terça-feira, junho 16, 2020

Um nó na garganta


Sou um pouco hipocondríaco. Costumo dizer que sou um hipocondríaco “feliz”, porque, às vezes, vou tendo umas maleitas que dão alguma razão às minhas preocupações. Por sorte, tenho estado, ao longo da vida, quase sempre errado quanto à gravidade daquilo de que acho que padeço. Pelo menos, tem sido essa, até hoje, a conclusão dos médicos. Ainda bem para mim, ainda mal para a minha hipocondria.

Um dia, vai para trinta anos, num hotel campestre na Isle of Skye, na Escócia, acordei com um nó na garganta, com dificuldade de engolir. Entrei em pânico e comecei a “empreender”, como se diz na minha terra. Liguei logo para o meu médico, em Londres.

Era um clínico geral, com consultório na, à época na moda, Sloane Street. Fora-me recomendado por alguém da embaixada. Era (então, porque passaram 30 anos) um homem novo, simpático, sempre com um sorriso cordial, com quem estabeleci, desde o primeiro dia, uma fácil empatia, a qual, contudo, não dava direito a descontos. E não era um médico barato, mas o seguro de saúde da Bupa (do que eu ainda me lembro!) cobria boa parte do preço das consultas. 

Angustiado, expliquei, o melhor que pude, o que sentia. “O que é que o meu amigo anda a fazer na Escócia?”, perguntou-me o médico. Expliquei que tinha alugado um carro e andava, há uns dias, num circuito, meio turístico, meio gastronómico. Do outro lado da linha, veio uma questão terrível: “Você está convencido que tem qualquer coisa de grave na garganta, é isso?” Confessei que sim, notando, contudo, que a pergunta tinha alguma ironia associada.

“Olhe, Francisco! Ainda me lembro da nossa última conversa, aqui no meu consultório. Falou-me de um restaurante que tinha aberto em Notting Hill. Já lá fui e é bastante bom. E de outro, com cerveja “trappiste”, que tinha descoberto em Camden Town. Ainda não consegui ir. Imagino que, tendo estado em Edimburgo, tenha ido ao Martin. Acertei? E tem também andado a visitar destilarias de whisky, não é? (Era). O que você tem, meu caro, é o produto de um refluxo do estômago. Vá a um Boot’s, peça um anti-ácido qualquer e, em meia dúzia de horas, fica fino. Está na Isle of Skye? Ó homem, não perca a destilaria do Talisker! Se gosta de whiskies com “peat”!”

Também gostava. Fui ao Boot’s, fui à destilaria e fui gozar a Isle of Skye. E, de facto, não era nada.

16 comentários:

7ze disse...

Boa noite, senhor Embaixador.

Já estava preocupado consigo. O dia 16 de Junho não teve qualquer post, o que é único, na minha lembrança. Quase fiquei com um nó na garganta, hipocondriando por si...

Já agora, aproveito para lhe dar os parabéns pelo magnífico e patriótico texto pró-europeu, que antecede este (mesmo julgando fora de tom o elogio final), o qual deve ser entendido em paralelo com um outro que o precede (o da americanização da Alemanha e do seu novo plano Marshall).

Tenho de tomar cuidado com a minha religiosidade na sua leitura, quase ne converte à sua razão...

Deliciosa, a história de Adriano Moreira que partilhou. Também tenho essa lembrança bem marcada, da inesgotável paciência com que o senhor professor ouvia as questões dos "atrevidos" e a amorosa inteligência com que os devolvia à reflexão. Um verdadeiro mestre, de quem uma das maiores glórias que sobrará, será decerto alguns discípulos que espevitou. Muito bem escolhido, para ser lembrado, no contexto em causa.

Não duvido que, também dos seus contributos, algo sobrará, na espuma dos dias...

Obrigado por existir

Francisco Seixas da Costa disse...

Muito obrigado 7ze. É bom ler estas coisas!

" R y k @ r d o " disse...

Bom dia:;- Nós homens somos muito medrosos, lol. Qualquer dorzinha é uma catástrofe. Ainda bem que foi apenas um susto e tudo se resolveu a contento.
.
Deixando cumprimentos

Luís Lavoura disse...

Pois, o álcool seca a garganta e o estômago, o que causa quase inevitavelmente refluxo gástrico.
Depois do whisky tem que se ficar acordado pelo menos uma boa hora, para ter tempo de engolir suficiente água, caso contrário acorda-se a meio da noite com a garganta a arder.

Luís Lavoura disse...

Mas que sítios deveras esquisitos onde o Francisco passava o seu tempo. Na Escócia, em meio de paisagens desoladas e quase sem gente. Não me passaria pela cabeça ir para sítios desses.

E visitar destilarias. Que interesse tem isso? Cá em Portugal também há muitas destilarias, e eu até hoje somente visitei uma (pequenina, de aguardente de medronho, na serra da Estrela). Eu bebo o produto das destilarias, mas não vejo grande interesse em ver onde ele é fabricado...

Luís Lavoura disse...

Já que o Francisco percebe da produção de whisky, talvez ele (ou outro leitor) me saiba esclarecer sobre o seguinte: de onde vem o cereal para a produção do whisky? É que, o whisky é produzido a partir de misturas de cereais (cevada, milho, centeio e trigo, segundo leio na wikipedia) e, que eu saiba, o clima escocês (e irlandês) não é muito apropriado para a produção maciça de cereais, sendo que o cereal tradicional da alimentação dos escoceses não é nenhum desses, mas sim a aveia. Eu então questiono se a Escócia produz assim tantos cereais que se possa dar ao luxo de os transformar maciçamente em whisky, ou se os cereais que lá são destilados são importados de algures.

Anónimo disse...

O Luís Lavoura é uma personagem fictícia?

Manuel disse...

Sabem qual é o epitáfio do hipocondríaco?
"Veem como eu tinha razão!"

Cícero Catilinária disse...

Infelizmente é real, anónimo das 11:20.
E há muuuuuitos anos, para mal da nossa paciência.

Paulo Guerra disse...

Mas por que carga de água os antepassados dos escoceses se lembrariam de destilar cevada senão tivessem cevada? Ou produziriam lã senão tivessem ovelhas para tosquiar? No Douro também se começou a fazer vinho porque cultivavam essencialmente batatas? A cevada da Escócia é efetivamente uma das melhores do mundo. Por tudo e mais alguma coisa. Assim como a turfa que é usada para defumar a cevada durante a secagem dos grãos. E sobretudo têm algumas das nascentes de águas mais puras. E rios com águas provenientes do degelo do polo. Águas essas onde os grãos da cevada são postos a germinar artificialmente (a famosa maltagem). Porque a cevada é o único cereal que tem a capacidade de transformar amidos em açúcar por germinação sem qualquer calor artificial. Et voilá, the Single Malt.

Paulo Guerra disse...

Algumas das mais tradicionais destilarias ainda hoje estão sedeadas onde nasceram. Ou seja, na mesma propriedade, com a mesma terra onde sempre cultivaram a cevada e com a mesma nascente de água que sempre utilizaram. As mesmas salas de maltagem, os mesmos alambiques e os mesmos cascos de carvalho. Tudo o que serviu para engarrafar a primeira garrafa.

AV disse...

A Escócia é um sítio magnífico para passar férias e algumas das nossas melhores férias foram lá passadas, sobretudo na costa oeste e nas Highlands.

Luís Lavoura disse...

Paulo Guerra, obrigado pelos seus esclarecimentos.
A cevada é um cereal muito rústico que, apesar de ser originário do Médio Oriente (que é onde foi domesticado), cresce bem em climas extremamente frios. Em particular, a civilização tibetana subsitiu ao longo dos séculos essencialmente alimentando-se de cevada.

Anónimo disse...

Olá Sr. Embaixador. Foi com muito agrado que li neste seu blog a grande aventura, na Ilha de Skye. Achei imensa piada.
Talvez não saiba (também consumo Talisker 10 anos). Foi-me recomendendado por uma amiga, sobrinha do "uncle Harry", leader do Clam McKenzie....
Ps.- Infelizmente já não nos podemos preocupar (muito) com o nosso RK, o grande provador de Whiskys.

Anónimo disse...

Obrigado, também, para Paulo Guerra.

Paulo Guerra disse...

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