segunda-feira, junho 15, 2020

A Europa nos Jerónimos


Costumo dizer que sou um europeísta pela razão. Não faço parte de quantos, desde muito cedo, sentiram essa pulsão agregadora, em torno da bondade essencial de um projeto comum, vocacionado para abranger o continente em que vivemos, sob uma filosofia salvífica de concórdia, de paz e de progresso. Não tive essa fé. Pelo contrário, fui educado e, conscientemente, vi-me por muito tempo como um soberanista, porque essa era a geografia do meu patriotismo.

E por que é que isso acontecia comigo e com outros que pensavam como eu? Porque o espaço nacional era aquele onde sentia mais protegida a capacidade de, com os meus, com os cidadãos com quem partilhava este retângulo, poder ajudar a definir o nosso destino coletivo. Era a questão do peso da voz nacional nas decisões que então me preocupava: sermos nós a autodeterminar o nosso futuro. Para lá do Caia, os interesses eram outros, só pontualmente coincidentes com os nossos. E os nossos interesses é que contavam. Só esses.

Imagino que o primarismo desta leitura, que deliberadamente repito nesta cerimónia, quase em sentido contrário àquilo que ela própria simboliza, possa chocar alguns. Mas quis trazer aqui esta perspetiva, porque, tal como o Senhor Ministro costuma dizer em relação às ideologias que no passado frequentámos, não renego as minhas origens e sou mesmo herdeiro delas.

É essa mesma perspetiva que me permite relevar duas importantes lições que entretanto aprendi. A primeira, é uma lição de vida.

Há mais de meio século, numa aula, tive a ousadia de perguntar ao professor Adriano Moreira se ele via como possível, dali a três décadas, que as então províncias ultramarinas pudessem vir a ser independentes. Adriano Moreira disse-me que me daria uma resposta se acaso eu lhe pudesse definir, ali e agora, qual era o real significado do conceito de independência, ao fim dessas três décadas. Era uma hábil fuga à pergunta, mas era também a constatação de uma imensa verdade.

A independência mede-se hoje por padrões muito diferentes daqueles que então delimitavam a autonomia decisória do Estado-nação. Ser um Estado soberano, à luz do Direito Internacional, não é um certificado de independência, a menos que nos contentemos com a formalidade. Portugal seria hoje mais independente se não fosse membro da União Europeia? Qual seria o futuro do nosso país fora da União Europeia?

A capacidade de gerir o nosso destino, ao contrário do que alguns poucos ainda teimam em pensar, foi bastante potenciada por aquela que foi a mais importante decisão tomada pelo nosso país, na ordem externa, no último século - o pedido de adesão às Comunidades Europeias. 

Como iríamos sobreviver, como país, fora da União Europeia? Embora me pareça quase um exercício de ficção científica imaginar o que isso seria, sempre poderemos dizer, com orgulho patriótico, que não são 35 anos que mudam o destino de quase 900. Mas todos sabemos que nunca seria a mesma coisa.

Estamos aqui num ambiente de convertidos, pelo que não preciso de explicar o óbvio: e o óbvio é que, se não tivéssemos aderido em 1986, teríamos, sem a menor sombra de dúvida, estado a bater à porta da Europa comunitária alguns anos mais tarde, em condições bem menos favoráveis. Aliás, devo dizer-lhes que, por vezes, sinto calafrios históricos, só de pensar na tragédia que teria sido esse cenário alternativo.

Foi essa a minha lição de vida: ao longo destes 35 anos, primeiro com alguma indiferença, seguido de algum interesse, depois com crescente empenhamento e, finalmente, com grande entusiasmo, tornei-me, de um europeu racional num europeu de coração. Para mim, nos dias de hoje, a Europa é o outro nome da minha liberdade. Tenho mesmo dificuldade em conceber a vida de um Portugal, moderno e livre, sem a sua integração neste magnífico projeto comum de convivência política.

Mas tal como nem tudo foram cravos na Revolução que, numa noite, nos mudou os dias, nem tudo são hoje rosas na Europa que, entretanto, fomos ajudando a criar, porque o caminho, como dizia Machado, faz-se caminhando.

Essa foi a segunda lição que recebi: ao contrário do que muitos pensam, a Europa comunitária não é um seguro de vida. Pode tê-lo sido para alguns, em tempos de Guerra Fria. Já não o é mais, num tempo de paz morna em que vivemos. A Europa é um ideal mutante, a que temos de nos dedicar dia após dia, no qual é necessário que nos empenhemos e, muito em particular, cujos princípios e valores há que aculturar, melhorar e socializar.

Ninguém espere que a bondade do projeto europeu se imponha por si mesma, sem que haja um esforço de pedagogia por parte dos cidadãos e dos Estados, uma ação que não pode deixar de estar ligada a algum proselitismo, que possa ajudar a contrariar as campanhas de denegrimento da ideia europeia.

A Europa é hoje refém dos medos: do medo ao estrangeiro, do medo ao diferente, do medo ao futuro, do medo ao desemprego, das ameaças à segurança e à própria identidade. As nossas vidas, e a paz em que as queremos viver, sentem-se hoje ameaçadas por um conjunto difuso de riscos. Não vou ao ponto de dizer, tornando extensiva uma conhecida fórmula paroquial, que os europeus gostam de viver habitualmente. Mas gostam, como a maioria das pessoas de bom senso gosta, de viver com alguma previsibilidade, sem ter grandes surpresas, ao virar as esquinas do futuro. Ora a previsibilidade é hoje, mais do que nunca, como sabemos, um bem escasso, no mercado da felicidade coletiva dos povos. Foram os medos acumulados, racionais e outros, que geraram o Brexit. São os medos que alimentam os populismos, a informação distorcida, a aceitação fácil da mentira.

Aliás, já que estamos em tempos de pandemia e de testes, gostava que fizessem um teste fácil: onde é que prosperam as maiores reticências sobre o projeto integrador?

O denegrimento obsessivo da Europa, que afeta e vai bloqueando as próprias instituições europeias, tem hoje a sua sede naqueles países onde os grandes princípios do “template” democrático da União Europeia têm vindo a ser desafiados: os que não respeitam a separação de poderes, os princípios do Estado de direito, a liberdade dos media, a proteção das minorias e os princípios básicos de solidariedade, abrangendo refugiados e migrantes. E mesmo em outros Estados, onde, felizmente, as instituições ainda funcionam com total legitimidade, observe-se com a atenção que tipo de ideologias sustentam as forças políticas que mais reticentes se mostram em cumprir, com rigor, aquele corpo de princípios. O teste do algodão não engana.

Muitos dizem que o futuro do projeto europeu é incerto. Contudo, há que convir, não obstante todas as debilidades que resultam do facto de ser um projeto democrático de congregação de vontades nacionais muito diferentes, a Europa não se tem portado mal, se pensarmos naquilo que lhe tem caído sobre o quotidiano. A crise financeira foi um desafio, o Brexit e a hostilidade do antigo parceiro certo do outro lado do Atlântico foram outros, a surpresa da pandemia ajuda a desenhar um cenário sem precedentes.

E agora?

Podendo eu estar enganado, tenho uma fundada convicção de que não será pelos cifrões que a Europa se desagregará, por muito que alguns olhem esses mesmos cifrões como o alfa e o ómega do seu europeísmo. 

A falência da Europa, a ocorrer, terá lugar no dia em que os europeus - Estados e cidadãos - abdicarem do património de valores que consagra a autoridade moral do projeto. Nessa altura, o tal soberanismo de que lhes falei no início desta minha intervenção, ressurgirá em todo o esplendor, sob a forma dos nacionalismos que, no passado, conduziram a tragédias de que parece que já ninguém se quer lembrar.

Portugal teve, desde a data que hoje celebramos, uma presença construtiva e de grande dignidade na construção do projeto europeu, não obstante ter vivido ciclos políticos internos muito diferentes, com variados atores, em conjunturas nem sempre fáceis e, muito em especial, raramente eufóricas. Dentro desse projeto, estivemos sempre e continuamos a estar onde devíamos ter estado, às vezes com alguma ousadia, noutras expondo algumas fragilidades que são as nossas, mas nunca – e quero deixar isto aqui bem sublinhado – nunca pondo em causa a nossa partilha desta comunidade de valores e vontades à qual ancorámos o futuro.

Antes, proclamava-se, por cá, enfática e um pouco ingenuamente, que “a Europa está connosco”. Acho que estes 35 anos também provaram, sobejamente, que nós estamos com a Europa.

No início destes 35 anos, neste belo espaço, que lembra as viagens que outros fizeram por nós, pelos caminhos marítimos para o mundo, foi assinada a nossa adesão às Comunidades Europeias. Também neste mesmo espaço, há pouco mais de três anos, muitos de nós viemos prestar a última homenagem àquele que nos ajudou a descobrir o caminho político para a Europa. Permitam-me, assim, que termine lembrando a insigne figura de estadista, de homem da liberdade e de europeu que foi Mário Soares.

(Intervenção na cerimónia comemorativa do 35° aniversário da assinatura do Tratado de Adesão às Comunidades Europeias, no Mosteiro dos Jerónimos, em 15 de junho de 2020)

11 comentários:

JFMarques disse...

Excelente.
JFMarques

" R y k @ r d o " disse...

Boa noite. Também me considero um europeu de alma e coração. Direi mesmo que... europeu convicto

Deixando um abraço

Paulo Guerra disse...

Bravo Sr. Embaixador. Realmente é muito fácil constatar a falta de ferramentas macroecoecómicas para levar a cabo políticas públicas para combater as crises financeiras que têm abalado o Mundo, a Europa e Portugal. Sobretudo pela falta de resposta da UE à crise financeira que emergiu do outro lado do Atlântico em 2008 e que por falta dessa mesma resposta se tornou rapidamente na maior crise económica do nosso tempo… até à pandemia. Onde parece que felizmente já vemos outra UE. Mesmo que a sua principal preocupação seja a manutenção do mercado comum onde como todos sabemos uns ganham muito mais que outros.

Já um exercício muito mais complicado como diz e muito bem o Sr. Embaixador é tentar avaliar como seria tudo o resto fora da UE. Como até uma grande potência como o RU está prestes a descobrir. E em Portugal podemos sempre pensar no país que éramos antes da adesão. De quanto tempo levávamos de Lisboa ao Minho. Com localidades e localidades sem saneamento básico e/ou electricidade. Será que em três décadas teríamos chegado muito mais longe sozinhos? Sem livre circulação de pessoas e bens? Eu julgo que não. Como também continuo a pensar que em certos períodos a UE - como aliás o que já citei e que resultou do crash do subprime norte-americano e devastou por completo as economias dos países da Europa do Sul deixadas entregues a si mesmo - podia ter feito muito mais por países como Portugal. E com muito pouco esforço. Como parece estar disposta a fazer agora com a crise económica que já aí está, fruto da pandemia que continuamos todos a enfrentar.

Mas claro que há muito mais UE nas nossas vidas que a dívida externa e o défice público. Problemas para os quais o próprio país também tem que arranjar respostas muito diferentes daquelas que foi capaz até à data. Como para o envelhecimento e os baixos salários e a precarização laboral que infelizmente ainda prolifera pelo país todo. Como ainda agora e perante uma pandemia fomos capazes e quase de um dia para o outro, de criar testes e ventiladores com mais ligação às Universidades. E também por cá não faltaram vozes a garantir que Portugal nunca seria capaz de criar uma simples zaragatoa. Pois bem, não só criamos as zaragatoas como toda a tecnologia por trás dos testes. Tecnologia que inclusive já exportamos. E como numa economia global o verdadeiro valor acrescentado está muito mais associado à criação que ao fabrico… Ao conhecimento. Onde programas como o Erasmus também já ajudaram a mudar a vida de muitos jovens para muito melhor.

Mesmos os maiores problemas a nível global, da demografia ao ambiente e à fraca distribuição da riqueza, todos fruto de falta de regulação nas mais diversas áreas e de uma globalização insana, iam acabar por nos afectar muito mais fora do chapéu de chuva da UE.

jmflousada disse...

Muito bem !

Excelente discurso. Subscrevo totalmente.

Unknown disse...

Parabéns. O autor apresenta um ensaio de grande qualidade, em cujo conteúdo me revejo totalmente, que faz o retrato da Europa nos tempos de hoje e o posicionamento de Portugal na UE, passados estes 35 anos passados sobre a assinatura do tratado de adesão às Comunidades Europeias.
Sinceramente, tenho pena que essa cerimónia, e designadamente este ensaio de grande qualidade, a ser lido com muita atenção, não tenha merecido qualquer destaque na comunicação social.

Portugalredecouvertes disse...

"..A falência da Europa, a ocorrer, terá lugar no dia em que os europeus - Estados e cidadãos - abdicarem do património de valores que consagra a autoridade moral do projeto..."
gostei muito do texto todo!

Jaime Santos disse...

Lapidar. O génio de Soares resulta desde logo de ter percebido que o Portugal democrático saído da CRP de 1976 provavelmente teria acabado como um Estado cliente dos EUA ou da URSS, não tivesse enveredado pelo rumo europeu, o que poria em causa a própria natureza do novo sistema político.

Como aliás se viu pelo rumo tomado pelos nacionalismos progressistas nas novas independências, que acabaram todos transformados em Capitalismo de Estado onde impera a corrupção...

Mas a resposta hábil e ponderada de Adriano Moreira (sempre a pensar nas consequências e na ética da responsabilidade) não deixa de revelar o pecado original do regime do qual foi Ministro (e cabe não esquecer que se demitiu porque as tímidas reformas que implementou foram contestadas, mesmo se feitas tarde e a más horas).

E que foi a incapacidade de olhar para as independências das então colónias por outra perspectiva que não as ou da manutenção pela força desses territórios, ou da sua transformação em Rodésias à Portuguesa (como penso que era a ideia a prazo de Caetano), ou finalmente pelo perigo da sua queda na órbita de uma das super-potências (na da URSS, como foi o caso).

Só que uma via distinta teria implicado duas coisas. Uma efectiva transferência de poder atempada, com a criação dos quadros para a gerir nos diferentes territórios, e a capacidade de o fazer sob o signo da democracia e da reconciliação entre os colonos e as populações locais.

E isto teria necessariamente obrigado à própria democratização do nosso País.

Tivesse Humberto Delgado, o provável Presidente eleito, tomado o Poder em Portugal, e isto teria sido quiçá possível. Sob ditadura não o era obviamente.

Mas cabe notar que o único País em que uma potência colonial foi capaz de entregar o Poder a uma estrutura com tradições democráticas foi a India, onde o Partido do Congresso já existia há muito...

E que o único País africano onde a reconciliação racial e a democratização foi em larga medida possível foi a África do Sul, não sem a longa luta do ANC, não sem o génio de Mandela, e não sem o colapso primeiro dos socialismos do Leste...

Por isso, olhando para o Portugal de 1976, temos mesmo que, perante o que sabemos hoje sobre o que se passou noutras paragens, concluir que Soares tomou a única opção que assegura a Portugal o exercício máximo de uma soberania digna desse nome, enquanto os cidadãos são capazes de manter a autonomia garantida por um Estado de Direito que, por muito imperfeito que ainda seja, está a milhas do que era há 44 anos...

Anónimo disse...

Há uns quantos Países da Europa que não aderiram à UE e continuam com níveis de dívida substancialmente mais baixos que os nossos que hão-de ser muitas das próximas gerações a pagar. Culpa da CEE/UE ou má gestão do País?

Carlos Cotter disse...

Grande texto. Parabéns.

Rui C.Marques disse...

Magnífico , Francisco !

Anónimo disse...

Muito bom. A "Europa" vista por quem esteve e está por dentro. Obg.
As outras "Uniões Europeias" vistas por quem está por fora:
"The study explained that the world financial and economic system needed a complete overhaul according to which key sectors such as energy, credit allocation and food would be placed under the direction of a single global administration. The objective of this reorganization would be the replacement of nation states.
However, before this could occur, nation states would have to falter, or at least give off the impression of faltering.
The failure of the nation state is not a natural phenomenon but rather is the outcome of a fascist coup; involving a banker’s dictatorship, economic looting and permanent warfare (the Cold War never ended) to hinder national industrial growth."
Authored by Cynthia Chung via The Strategic Culture Foundation,

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...