quinta-feira, agosto 15, 2019

Na cave da vida



Houve um período da minha vida em que me deu para colecionar alguns êxitos de música “country”. Creio que tudo começou na Noruega, depois da frequência de uns shows manhosos onde isso também era tocado, numas caves fumarentas de Oslo, com muita cerveja e aquavit à mistura. Cheguei mesmo a pensar, por algum tempo, incluir Nashville nos meus destinos de visita futura.

Ao final de alguns anos, dei-me conta de que, com exceção de certos nomes mais clássicos, tudo aquilo resultava um pouco primário, repetitivo, em termos musicais, pelo que o meu gosto se foi esbatendo, embora sem desaparecer por completo. Sei, porém, que há muita gente que discorda desta avaliação.

Um dia de 1990, em Londres, vi pelo “Time Out” que a mais mítica figura da “country music” ia atuar na cidade. Ver ao vivo Johnny Cash era algo que eu não podia perder na minha vida. E, claro, não perdi.

O bilhete para o concerto foi, para minha surpresa, surpreendentemente barato. O espetáculo tinha lugar no, até então para mim desconhecido, “National Club”, em Kilburn, uma zona com forte presença de irlandeses, na parte norte de Londres. Recordo que me aconselharam a estacionar o carro num local bem iluminado...

À hora marcada, chegado ao local do concerto, percebi melhor a modesta tabela de preços. Entrámos numa sala de espetáculos antiga, apinhada, com a maioria dos espetadores vestidos “à maneira”, alguns com patuscos chapéus de “cowboy” e camisas de estilo, elas com coletes e saias com fitas de cabedal. Posso imaginar que nós, vestidos à “betos”, devemos ter passado por uma espécie de “ET”. 

Os nossos lugares foram no meio do que me pareceu ser um grande balcão, que recordo com mesas comuns, de vários lugares, para os quais aquele pessoal carreava “baldes” de cerveja quente. Nunca tinha estado, de forma tão isolada, num ambiente idêntico, confesso. Por entre a barulheira, íamos sorrindo para os nossos forçados vizinhos de mesa, todos com ar de se conhecerem entre si, e que, aos berros, perguntavam de onde vínhamos, de certo apenas com vontade de inquirir o que diabo estávamos ali a fazer, tão “fora do baralho” nós éramos.

A entrada de Johnny Cash em cena foi um delírio. Aquecido o ambiente com o clássico “Folson Prison Blues” e meia dúzia de outros êxitos, como seguramente o “Man in Black”, o cantor fez uma pausa e deixou em cena um trio de jovens de guitarra, as quais, logo aos primeiros acordes e mostra de vozes, se percebeu serem de muito fraca qualidade. 

Com justiça, a sala correspondeu, como esperado: uma imensa pateada e um sonoro coro de “uuuhs!” que logo obrigaram Cash a regressar momentaneamente à cena, saindo-se com este comentário esclarecedor: “Don’t panic! I’ll be back!”. 

Lá conseguiu, com isso, uma acalmia provisória nos protestos, mas o ambiente só se recompôs por completo quando, ao fim de uns minutos de um penoso e medíocre show das pequenas, ele regressou, final e definitivamente, ao palco, para o seu espetáculo. 

A noite acabou, claro, num imenso e merecido apogeu a Cash. Os seus melhores anos já tinham passado, mas a sua mística não diminuira. Por mim, considero que ganhei bem aquela noite! 

Lembrei-me disto há minutos, num “zapping” televisivo que, de novo, me trouxe Johnny Cash, numa memória nostálgica numa qualquer televisão estrangeira. 

Na minha coleção de 33 rotações (mais de 800!), creio que tenho bastantes discos de Cash, Loretta Lynn, Willie Nelson e outros nomes clássicos da “country music”. Que já decidi não voltar a ouvir. Está tudo numa cave, lá por Vila Real, ao lado de uns caixotes com milhares de livros. É uma espécie de cave da vida...

1 comentário:

andré maia disse...

«...Que já decidi não voltar a ouvir.»

...

Bem, senhor Embaixador, dito dessa maneira - com tamanho ênfase - melhor fora que me remetesse às minhas tamanquinhas e não cedesse à vontade de vir aqui desencaminhá-lo ou, melhor, a sugerir-lhe uma alternativa à sua cave.

Ainda que não me considere, nem pouco mais ou menos, um conhecedor - ainda assim!... - sempre lhe digo que Johnny Cash está longe de ser uma espécie de monte Evereste da música "country". Poderia, se calhasse, falar-lhe de outros, calculando que os nomes não haveriam de lhe soar estranhos. Opto por um deles.

Que acha disto? https://www.youtube.com/watch?v=M1wUTxb5vNc

Pronto, não vou insistir!... Imagino não ter sido capaz de lhe atenuar as arestas, mas diga lá que, uma vez por outra, não sabe bem uma viagem até às caves da vida...!

O outro lado do vento

Na passada semana, publiquei na "Visão", a convite da revista, um artigo com o título em epígrafe.  Agora que já saiu um novo núme...