Junho de 1985. Eu estava colocado na nossa embaixada em Luanda. A última coisa com que a televisão angolana se preocupava, com toda a certeza, era com a cerimónia que reuniu então, nos claustros dos Jerónimos, os líderes europeus, para a assinatura do tratado de adesão de Portugal às Comunidades Europeias. Os pormenores do evento só me chegaram dias depois, pelos jornais portugueses, que me vinham pela ansiada mala diplomática semanal, num país onde estava proibida a venda da imprensa internacional.
Não tenho a menor dificuldade em confessar: eu não era um grande entusiasta da adesão. A minha perspetiva política dessa época levava-me a ser muito reticente quanto às perdas de soberania que essa integração já então significava (e coloco o "já" porque a densidade das políticas europeias da época era ínfima, comparada com o que é hoje). Temia, em particular, que entrássemos, por essa via, num espartilho político-económico que limitasse a capacidade de decidirmos sobre o destino da nossa vida interna, que colocasse em causa os valores constitucionais plasmados, menos de uma década antes, numa Constituição que eu tinha por barreira sacrossanta às investidas liberais e anti-sociais.
Não me recordo, por isso, nesses dias cálidos de Angola, de ter sentido uma particular emoção ao saber do ato que teve lugar nos Jerónimos. A aventura europeia não me animava. Temia mesmo o pior. Enganei-me, redondamente.
Na década seguinte, fiz a minha aprendizagem prática da Europa: em cargos técnicos em Lisboa, em frequentes deslocações para negociações em Bruxelas, em anos de vida no ambiente anti-europeu de Londres, como subdiretor-geral dos Assuntos Europeus, até integrar o “grupo de reflexão” para a revisão de Tratado de Maastricht. Quem me diria, nesses dias em que o meu endereço luandense era a rua Karl Marx, que, logo no fim dessa década, iria ser, por mais de cinco anos, membro do governo encarregado das relações com a Europa. As voltas que o mundo dá!
Na passada segunda-feira, ao intervir naqueles mesmos Jerónimos, numa cerimónia em que saudámos a data de há 35 anos, evoquei, com alguma ironia auto-flagelante, o europeu reticente que havia sido, até chegar ao europeísta convicto que hoje me sinto.
Naquele ambiente que bem recorda quantos nos abriram os caminhos marítimos para o mundo, não pude deixar de lembrar uma pessoa de quem, há pouco mais de três anos, ali mesmo nos tínhamos despedido, que nos ensinou o caminho político para a Europa das liberdades: Mário Soares.
5 comentários:
Meu caro Francisco,
Eu trabalhei nessa (e para essa) cerimónia.
Lembro-me bem dela e de algumas historietas.
Aqui vai uma delas.
Uma das tarefas que tinha era a de assegurar que os carros das delegações estavam na ordem devida, de forma a seguirem rapidamente para o aeroporto, de onde, cada uma no seu avião, iriam para Madrid, a fim de lá assinarem a adesão de Espanha (Portugal aderiu primeiro!).
Qual não foi o meu espanto quando entre dois automóveis de uma comitiva se encontrou o carro do Marechal Spínola, cujo motorista só dali queria sair com uma ordem expressa do "seu" Marechal. Lá tive que retirar o "nosso" Marechal da cerimónia que logo mandou o chauffeur "pôr-se a milhas". Tudo acabou por correr muito bem, com a ajuda do Sr. Barreiros, depois funcionário da Reper, e de outros colegas que agora são Embaixadores.
Um abraço
JPGarcia
Antes saudar o caminho para a Europa quando se comemoram 35 anos do Tratado da Adesão do que como Mira Amaral, andar preocupado com o desaparecimento das cópias do relatório do grande guru Michael “Mais Valias” Porter, mais ou menos da mesma altura. Relatório que também esteve na base do grande arraso da produção nacional. Nomeadamente nos sectores primário e secundário. Relatório que encomendou para o grande reformador da Quinta Coelha. Do grande guru que matava logo à partida qualquer tipo de inovação, que basicamente era tudo o que Portugal já precisava há três décadas e continua a precisar hoje. Porque é o que verdadeiramente acrescenta valor, como ainda agora vimos com a criação de testes e ventiladores durante a pandemia. Claro que também podia andar preocupado com a falência do gabinete de modelos do grande guru das mais-valias e salários baixos. Mas não era a mesma coisa.
Não sei para que o relatório Porter é para aqui chamado, mas se bem me lembro, até dizia umas coisas sensatas, que tínhamos que investir naquilo em que éramos fortes. Curiosamente, se há sectores que depois deram a volta por cima, foram os têxteis e o calçado. É que construir uma indústria competitiva num dado ramo a partir do zero é um trabalho para décadas... Acho que na altura isto escandalizou imensa gente, mas era puro bom senso...
De resto, Senhor Embaixador, penso que a nossa atitude em relação à UE deve ser a de que se trata de um compacto de que tiramos vantagens mas que também gera obrigações. E que, assim como nós procuramos defender os nossos interesses, outros defendem os deles, nem sempre coincidentes. O tempo do Euro-optimismo já lá vai, é chegado o tempo do realismo...
Caro Jaime Santos,
Eu nem consigo imaginar algum estereótipo maior de provincianismo. Que também foi sempre o que melhor definiu o Cavaco. E os seus governos. Sobretudo numa nação que até deu novos mundos ao mundo. E eu até admito que há 25 anos ainda precisávamos de sair de Portugal para valorizar mais os portugueses. O que felizmente estou convencido que já não acontece hoje. E para quem também já não esteja lembrado Cavaco até “aparece” com um discurso totalmente oposto. Até se lembrar das propinas no ensino superior público – precisamente quando precisávamos de licenciados como de pão para a boca. O que sempre me levou a concluir que só pode ter servido para promover algum ensino superior privado. Que como todos sabemos hoje…
Não por acaso esta semana o MST até lembra o “nascimento de uma universidade privada, numa vivenda próxima do Príncipe Real, em Lisboa, fundada por um par de amigos, nenhum dos quais tinha sequer o 5º ano do liceu e um dos quais era praticamente inimputável. Que Bruxelas pagou e o Governo português licenciou.”
E investir naquilo que éramos fracos como a escola e sem a necessidade de pagar milhões a gurus da moda? Até porque o conhecimento também serve para termos centros de decisão nacionais. Também não por acaso ainda esta semana um grande catedrático de finanças públicas, como o Paulo Trigo Pereira, evocou essa mesma excelência de um passado recente na Administração Pública. A propósito da muita badalada necessidade de também chamar agora Costa e Silva para pensar a estratégia futura do país. E atenção, tal como aliás PTP, nada contra. Mas que não fiquem dúvidas que também resulta de anos e anos de desinvestimento na mesma Administração Pública. Que se me for permitido passo a transcrever um resumo:
“E com esse desinvestimento inevitavelmente tem decaído a qualificação dos seus servidores, o que tem acontecido pela desestruturação do Instituto Nacional de Administração e a extinção do Curso de Estudos Avançados em Gestão Pública. Com tem decaído o pensamento estratégico dada a extinção de uma sólida entidade que pensava em termos estratégicos: o Departamento de Prospetiva e Planeamento (DPP) por onde passaram ilustres economistas como João Ferreira do Amaral ou Félix Ribeiro... O recurso a Costa e Silva reflete a fraqueza do Estado. Um dos seus contributos principais será criar condições para que, no futuro, haja quem, no Estado, pense estrategicamente o país.”
P.S. Relatórios do guru em pdf é o que não faltam na net.
Errata: E para quem também já não esteja lembrado Cavaco até “aparece” com um discurso totalmente oposto a falar de inovação. Até se lembrar das propinas no ensino superior público – precisamente quando precisávamos de bons licenciados como de pão para a boca.
Nenhuma economia (Vitor Gaspar) nem nenhum país se desenvolvem com modelos teóricos de escolha múltipla mas com conhecimento real. Do país e do Mundo.
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