segunda-feira, agosto 12, 2019

Agostos da vida - Os pides


Estávamos em Agosto de 1974 e os agentes da polícia política PIDE/DGS (os “pides”), presos na sequência do 25 de Abril na cadeia penitenciária de Lisboa, haviam iniciado um novo motim. Era um movimento em tudo idêntico ao que tinham desencadeado no início do mês e que dera origem à  constituição de uma “comissão de inquérito”, composta por um representante de cada um dos três ramos das Forças Armadas, da qual eu era relator, enquanto oficial miliciano do Exército. 

Tinha assumido essas funções na qualidade de membro da Comissão de Extinção da ex-Pide/DGS e LP. Para tal, havia sido colocado como assessor do general Galvão de Melo, membro da Junta de Salvação Nacional. Galvão de Melo, da Força Aérea, era um dos sete membros da Junta, que então dirigia o país, e, seguramente, a figura mais à direita dentro daquele órgão. Por uma singular ironia, competia-lhe a tutela da Comissão de Extinção da polícia política do anterior regime, tarefa que o não entusiasmava por aí além. E, por outra singular ironia e fruto de diversas circunstâncias, coube-me em rifa ser seu assessor.

Os pides consideravam então estar a ser vítimas de uma imensa “injustiça”, seriam totalmente infundadas as inúmeras acusações de torturas e atentados aos Direitos Humanos que sobre eles impendiam, a esmagadora maioria jurava nunca ter feito outra coisa que não fosse estar nas fronteiras a pôr carimbos nos passaportes. Uns anjos, em suma! 

Descontentes com o prolongamento da sua detenção e respectivas condições, mobilizados por um qualquer pretexto conjuntural, os pides tomam alguns guardas da Penitenciária como reféns, abrem o “gradão”, a porta de ferro que lhes permite invadir a parte central da prisão, e anunciam que estão “à disposição” do general Galvão de Melo, que acabara de fazer uma polémica e ultraconservadora proclamação televisiva, que lhes terá ressuscitado a esperança de uma libertação rápida. 

No auge desta nova crise, o chefe da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, comandante Conceição e Silva, foi de helicóptero ao Algarve, com o seu adjunto Alfredo Caldeira, para tentar obter orientações de Galvão de Melo. Na conversa, o general, enfadado por ver interrompida a sua estada no concurso hípico da Penina, terá deixado os seus interlocutores de mãos a abanar.

Estávamos assim, num domingo à tarde, reunidos no gabinete do director da Penitenciária, a discutir o que fazer a seguir. 

Esgotadas algumas hipóteses de solução, o José Manuel Costa Neves, chefe de gabinete de Galvão de Melo, decide tomar o assunto em mãos: “Eu vou lá dentro falar com os pides. Quem é que quer vir comigo?”. A idade tem destas coisas e a precipitação é uma delas. Por isso, disse de imediato: “Eu vou contigo”. Arrependi-me no segundo seguinte, mas já era tarde: cinco minutos depois estava a seguir a figura alta e corajosa do então major (hoje general) Costa Neves e a entrar no meio de uma chusma de pides, que sabíamos que tinham armas retiradas aos guardas e desconhecíamos se tinham a intenção de também ficar connosco como reféns. 

Enquanto o mar de pides se abria como as águas do mar Vermelho, para ambos podermos chegar ao centro da prisão, comigo numa taquicardia de tardio bom senso, recebo um leve toque num ombro e volto-me, sobressaltado. Dou de caras com o “Navalhas”*, um colega de escola primária em Vila Real, que eu não via há muito e desconhecia ter escolhido tão distinta opção profissional.

“'Tás porreiro? Então por aqui?”, saiu-me, num registo social, como se o estivesse a encontrar no Rossio, à porta da Suíça. Apertei-lhe a mão, quase caloroso, para me dares ares de confiança bem à vista do grupo, que tinha já cem olhos sobre mim, com o “Navalhas” a retorquir-me: “É verdade! Quem também cá está é o “Bilrau”*, mas não aderiu”. O “Bilrau” era também um antigo colega de liceu que, do mesmo modo, eu desconhecia ter enveredado pela prestigiante carreira de pide. E o meu convívio social-pidesco estendeu-se então, com a maior naturalidade, ao ausente “Bilrau”: “Ó 'Navalhas', dá um abraço meu ao 'Bilrau'… e tive imenso prazer em ver-te, pá!”. 

Esta rápida sequência de vénias de cordialidade passou-se, aparentemente, sem que o Costa Neves nada notasse, entretido que estava já a lidar com os cabecilhas do motim e a transmitir ao selecto auditório as presumidas orientações de Galvão de Melo. Dez minutos depois, para meu imenso alívio, estávamos cá fora, sãos e salvos. Os pides acabaram por não se render na sequência da nossa esforçada diligência e só foram “convencidos”, horas mais tarde, pela chegada de um pelotão de “fuzos”, os Fuzileiros Navais que Conceição e Silva mandou vir do Alfeite. 

Desde esse inesquecível mês de Agosto de 1974, nunca mais vi o “Navalhas” ou o “Bilrau”. Coitados, com o acordo de Schengen, até ficaram sem fronteiras para praticarem a sua nobre profissão. Eles que só punham carimbos em passaportes...

(Estes nomes podem não ser exatamente os reais, mas não aceitarei deixar estes últimos sobreviverem no texto, se acaso vierem a surgir em qualquer comentário’

1 comentário:

Anónimo disse...

Divertida história, Seixas! Um dia escreva algumas das suas memórias.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...