quinta-feira, agosto 08, 2019

O senhor comandante


Aquelas longas noites do Hotel Trópico, em Luanda, nos primeiros meses de 1982, eram uma verdadeira "seca". Eu sofria o choque cultural de uma mudança direta, do meu anterior posto, na organizada Noruega. para a então caótica Angola. Por quatro longos e não saudosos meses, por ali me instalei.

Pelas salas do Trópico, fui conhecendo alguns portugueses, parte deles expatriados por razões económicas, às vezes apenas por semanas ou meses, e que atenuavam a sua solidão na conversa, a ouvir música ou em jogos de cartas.

Um dos bons amigos que fiz nesse ambiente, e que só há pouco tempo voltei a reencontrar, foi o Hélder Martins, funcionário da empresa de transportes STAR. Numa dessas noites, o Hélder convenceu-me a alinhar numa mesa de sueca que se criara entre alguns clientes. 

Sou, em regra, avesso a entrar em competições de qualquer natureza e, em matéria de jogos de cartas, o mais “longe” que chego é à sueca, à bisca, às copas ou à lerpa. Mas porque a única atividade lúdica alternativa que por ali havia - o visionamento, numa minúscula televisão a preto-e-branco, de alguns jogos do campeonato do mundo de futebol, que então estava a ter lugar em Espanha - se tinha entretanto esgotado, deixe-me entrar na jogataina. 

No grupo, havia um homem jovial, falador, bem mais velho do que nós, de S. João da Madeira, que representava em Angola uma empresa de calçado. A meio do jogo, ao pedir uma rodada de bebidas, vi que, apontando para mim, disse para o empregado: "Ali para o senhor comandante, é uma cerveja". De facto, eu tinha dito, instantes antes, que “o que agora caía bem era uma "Cuca”!” Estranhei ser qualificado de "senhor comandante", mas nada disse. Olhei para o Hélder Martins, que sabia perfeitamente que eu trabalhava na Embaixada, mas não notei na sua cara nenhuma surpresa. Optei por não reagir e, quando ela chegou, lá bebi a cerveja.

No dia seguinte, ao almoço, perguntei ao Hélder: "Você não achou estranho que aquele tipo, ontem, me tivesse tratado por 'senhor comandante'?". O Hélder retorquiu-me que não. É que, sabendo que eu tinha feito o serviço militar, por conversas anteriores, presumiu que, nessa qualidade, eu tivesse servido na Marinha, pelo que havia deduzido que o homem de S. João da Madeira sabia disso. Expliquei-lhe que a minha "arma" era bem mais prosaica, que eu havia sido oficial de "administração militar" no Exército, onde a minha especialidade era "ação psicológica", que nunca havia sido sequer "comandante de pelotão". E rimo-nos, esquecendo o assunto.

Passou, talvez, um mês. Eu havia, entretanto, deixado de frequentar as salas de estar do Trópico com tanta frequência. Uma noite, voltei a ver por lá o homem de S. João da Madeira, que simpaticamente me saudou, ao longe. 

Um dia ou dois depois, o Hélder Martins foi abordado por ele. Queria que ele me "metesse uma cunha": não tendo confiança comigo para me colocar, pessoalmente, o pedido, aproveitava a intercessão do Hélder, para, junto de mim, conseguir um "OK" para o voo da TAP para Lisboa, no dia seguinte. O avião estava cheio e "aquele seu amigo é que pode ajudar, como ninguém, a desenrascar-me o lugar", disse ele.

O Hélder surpreendeu-se. "Mas porquê ele?", perguntou. "Então, sendo ele comandante da TAP, deve poder conseguir isso, não?". "Comandante da TAP? Ele é diplomata na Embaixada de Portugal!", reagiu o Hélder. "Ai é?! É que, há tempos, vi-o à conversa com uma hospedeira da TAP, no bar do hotel, e fiquei com a ideia que ele fazia parte da tripulação, que sempre ali se aloja...".

("For the record", que fique claro que tenho a certeza de que a minha conversa com a hospedeira foi casual e bem inocente, não me recordando de ter assumido nenhuma particular familiaridade com a "colega"...)

Quando viajo na TAP e ouço, pelo altifalante do avião, aquela "rassurante" mensagem com que os comandantes se dignam saudar os passageiros, a meio do voo, acontece-me frequentemente lembrar-me que também "fui", um dia, "comandante" daquela companhia...

1 comentário:

Anónimo disse...

Podes tirar o então antes do caótico
Fernando Neves

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...