quarta-feira, julho 18, 2018

"Bandido" de ideias...


Li há dias que alguns presos de delito comum brasileiros qualificavam como “bandidos de ideias” os presos políticos com que, por vezes, coexistiam em certas cadeias, nos tempos da ditadura militar. Lembrei-me desta, afinal bela, expressão ao ler “As Cartas de Prisão de Nelson Mandela”, que agora a Porto Editora decidiu publicar. Eram as ideias, e a luta pela liberdade em afirmá-las e pelo direito de as levar democraticamente à prática, que o “apartheid” sul-africano lhe negava.

Ao longo dos anos, aprendi bastante sobre Mandela, desde a sua biografia até ao muito que sobre ele se escreveu, desde os anos de prisioneiro do “apartheid” até à sua dimensão como estadista. As 751 páginas destas suas cartas, se não me trouxeram grandes surpresas, ajudaram-me contudo a recortar, de um modo muito mais fino, o perfil psicológico de um homem muito raro, simples e complexo ao mesmo tempo.

É muito difícil, para quem lê a epistolografia de que foi autor durante os seus 28 anos consecutivos de prisão, desligarmo-nos do que Mandela acabaria por ser já em liberdade, do seu generoso papel na reconciliação nacional sul-africana, da sua conduta como líder democrático de um país que conseguiu resgatar de um dos mais abjetos regimes à face da terra.

Mas esse esforço de distanciação tem de ser feito: estas cartas, salvo talvez as últimas, já marcadas por uma libertação no horizonte plausível, representam mais de duas décadas de vida de uma figura condenada à prisão perpétua, a quem só a esperança podia servir de arma de resistência perante a opressão, quase limite, a que estava sujeita. É assim forçoso que nos coloquemos na perspetiva de quem viveu o ambiente concentracionário de Robben Island e de Pollsmoor, sujeito a constantes provocações, isolado da família e dos amigos, tendo apenas alguns companheiros de luta e infortúnio a seu lado.

É esse Mandela que está nestas cartas e é sobre alguns traços notáveis que delas ressaltam que gostaria de deixar algumas impressõDesde logo, o “recorte” que ele faz da sua própria situação, como prisioneiro político, perante um poder que considera e sempre afirma como ilegítimo. Ele assume naqueles textos uma permanente e nunca vacilante atitude de firmeza, de respeito por si próprio como ser humano e dirigente político, agindo sempre sem esquecer que estava ali como representante da dignidade de um povo que lhe não perdoaria a fragilização ou um qualquer compromisso perante o essencial. Jurista, tributário de uma cultura onde há muito da tradição legal britânica, Mandela mantém um registo frio no relacionamento com as autoridades que o privam da liberdade e que regularmente o procuram humilhar, exigindo-lhes em permanência o cumprimento dos direitos que a ditadura do “apartheid” não podia deixar de apresentar como face formal da sua ordem constitucional. E é muito interessante observar que essa reivindicação se torna ainda mais determinada e rigorosa à medida que se pressente que a consistência do regime, sob pressão de sanções e do crescente coro internacional de críticas, o ia forçando a conceder aberturas e a procurar estender “pontes”. É nesse tempo que Mandela se revela como uma grande personalidade política, não mostrando “pressa” em ser libertado, usando o embaraço que para o Estado sul-africano significava a sua manutenção na cadeia como hábil um instrumento negocial.

Ainda no plano da política, estas cartas revelam-nos a ideologia nacionalista subjacente à revolta dos sul-africanos negros, inicialmente muito tributária do exemplo da Índia, do papel de Nehru e de Gandhi, mas igualmente da onda de autodeterminação que varria a África. Muito curiosas – e que devem ser contextualizadas nesse tempo pós-Bandung – são as propostas políticas em que Mandela assenta o seu programa básico, uma espécie de socialismo nacionalista, com afastamento do marxismo caricatural, de onde já estão ausentes quaisquer pulsões autoritárias. Essa era também a forma que Mandela encontrava para negar a sua dependência do comunismo, com cujos seguidores não rejeita alianças, mas de cuja direção política se não considera refém. A política, em termos de projeto, era, para Mandela, um modelo de contraponto ao mundo do “apartheid” e isso significava a liberdade e o respeito por todas as ideologias que coubessem num processo democrático. A prática de Mandela viria a revelar-se consentânea com a teoria.

Mandela é profundamente africano. O respeito pela herança cultural dos antepassados, o orgulho pela história do seu povo, a veneração pelos “mais velhos” e a sua reverência às estruturas hierárquicas tradicionais, o seu quase obsessivo tratamento dos rituais em torno da morte, o sentido profundo de comunidade e o sublinhar da importância dos laços de família, estão permanentemente presentes nas suas cartas. Delas transparece um equilíbrio entre a tradição e a modernidade, como se o próprio Mandela considerasse ser uma espécie de fator de ligação entre um passado de luta contra o colonialismo e o presente de então em que era preciso levar à prática uma derradeira luta de libertação contra uma opressão de novo tipo. Porém, Mandela relativiza sempre o seu papel, dilui-se constantemente no grupo e até, a espaços, se autocritica por ter de se ocupar demasiado de si próprio.

Uma última palavra para os sentimentos. Alguém, melhor do que eu, poderá fazer uma exegese mais elaborada sobre a evolução das suas cartas para Winnie, desde tempos apaixonados em que a escrita é quase que apenas limitada pelo pudor, até a uma subtil transformação numa “fraternidade” justificada pela partilha progressiva do destino na luta política. Mas Mandela é de um carinho sem limites para os filhos e para os amigos, com uma atenção angustiada aos seus problemas, limitada apenas pela impotência da sua própria situação. O permanente conselho para o investimento na educação, como fator libertador, mas também na responsabilidade dentro do quadro das relações familiares, mostram uma figura humana muito fora do comum, num mundo político onde, frequentemente, as personalidades de topo são absorvidas pela luta. Ironicamente, talvez a prisão, o isolamento, porque não a saudade, tenham afinal contribuído para a construção desta fantástica figura da História universal. E talvez estas cartas, lidas agora, nos ajudem a perceber melhor a razão por que a todos nos parece natural devermos uma homenagem permanente a Nelson Mandela.

3 comentários:

Anónimo disse...

o sr. Lula da silva quer se comparar com Mandela, como uma criatura dessa é sem noção e não conhece nada de história.

Joaquim de Freitas disse...

Bravo Senhor Embaixador : Bem sentido e muito bem escrito. Mandela, aristocrata e paisano, intelectual e homem ordinário era um mundo à parte.

Tenho presente na memoria o seu funeral. Ao ver os hipócritas de todo o mundo, Nelson Mandela poderia ter rido de satisfação. Quando os ex-presidentes norte-americanos, especialmente George Bush, apareceu, muitos na assistência tinham na mente o apoio incondicional da Casa Branca, assim como Israel, ao antigo poder racista de Pretória e as informações publicadas algumas horas antes pelo Wikileaks segundo o qual a CIA tinha participado à prisão de Mandela em 1962.

Quando os governantes europeus apareceram, François Hollande e Nicolas Sarkozy , entre outros, , as vendas de armas e a compra de carvão ao regime racista pelos seus predecessores, apesar de apelos ao boicote, não poderia passar ao capítulo de lucros e perdas.

O "terrorista", segundo a fórmula da Sra. Thatcher e da direita francesa dos anos 1980, aquele que apareceu desde (2008) na lista negra americana, deve-se ter divertido ao vê-los aos seus pés, ligeiramente inclinados…puxando pelos lenços para fingir limpar uma lágrima virtual.

Alguns souberam nesse momento, que Nelson Mandela aquando da sua prisão em 1962 era um membro do Partido Comunista Sul-Africano. A maior parte, consideram de certeza que foi um deslize de juventude como Chirac quando vendia o jornal "Humanité",, do Partido Comunista Francês…

Como explicar o respeito, a admiração e a adesão que inspiram na África do Sul e no mundo Nelson Mandela?
Há, naturalmente, a sua coragem e os seus longos anos de prisão, a sua inteligência, a sua lendária bondade, o seu sorriso, a sua disponibilidade, os seus discursos de paz, de tolerância, uma honestidade rigorosa que os seus sucessores fariam bem de se inspirar.

Isso não é suficiente. O homem era capaz de permanecer simples, perto do povo e recusou se a se transformar num ícone. Para mim foi o Homem que disse:

"Não são os reis e os generais que fazem história, mas os povos."

Se Nelson Mandela era um homem de abertura para outros, incluindo os seus antigos carcereiros, ele nunca fez concessões políticas como evidenciado pela declaração do Partido Comunista Sul-Africano (SCAP), no rescaldo de sua morte:

“O SACP apoiou Madiba para a reconciliação nacional. Mas a reconciliação nacional, para ele, nunca significou o fim da luta da classes e o fim de outras lutas contra as desigualdades sociais na nossa sociedade, como alguns nos fariam acreditar hoje.

Para Madiba, a reconciliação nacional era uma plataforma para a prossecução do objectivo da construção de uma sociedade sul-africana mais igualitária, longe do flagelo do racismo, do patriarcado e das desigualdades flagrantes. A verdadeira reconciliação nacional não pode ser feita numa sociedade ainda caracterizada pelo buraco escancarado das desigualdades e da exploração capitalista.”

Anónimo disse...

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