sexta-feira, junho 19, 2020

Histórias de Babel


Com um grupo de técnicos portugueses, oriundos de vários ministérios, eu integrava a delegação nacional a uma reunião internacional, numa cidade europeia. Iam ser cerca de três semanas de trabalho. A chefia formal da delegação competia ao ministro de um determinado setor, que apenas tinha de estar presente por um período de 24 horas. A coordenação dos trabalhos era assegurada pelo embaixador português na cidade,

A cada um de nós correspondia acompanhar um comité, onde assegurávamos a representação portuguesa e no qual intervínhamos, de acordo com a nossa especialidade, algumas vezes por iniciativa própria, na maioria dos casos sob instruções recebidas de Lisboa, em função do andamento dos debates.

O titular do primeiro comité a entrar em funções era uma pessoa muito agradável, tido por conhecedor da matéria em causa. Por mera curiosidade, talvez porque não houvesse muito mais que fazer a essa hora, eu e o Frederico Alcântara de Melo, que representava o Ministério da Indústria, acompanhámos o homem à reunião inaugural, sentando-nos em cadeiras por detrás dele. 

A reunião iniciou-se, vimos o homem colocar os auscultadores, notando que ele procurava acertar com os botões, para escolha da língua. A certa altura, voltou-se para trás e, em voz baixa inquiriu: “Qual é a posição para ouvir a interpretação?”. Havia duas posições possíveis: uma era para francês e outra para inglês, as duas línguas de trabalho. Explicámos-lhe. “Não é isso”, disse ele, “o que quero saber é a posição para ouvir em português”. 

Eu e o Frederico olhámos um para o outro e um de nós esclareceu: “Não há português nestas reuniões!”. O homem, fitou-nos com um ar espantado, olhos arregalados e, com uma imensa candura, confessou: “Mas eu não falo línguas!”. Estava convencido de que podia falar em português e que tinha assegurada a interpretação das intervenções dos outros.

Nessa noite, numa discreta reunião, o embaixador, um homem suave e compreensivo, fez uma reafetação de funções, com sacrifício da cobertura do trabalho de alguns comités. E lá passou o homem três belas semanas de férias junto ao lago.

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Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...