Foi há 44 anos. Éramos 23 os novos diplomatas, com a categoria de "adidos de embaixada", que, nesse dia 11 de agosto de 1975, entraram no Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Eram 18 homens e cinco mulheres - as primeiras que, na história portuguesa, tiveram acesso à carreira diplomática. Até então, essa era uma profissão fechada ao sexo feminino. Para que conste: foi o novo ministro dos Negócios Estrangeiros quem alterou a legislação. Chamava-se Mário Soares.
O concurso abriu em novembro de 1974. Alguém me falou nele e decidi concorrer. Posso hoje confessar que fi-lo como um mero "desafio" a mim mesmo, muito mais de natureza lúdica do que de particular interesse por aquela específica carreira, embora as questões internacionais me interessassem, desde há muito. (Datam de 1967 os primeiros artigos que escrevi, na "A Voz de Trás-os-Montes”, sobre temas internacionais).
Estava então a cumprir serviço militar - e estávamos no auge da Revolução, comigo envolvido nela até à exaustão! Fazia ainda algumas horas diárias de trabalho para a Ciesa-NCK, que muito me ajudavam a “arredondar” o fraco pagamento militar. No final da “tropa”, regressaria naturalmente à Caixa Geral de Depósitos, onde tinha entrado por concurso público em 1971, e que, aliás, remunerava bem melhor do que o MNE. Mas achei graça tentar perceber se a “nova diplomacia” do país me aceitaria. (Por muito tempo, pensei intimamente que, feito o concurso, me daria "ao luxo" de não chegar a tomar posse).
Ao longo de todo o primeiro semestre de 1975, comigo engalfinhado profundamente nesses tempos agitados da Revolução, sucederam-se as provas: português, francês, inglês, correspondência diplomática, prova escrita de conhecimentos (lembro-me de que me "calhou", por sorteio, ter de escrever, durante quatro horas, sobre as relações internacionais da China, desde a criação da República Popular até à entrada para a ONU), duas provas orais (duas matérias sorteadas, entre 99 temas de Direito Internacional, História Diplomática, Relações Económicas internacionais) e, finalmente, a “lotaria” que era a prova "de apresentação" -uma conversa eliminatória com três diplomatas séniores, um dos quais o chefe da carreira, secretário-geral do MNE.
Na prova oral, havia-me “saído”, como arguente, um desconhecido professor do então ISCEF que, se bem me lembro, se chamava Aníbal Cavaco Silva. Foi uma hora (medida com ampulheta) nada fácil. Mas "fair"... Quase tão complicada seria a segunda prova oral, horas mais tarde, ainda no mesmo dia. Um sufoco!
Acabadas as provas, dentre as largas centenas de candidatos, fui admitido. Fiquei a meio da tabela. Continuei, por algum tempo, a hesitar muito em aproveitar o ensejo. Não tinha então, admito, o menor interesse em ir viver para o estrangeiro. Seria possível ser diplomata ficando a viver sempre em Lisboa, como eu gostava? Por mais incrível que isto hoje pareça, convenci-me de que talvez fosse. Essa ilusão contribuiu, recordo-me, para que decidisse tomar posse.
Embora estivesse no serviço militar, mas de acordo com "l'air du temps", eu tinha então um cabelame pouco de acordo com as NEP's, coroado por um imponente bigode. (Olhando a minha fotografia da época, imagino a “linda” impressão que devo ter feito!).
Recordo que a posse foi num dia muito quente. E eu só tinha um fato de inverno! Entrámos no adamascado gabinete do secretário-geral, onde assinámos, um a um, o ato de posse. Um dos colegas levou mesmo o pai para assistir... Todos eles ingressaram, de imediato, nos serviços por onde foram distribuídos (à época, começava aqui a primeira e discreta discriminação entre nós). Eu, contudo, regressei, ainda que por poucas semanas, ao serviço militar, do qual ainda não estava totalmente dispensado. E fui entretanto obrigado demitir-me da Caixa Geral de Depósitos (o que eu hesitei!).
Três dias antes da nossa posse, iniciara funções o V Governo Provisório, o executivo mais à esquerda que Portugal alguma vez teve, presidido por Vasco Gonçalves. Sabia-se que era um governo "de transição", como o presidente Costa Gomes o qualificara no respetivo ato de posse. Duraria pouco mais de um mês.
Era ministro dos Negócios Estrangeiros esse homem notável que se chamou Mário Ruivo, de quem eu viria, anos mais tarde, a tornar-me amigo e admirador. Ele tinha como chefe de gabinete Manuel Braga da Cruz, então meu "camarada" do MES (mas que eu não conhecia pessoalmente) e que, muitos anos mais tarde, viria mais tarde a ser reitor da Universidade Católica Portuguesa.
Na véspera da minha posse, o Agostinho Roseta, um saudoso amigo que, à época, também fazia serviço militar, disse-me que o ministério informara Mário Ruivo de que nenhum diplomata se mostrara disponível para integrar o seu gabinete, por medo de futuras represálias em termos de carreira. Vinha assim sondar-me, em nome do ministro, para o lugar de "secretário do ministro", como então se designavam os adjuntos do gabinete.
Em plena e expectável coerência com a minha posição política de então, disse ao Agostinho que era óbvio que Mário Ruivo podia contar comigo. (Para a cultura dominante no MNE, eu começava "bem"!). A minha única limitação era o facto de ter de terminar o meu serviço militar, pelo que não poderia entrar em funções no gabinete antes de 10 de setembro.
Quando, finalmente, ingressei no MNE, o governo estava já no seu extertor. Vasco Gonçalves seria substituído por Pinheiro de Azevedo em 19 de setembro. Não cheguei a fazer formalmente parte da equipa de Mário Ruivo mas, nem por isso, a disponibilidade que demonstrara para integrar o mais “maldito” de todos os gabinetes ministeriais que o MNE teve deixaria de me ser lembrada, anos mais tarde, por um secretário-geral da casa. O mesmo que, sem o menor sucesso, tentou um dia, dessa vez formalmente, que eu retirasse do meu currículo, publicado no Anuário do MNE, a menção de ter sido assessor da Junta de Salvação Nacional, um ano antes. Recusei. Feitios...
3 comentários:
Felizmente alguns textos vão continuar "grandes"!
Excel. Textos e dimensao., Sr. Embaixador..
Mais interessante as vezes, e ver OS pontos nos I" na historia dos jornais do passado.
Belo texto Sr. Embaixador. Ao contrário de outros, não o acho extenso. Gostei em particular da sua 1a. prova oral, com o arguente a ficar fascinado pelo seu grosso adereço capilar. Aí, teve que falar consigo. Olhe que na entrada do elevador do Banco de Portugal, pela manhã, nem o bom dia dava.
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