sábado, julho 07, 2018

Tanto mar?


Um fim de tarde de 1989, com o sol a pôr-se ao fundo da montanha, encontrou-me na praça central de Ouro Preto. Olhando em volta, entre a rua Direita e a do Ouvidor, apercebi-me, pela primeira vez, que uma parte de nós mesmos, dos portugueses, ficou para sempre por ali, por mais cantado que agora seja o sotaque, por muito distante que o nosso próprio mundo agora possa estar. Essa imagem ficou-me gravada na memória e atravessou comigo os anos. 

Passou-se mais de década e meia antes de eu regressar ao Brasil e antes de perceber – de novo no casario de Ouro Preto, mas também no silêncio nobre de Alcântara, no bulício africano do Pelourinho de Salvador ou nas esquinas apressadas do centro do Rio – que, verdadeiramente, só se pode entender bem o que Portugal é, e não apenas o que Portugal foi, depois de mergulhar no Brasil.

A comoção de entrar no forte Príncipe da Beira, de tropeçar nos nossos vestígios em Nova Mazagão, de lembrar os Açores em Ribeirão da Ilha, de ficar esmagado pela monumentalidade do Real Gabinete do Rio, de fixar a decadência serena da Beneficência Portuguesa em Belém, de sentir o cheiro forte das lojas de tudo, frente ao mercado de Manaus – tudo isso é preciso para que se prolongue em nós a interrogação, sem resposta, sobre o que é, afinal, ser português no mundo. Não se é português porque se nasceu em Portugal. É-se português pelo somatório das viagens que outros fizeram por nós, dos que foram e voltaram cheios de histórias mitificadas das Pasárgadas que poderiam ter tido, mas também dos que não voltaram, dos que “queimaram as caravelas” e se entregaram aos novos mundos que fizeram seus.”

(Texto retirado da introdução ao meu livro “Tanto Mar? - Portugal, o Brasil e a Europa”, ed. Thesaurus, Brasília, 2008. Recordei-me deste texto, há minutos, ao chegar a Ouro Preto)

3 comentários:

Portugalredecouvertes disse...

muito bonito Sr. Embaixador,
penso que deveria haver mais valorização e divulgação da nossa parte desses lugares distantes, isso também iria ajudar os Brasileiros e outros povos!

votos de um bom domingo

Luís Lavoura disse...

só se pode entender bem o que Portugal é, e não apenas o que Portugal foi, depois de mergulhar no Brasil

Ora essa, não é somente no Brasil que há vestígios arquitetónicos de Portugal. Por exemplo em Goa (em Panjim) também fiquei surpreendido com a arquitetura totalmente portuguesa.

Anónimo disse...

Essa dimensão portuguesa no Brasil é muito comovente para nós. E não creio que o seja apenas na arquitectura e urbanismo (quase sempre sabiamente caótico), mas na cultura popular rural, ou naquilo que dela resta, que é pouco. Como é pouco o que resta em Portugal, ambos os povos abandonando o interior para enfiar os pés na água. Ouvi ainda inesquecíveis cirandas da minha infância em São Luís do Paraitinga, antes do acidente que a vitimou. E sempre ouço os discos produzidos pelo Marcus Pereira e editados em 70 no Brasil com saudade e emoção.

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