sexta-feira, junho 12, 2020

Uma Alemanha europeia



Por mais de uma vez, falei aqui nesta coluna no papel único que a Alemanha representa na Europa. O projeto integrador criado no pós-guerra, ou melhor, durante a Guerra Fria, só existiu pela consciência das democracias ocidentais, apoiadas pelos EUA, de que era indispensável ancorar definitivamente a Alemanha, nesse caso as três zonas de ocupação, a um modelo de liberdade, tutelado por um chapéu de segurança que se chamava Nato, isto é, América. A França, cooptada para os vitoriosos, funcionava como o parceiro central dessa aposta política.

Por muitos anos, a Alemanha teve a inteligência de manter um “low profile”. À esquerda e à direita, a sua classe política entendeu que lhe competia, essencialmente, projetar confiança e ganhar credibilidade. Fê-lo com grande cuidado na sua forma europeia de estar, nunca se mostrando demasiado “pushy”, aproveitando habilmente a sua insuperável prosperidade para assegurar meios que permitissem ir consolidando o projeto. O “tandem” com a França funcionou bem, em especial pelo facto da fragilidade desta ter contribuído para lhe retirar o papel preeminente que, nas primeiras décadas, tinha assumido.

O fim da URSS, a libertação das “democracias populares” que viviam sob a tutela e/ou sob o temor a Moscovo, mudou tudo. O fim do muro, com a reunificação da Alemanha, trouxe, como contrapartida, o “empréstimo” do antigo marco para a credibilitação da nova moeda única. Mas algo mais aconteceu: a fronteira divisória da guerra fria, que passava pelo território alemão, agora reunificado, trouxe uma “buffer zona” de segurança a Berlim (e já não a Bona), com o alargamento da Nato a ser um fator decisivo.

Os alemães passaram a sentir o direito de afirmarem uma maior assertividade no processo interno europeu e só o não conseguiram fazer no plano externo, com a gestação de uma nova “ostpolitik”, porque a atitude de Moscovo, somada à polarização em sentido contrário dos seus antigos “satélites”, o não permitiu. Para ser mais claro: o sonho de Berlim é criar uma relação de estabilidade sustentada com a Rússia. O que se passou na Ucrânia, com a imbricação irritante dos EUA, não ajudou a isso. Mas a “aposta” da Alemanha num entendimento durável com a Rússia permanece nas cartas.

Não vou ao ponto de dizer que a Alemanha é hoje o “gigante bom” da Europa, mas quero afirmar, sem a menor hesitação, que me parece óbvio que a Alemanha é hoje um fator incontornável de qualquer solução europeia. E ela sabe isso.

No passado, Adenauer, Brandt e Schmidt garantiram as credenciais europeias do país. Kohl percebeu a oportunidade da falência da URSS, reunificou o país e firmou o euro. Merkel, que parecia um sucedâneo de Kohl, mostrou, nos últimos anos, que tem uma visão para a Europa.

Merkel cometeu erros importantes. Na crise financeira, deu, com Sarkozy, passos que muito ajudaram à crise das dívidas soberanas. Fê-lo por razões “democráticas”: a sua opinião pública não se sentia predisposta a gestos concessionistas, face à falta de rigor financeiro da orla norte do Mediterrâneo.

Mas Merkel mostrou o seu lado humanista na questão dos refugiados e, na crise económica gerada pela pandemia, ajudada por uma presidente da Comissão Europeia que, talvez não por acaso, é também alemã, está a tentar forçar soluções de solidariedade intraeuropeia que, há poucas semanas, pareciam impossíveis. Desafia o seu próprio Tribunal Constitucional, promove uma verdadeira mutualização de dívida e encara impostos europeus – tudo tabus há muito pouco tempo. Alguns dirão que ainda falta convencer os “frugal four”. É verdade, mas não creio que a chanceler e a presidente da Comissão, com o apoio do BCE, tivessem ido até ao ponto a que chegaram se não tivessem gizado já fórmulas de recuo para fazerem passar as reformas que ousaram propor, sem as descaraterizar.

Gosto desta Alemanha europeia, tanto quanto nunca gostei da ideia de uma Europa alemã.

4 comentários:

Anónimo disse...

Aparentemente vai ter que continuar a viver com o não gosta. Paciência.

Jaime Santos disse...

A Europa poderia facilmente ter sido alemã na sequência da unificação alemã e da vitória sobre a França na Guerra Franco-Prussiana. Bismarck, recorde-se, demite-se em parte porque discordava da política imperialista da Alemanha, ele que dizia que os Balcãs não valiam os ossos de um granadeiro da Pomerânia.

A Alemanha era o estado mais avançado da Europa, até nas instituições sociais (as pensões de reforma e as caixas de assistência na saúde foram criadas por Bismarck) e na presença de um movimento social-democrata forte (daí a criação desses instrumentos a que os social-democratas se opuseram).

As ambições imperialistas da Alemanha, que desembocaram no paroxismo imbecil e assassino do III Reich, destruíram a Alemanha e adiaram essa hegemonia comercial e tecnológica.

O Brexit não é mais do que o reconhecimento por parte do Reino Unido, a única potência ocidental que pode competir com a Alemanha (a demografia e a História contam muito), que as estratégias de industrialização de Wilson (exposta no famoso discurso do White Heat em 1963) e de financeirização de Thatcher, falharam ambas perante a estratégia ordoliberal estável da Alemanha (um País que nunca alinhou em nacionalizações massivas, por exemplo).

A adesão do RU à CEE fez-se pelo reconhecimento de que o crescimento continental era superior ao seu e a saída faz-se pelo reconhecimento de que foram incapazes de bater a Alemanha no seu terreno de jogo.

Johnson é mais um discípulo de Wilson do que de Thatcher nessa medida. O mais certo é que falhe, como se viu pela gestão desastrosa da pandemia. Andar a mudar de estratégia todos os 30 anos não resulta muito bem...

Como o Sr. Embaixador bem diz, a Alemanha busca um entendimento com a Rússia, que lhe permita uma relação duradoura com esta e que lhe permitirá compartilhar a zona de influência de ambas que é o Leste Europeu.

A presente tomada de posição não é mais do que o reconhecimento de que a UE, que serve naturalmente os interesses alemães, só subsistirá se a Alemanha assumir o seu papel de potência hegemónica benevolente.

Os alemães gostam mais do Mercado Único do que das suas regras de prudência fiscal, parece... Ou seja, os banqueiros e os comerciantes prevalecem sobre os ideólogos... Ainda bem...

Anónimo disse...


Sr. Embaixador, as democracias liberais são uma ficção !!!

Veja-se o que se passa, actualmente, na maior democracia ocidental, os Estados Unidos…

Veja-se o que se passa, actualmente, na maior democracia do Mundo, a India …

E concluímos que andamos enganados há mais de 70 anos !!! Convivemos com uma monstruosa mentira !!!

Fake news, fake news !!! Sr. Embaixador.

E que dizer dos que têm colaborado nessa mistificação ?

João Pedro

Francisco G Tavares disse...

A crise das dívidas soberanas, desde a Grécia, mostrou que a zona euro é uma ficção. A febre ideológica é tal que se continua a chamar "crise das dívidas soberanas" ao brutal aumento da dívida pública, entre 2008 e 2010, em que todos os Estados europeus incorreram para salvar seus bancos atingidos pelas ondas subprime dos EUA. Os resgates a partir de 2010 (essencialmente para salvar a banca dos países credores), diabolizaram os povos, deixando na sombra a irresponsabilidade da banca na criação dos desequilíbrios financeiros, e a irresponsabilidade de quem persiste nos erros de base da zona euro. O mundo ficção continua: é a falta de rigor financeiro, e esconde-se que as sucessivas crises têm a ver com o mau desenho da UEM e as políticas e mitos da austeridade e do equilíbrio orçamental. Isso tem significado, bastamente demonstrado, o progressivo recuo e destruição dos Estados de bem-estar e de milhões famílias.
Imaginemos que as economias do norte criam o seu “euro” e se desligam dos países do sul. Primeiro efeito: o novo “euro” valorizaria em relação ao atual euro. Daqui resultaria, para esses países, importações mais baratas e exportações mais caras. Para quem iriam eles exportar os seus famosos excedentes comerciais? Afinal, quem lhes paga/compra os seus virtuosos excedentes? Desde o início do euro, esses “virtuosos” países mais não têm praticado que uma política de “beggar-thy-neighbour”. Os responsáveis políticos insistem nos mitos da virtuosa poupada dona casa da Suábia, das contas orçamentais saldo zero por cima de tudo, dos países deverem todos ter excedentes, mas quem serão afinal os deficitários?
A história do Tribunal constitucional alemão é mais do mesmo: expõe mais uma vez a farsa do euro. As diversas encarnações da flexibilização quantitativa foram pacotes de resgate orçamental: salvar os governos comprando a sua dívida e eliminando o risco de insolvência. Mas a intervenção do BCE, política monetária, já mostrou os seus limites. Não resolve o problema central: o Sul da Europa estava e está em depressão e a única saída é a expansão dos défices orçamentais. O que o acórdão do Tribunal faz é dizer o rei (arquitetura da UE) vai nu.
Tem razão Giuseppe Conte, se vamos para o fundo, nós italianos, então vamos todos para o fundo. Terá sido essa linha dura de desespero que terá assustado Merkel e Lagarde. E é esse medo que força Merkel a avançar numa outra linha, contornando a atual estrutura da UE e seus Tratados. O Pacto foi suspenso, não revogado, o MEE ninguém a ele quer recorrer e nada disto é por acaso. Como também não é que o SNS de todos os países membros estava uma lástima, ou que os serviços de saúde privados que cresceram à sombra de uma Europa alemã e entregue ao capital privado, primam pela ausência de participação na pandemia. Não é por acaso a falta de meios técnicos para combater a pandemia, porque à conta da concorrência selvagem promovida pela UE esta se tinha desindustrializado a favor doutras regiões. Exemplo: a falta de máscaras e a lentidão com que passaram a ser produzidas em Portugal, enquanto a China em pouco mais de uma semana monta uma fábrica máscaras: Porquê? Porque tem tecido industrial minimamente articulado, o que não sucede na Europa, que estará preparada apenas para responder às necessidades de produtos intermédios da indústria alemã. E projeto para refazer a Europa produtiva? Silêncio, fala-se apenas dos milhares de milhões euros criados pelo BCE mas isso não é criação de empregos, é esconder a falta deles.
A ação da Alemanha (vg. Mecanismo Europeu de Estabilidade), servindo para aguentar o euro, o que é do seu interesse, não ajudou ao crescimento nem à melhoria da vida dos cidadãos da eurozona, nem à redução do fosso que separa na zona os países mais desenvolvidos dos mais atrasados.
Com a crise do coronavírus, suspensa a aplicação dos limites impostos pelo Tratado Orçamental, o único projeto de “mutualização” bem visível é o do BCE transformado em gestor orçamental da UE. Esta é que me parece ser a realidade da Alemanha europeia.

RTP

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