, mais transportes públicos, para ontem.

Os nossos números estão mais ou menos, desde sempre, agora melhores em fatalidades.
A região de Lisboa não saíu do planalto, que, persiste. É só.

Anónimo disse...

Em tempos fui visitante diário de uma biblioteca na zona da Grande Lisboa. 99% das pessoas que a frequentavam estavam lá para aproveitar a internet grátis e trabalharem/estudarem. Já havia mesas com "dono" e tudo. Alguns - numa suprema manifestação de inconsciência e arrogância -, colocavam as suas coisas numa mesa e, depois, desapareciam durante horas (literalmente), para voltarem ao fim do dia e lá fazerem algo. Adiante...

Um dia, forçado por uma mudança de morada, precisei de me desfazer dos livros e revistas que tinham sobrevivido à onda digital lá em casa. Cheio de vontade de "recompensar" a biblioteca pelo serviço que me tinha prestado durante meses, propus levar-lhes umas dezenas de livros - de romances a enciclopédias, passando por boas revistas de divulgação científica. Aceitaram, quase a contra gosto, meia dúzia de livros, argumentando que nem sequer tinham catalogado outras coisas que por lá tinham. Que não, que não... não podiam ficar com as minhas coisas. Acabei por deixar os livros na rua, para quem os quisesse levar ou, até mesmo, "perdidos" em casas de banho ou cadeiras de café.

Na verdade, não censuro os funcionários da biblioteca. As bibliotecas têm de ser corpos vivos que servem a comunidade e não apenas uma espécie de depósito que serve de medalha para autarcas que orgulhosamente anunciam ter X milhares de livros à disposição ou que se vangloriam do prestígio que é guardarem a "herança" de um qualquer filho da terra.

Aquilo que muitas vezes parece ser um ato de altruísmo não passa da necessidade prática de arranjar espaço lá em casa ou de fugir às críticas da mulher. Os livros oferecidos vão ser pesos mortos em prateleiras para as quais ninguém olha. Servem de decoração e pouco mais. Muitas das obras são consultáveis em edições modernas ou na Biblioteca Nacional (ela serve para algo!), ou estão, até mesmo, disponíveis em formato digital.

A mim tinha-me dado jeito que a biblioteca que eu frequentava tivesse ficado com as minhas coisas. Poupava-me alguma tristeza e trabalho e era menos lixo na rua. Faltou-me "nome", o mesmo nome que quem ofereceu inúmeras obras datadas e ultrapassadas que se encontravam no espaço teve para, "altruisticamente", se desenvencilhar daquilo que já não queria...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...