quarta-feira, janeiro 02, 2019

A guinada


Fiquei com a impressão de que o carro, vindo lá do fundo, na minha direção, tinha acelerado um pouco, quando o condutor me viu. Eu ia a caminhar pela berma e, por um instante, tive um sobressalto e refugiei-me na parte lateral, mais interior, da avenida que acompanha o Jardim da Carreira. Patetice minha! O condutor ia apenas aproveitar a momentânea e muito rara ocasião em que por ali não havia uma fila de automóveis, para ganhar algum tempo. Mas a minha reação também era compreensível, no subconsciente da minha memória urbana.

É que, há muitos anos, por ali mesmo, junto à zona que a fotografia mostra, teve lugar um estranho episódio. Uma senhora caminhava pelo mesmo passeio em que eu hoje ia quando, de súbito, numa inesperada guinada, um automóvel galgou a margem da avenida, que então até era um pouco mais larga, e a abalroou, por pouco não a esmagando contra o muro. Um desagradável acidente? Sim e não. Com a passagem das horas, veio a constatar-se a estranha “coincidência” da condutora do veículo “desgovernado” ser mulher de um conhecido industrial de Vila Real, que toda a gente sabia (pelos vistos, também a própria mulher...) que andava “metido” com a senhora que seguia pelo passeio. Foi o que se pode chamar uma guinada de ciúme...

A lei da vida democrática


Não há nada que me dê mais prazer, para abrir o ano, do que ver hoje atribuído à autoria de Manuel Serrão (um abraço, meu caro!), no “online” do JN (espero que não no papel, o que seria o máximo!), o meu artigo “A lei da vida democrática”. Se lerem o texto, o que podem fazer aqui, perceberão.

Artigos


A partir de hoje, abandonarei a prática de colocar aqui os textos dos artigos que tiver publicado, nesse dia, em órgãos de imprensa, em papel ou online. 

Tomei esta decisão porque concluí que essa prática pode contribuir para desestimular os meus eventuais leitores a comprarem esses mesmos jornais ou revistas, neste tempo em que a sobrevivência da imprensa, em papel ou paga no online, se converteu já numa questão essencial das nossas sociedades democráticas.

Na altura da publicação, chamarei aqui a atenção para tal, fornecendo, nos casos em que isso for possível, o link para acesso.

Os textos completos desses artigos só surgirão, na página deste blogue e no Facebook, numa data que considere adequada, sempre posterior à da respetiva publicação.

Espero que os leitores compreendam estas minhas razões.

terça-feira, janeiro 01, 2019

Marcelo

É evidente que o presidente português esteve muito bem ao tomar a decisão de estar presente na posse do presidente da República Federativa do Brasil.

Era só o que faltava que não tivesse ido! Os interesses permanentes de Estado estão sempre acima das agendas ideológicas de conjuntura.

2019

Creio que não é costume assumir-se isto, pode até parecer excesso de modéstia, mas devo dizer que, no que me toca, não vivo angustiado a que este ano venha a ser melhor do que 2018. Se for igual, já ficarei satisfeito. Se for melhor, melhor.

Palhaçada

Hoje, lembrei-me de um nome já muito pouco conhecido: Plínio Salgado. Se ele tivesse assistido a este patético espetáculo, teria ficado siderado. 

Marx, afinal, não tinha razão: a História não acontece um momento como tragédia, repetindo-se depois como farsa. Ficou hoje provado que pode ter o seu momento de palhaçada.

Mistérios de Vila Real


Foi já no ano passado, isto é, ontem, junto à porta da Farmácia Baptista, na Rua Direita, em Vila Real. Chegou ao pé de mim um homem de cara fechada, nervoso, de idade incerta. Estávamos, talvez não por acaso, ao lado do mais misterioso relógio da cidade, que praticamente ninguém conhece, na parte lateral da Capela Nova (deixo a imagem possível). Relógio de sol onde o sol não bate e que, dessa forma, para nada serve. Só em Vila Real há relógios sem tempo.

O nosso homem, que eu nunca tinha visto, olhou para os lados antes de me atirar, acusador, com voz cava: “Por que é que nunca escreveu sobre o túnel da Gomes?” Fiquei siderado. O túnel da Gomes? Eu nunca tinha ouvido falar que a Gomes tivesse um túnel! Para onde é que esse túnel da Gomes conduz? “Para a Gomes!”, respondeu-me. Mau, mestre! O tipo só podia estar a gozar comigo. Da Gomes para a Gomes? “Sim”, diz o homem, já irritado, “da Gomes “velha” para a Gomes “nova”!”.

A Pastelaria Gomes tem, de facto, dois edifícios. Um mais antigo, onde foi criada, e outro mais “recente” (mas já com quase 70 anos), do outro lado do Largo do Pelourinho. Que estivessem ligados por um túnel era uma completa novidade para mim.

O meu interlocutor decidiu ser pedagógico. Explicou-me que o túnel teria sido criado, originalmente, para facilitar o transporte, em perfeitas condições de temperatura, dos dois produtos mais marcantes do fabrico da casa: os covilhetes e a bôla de carne. Um dia - “já alguém se perguntou porquê?”, intrigou-me ele - esse tráfego terá sido interrompido e, desde então, essas preciosidades, faça chuva, sol ou neve, atravessam, em tabuleiros cobertos, da Gomes “velha” para a “nova”. “É uma desgraça, virem assim sujeitos ao clima do dia!”, clamou, apelando talvez à minha consciência gastronómica. “Já se perguntou por que não usam o túnel? Valia a pena perguntar...”

Embora curioso, eu tentava apressar a conversa, até porque vi que se aproximavam uns amigos - o Lelo Sampaio, o Albertino Ribeiro e o Agostinho Rodrigues - e que o nosso homem não devia estar disposto a partilhar as suas confidências. “Pergunte ao Elísio, que ele sabe tudo!”, referindo-se ao Elísio Neves, o insuperável “vilarrealógrafo” (se há ulissipógrafos...) que, de facto, tudo sabe sobre Vila Real. “Ele que lhe conte a confusão que foi quando descobriram o túnel, quando o pelourinho regressou ao largo. Até meteu polícia! Abafaram tudo! Pergunte-lhe!”. Na verdade, o pelourinho, que dera o nome ao largo, havia sido deslocado para outro local por algumas décadas, tendo aí retornado, creio que nos anos 90.

O sujeito fez menção de ir-se embora, deixando-me todas as dúvidas sobre a história do túnel. À despedida, com a samarra pelos ombros (homem que é homem, em Vila Real, não veste a samarra, coloca-a sobre os ombros, displicente), deixou-me com a seguinte mensagem: “E amanhã, não se esqueça, é dia um!”. Claro que eu não me esquecia, mas ele precisou: “De abril, claro!” E abalou.

Os meus amigos aproximaram-se. Perguntei-lhes se conheciam o homem, que, entretanto, tinha desaparecido pela Rua Central. “Que homem?”, foi o que ouvi deles.

segunda-feira, dezembro 31, 2018

Maria Mello


Dizer que esta casa teve melhores dias é uma obviedade. No pequeno andar cimeiro funcionava, na minha infância, um ateliê onde um pequeno batalhão de empregadas fazia aquelas que eram então consideradas as melhores malhas de Vila Real. Muitas camisolas vesti que foram lá feitas. A proprietária do negócio era uma senhora chamada Maria Melo, de cuja imagem me recordo bem e cujo nome me ficou gravado para sempre. 

Há já muitos anos, em Itália, num determinado contexto, deparei com uma série de criadores de moda italianos, com nomes sonantes, e pensei cá para mim: “Maria Mello” seria uma designação magnífica para uma dessas casas. Estaria ali tudo: a leveza ondulada e bem sonante do conjunto dos dois nomes, a falsa simplicidade do Maria, o inescapável toque latino, o duplo L de quantos cuidam em atrasar a atualização da grafia para ganhar patine no nome. 

Anos mais tarde, finalmente, verifiquei que alguém seguiu essa minha íntima ideia, como se pode ver. O nome “Maria Mello” estava consagrado.

Reconheço que a fotografia atual não rima mimimamente com a pretendida sofisticação do nome. Mas ela aí fica, porque Portugal, gostemos ou não, também é isto.

O estore e as viagens


“Ó “shôtôr”! Então como é que o estore não havia de enferrujar! O “shôtôr” vem cá acima à “Bila“ tão poucas vezes, não lhe dá uso...”

Simões


1. António Simões, uma glória do futebol português, foi assaltado e ferido em Cabo Verde, onde ia passar o fim de ano. Pode acontecer a qualquer um, em qualquer parte do mundo. A notícia só foi notícia porque os factos aconteceram com Simões. Tivesse ocorrido com um cidadão anónimo e ninguém saberia de nada. Imagino agora que, para quem estiver a pensar ir passar uns dias de férias a Cabo Verde, o incidente tenha criado a ideia de que existe uma insegurança naquele país, tido geralmente por um local pacífico. E, provavelmente, assim será. Este é um caso em que a informação pode ajudar à injustiça.

2. E se os assaltantes fossem adeptos locais do Benfica, não fazendo a menor ideia da história da pessoa que estavam a assaltar? É que a probabilidade de um cidadão caboverdeano, como de qualquer ex-colónia portuguesa de África e de Timor, ser adepto desse clube é muito elevada, como bem sabe quem conhece essas terras. Essa é, aliás, uma curiosa herança pós-colonial. Mas o eventual benfiquismo dos bandidos (e já imagino o que, a partir daqui, alguns serão tentados a desenvolver...) seguramente não será suficiente, nos dias de hoje, para saberem que, nos pés do homem que assaltaram, esteve, muitas vezes, a esperança emocionada de um país - então sim, do Minho a Timor, como gostavam de dizer os próceres do império.

3. Há não muito tempo, na sala de espera de um consultório, encontrei-me a sós com António Simões. Não sou muito dado a gestos desse género, mas não resisti ao impulso de ir cumprimentá-lo, expressando a minha admiração por alguém que, não sendo do meu clube, me deu grandes alegrias futebolísticas, como português, mas igualmente por um cidadão que, nas televisões atulhadas de comentário sectário sobre futebol, sempre assume uma séria postura de dignidade e grande equilíbrio. As nossas respetivas consultas estavam atrasadas, o que permitiu que ainda falássemos uns minutos sobre a sua relação fraternal com Eusébio a outras coisas do mundo à volta do futebol. 

4. Agora, só desejo rápidas melhoras a António Simões e que tenha um excelente 2019.

O chá do doutor Andrade


Não me lembro do seu primeiro nome. De família, era Sales de Andrade. Para nós, durante muitos anos, era apenas o doutor Andrade. Embora mais novo, era um grande amigo do meu avô, com quem tinha uma relação que vinha dos tempos comuns na magistratura. Visitava-nos em Vila Real, algumas vezes ao ano.

O doutor Andrade era de origem indiana, vivia em Lisboa, vestia-se com uma elegância britânica e conduzia uma bela Citroën, modelo “arrastadeira”, junto à qual figuro, impante, em algumas fotografias de infância. Era um homem muito educado, marcando alguma distância, com quem o meu pai me contava ter tido um dia uma conversa muito interessante, com ele muito traumatizado psicologicamente, depois da entrada violenta das tropas indianas no Estado da Índia, no início dos anos 60.

Não obstante ter mais alguns anos, o doutor Andrade terá andado a fazer “rapapé” a uma tia minha, irmã da minha mãe, que parece que nunca lhe ligou peva. Essa desilusão não impediu que se mantivesse sempre próximo da nossa família, com a qual, em vários anos, vinha passar o Natal e o Ano Novo. No que me toca, tenho dele na memória os presentes que me trazia e a sua maneira de falar, com um sotaque à época estranho para mim. 

Como indiano que era, o doutor Andrade gostava muito de chá. Não tenho ideia qual era o tipo de chá que, à época, era servido lá por casa, mas imagino que não fosse de uma particular qualidade. Um dia, uma empregada trouxe um chá pedido pelo doutor Andrade. Ele tomou-o, em silêncio. A minha mãe contava sempre que, olhando-o, teve um pressentimento de que a qualidade do chá talvez não estivesse à altura de quem era originário do Industão, zona riquíssima no produto. E perguntou-lhe. O doutor Andrade, com a confiança que a amizade que tinha com a nossa família permitia, foi sincero: “Não está mau de todo!”, o que, apesar de tudo, sossegou a minha progenitora. Mas apenas por um segundo, porque ele logo acrescentou: “Já tomei chá bem pior!”

Há pouco, ao beber um magnífico Royal Blend, “the mother of all teas”, da minha “colheita” anual nas prateleiras do Fortnum & Mason, olhando a paisagem de fundo de Vila Real (de que ofereço a imagem), um cenário natural idêntico àquele que se desfrutava da sala de estar do meu avô, onde o doutor Andrade se sentava nesses anos 50 e 60 do século que já lá vai, perguntei-me se o chá que agora estava a tomar estaria, finalmente, à altura da exigência do doutor Andrade, o nosso simpático visitante solitário dos Natais e das festas de Fim de Ano, em outros tempos. E não tive a certeza, mas poder afirmar não ter certezas é o arrogante privilégio da idade da sabedoria. E por aqui me fico.

domingo, dezembro 30, 2018

O figurão do ano


Vai por aí uma grande indignação pelo facto da redação da RTP ter escolhido Jair Bolsonaro como personalidade ou figura do ano de 2018.

Posso imaginar que, se acaso a escolha tivesse recaído em Xi Ji Ping, nem uma agulha teria bulido na quieta melancolia dos cronistas do burgo. E, no entanto, o líder chinês é um ditador que chefia com mão de ferro um país onde os direitos humanos são uma ficção, a separação de poderes é um conceito inexistente e a democracia é o que não é. Mas, repito, tivesse sido ele o escolhido, nem uma voz se teria ouvido a contestar. Alguém duvida?

A eleição de Bolsonaro representa uma inversão política de 180° no mais importante Estado de língua portuguesa, onde vivem centenas de milhares de portugueses, cuja evolução é também vital para o futuro da CPLP. Um Brasil “ao contrário” pode ditar mudanças drásticas no tecido político da América Latina, uma sua relação privilegiada com a América tutelada por um figura como Trump pode trazer fortes surpresas, em matéria climática e em outras agendas onde, por muitas décadas, a diplomacia do Brasil, com presidentes de colorações bem diferentes, havia relançado a imagem do país. Se a chegada ao poder de uma figura política deste jaez não é a notícia mais relevante surgida na cena internacional nos últimos meses, então não sei qual será.

A personalidade ou figura do ano - a “Time” um dia escolheu Hitler, com toda a razão - não é um “prémio”, não é um reconhecimento valorativo, não é um elogio. Em 2016, Trump foi a Personalidade do Ano em todo o mundo - e não foi por gostarem dele. Assim, trata-se apenas da constatação de um facto: Bolsonaro é a grande “novidade” da política mundial no ano de 2018, goste-se ou não dela. Mais do que a figura, Bolsonaro é mesmo o maior “figurão” do ano!

E, já agora, aproveito para deixar aqui expresso, alto e bom som, que entendo que a informação produzida pela RTP nos últimos anos, com Paulo Dentinho ou agora com Maria Flor Pedroso, com todos os defeitos que possa ter (e tem muitos), está a anos-luz, em matéria de qualidade e equilíbrio, de qualquer dos seus concorrentes, com todo o respeito que alguns me merecem.

1968 - o mundo num ano


Publiquei no semanário “Visão” desta semana uma análise prospetiva sobre 2019, sob o título “Já não há anos calmos”, que pode ser lida mais abaixo.

Dei-me entretanto conta de que, há precisamente 50 anos, também em dezembro, mas de 1968, no semanário de Vila Real, “A Voz de Trás-os-Montes”, surgia um longo texto escrito por mim, intitulado “1968 - o Mundo num Ano”. 

Desde os meus 18 anos que aí escrevia textos sobre política internacional, mais tarde também sobre política interna, num permanente jogo de gato-e-rato com a Censura. A partir de 1971, não consegui que mais nenhum texto passasse no crivo do censor da cidade, o capitão Medeiros.

Tinha perdido de vista este meu (visto em perspetiva, bem ambicioso) artigo, que hoje revisitei. E que ano havia sido aquele de 1968! 

Ali estavam a chegada de Richard Nixon à Casa Branca, as mortes de Robert Kennedy e Luther King, o “Black Power” nas Olimpíadas do México (com a anterior repressão da revolta estudantil mexicana, com mais de uma centena de mortos), a colocação dos primeiros astronautas americanos em órbita, o estado dos conflitos no Vietnam e no Biafra, a revolta de maio em França e a saída de Pompidou (o articulista vaticinava “o ex-PM tem sérias hipóteses para a problemática substituição do General, que não deve vir longe” - e o futuro dar-lhe-ia razão), o fim da Primavera de Praga com a invasão soviética (“era o fim do sonho checoslovaco de abandonar o reino dos Brejnevs, Kosygins & afins, que preferiram desta vez mostrar ao mundo a face monolítica da sua “democracia popular”), a continuidade da crise grega depois do “golpe dos coronéis”, os golpes de Estado militares no Panamá, na Serra Leoa, no Iraque, no Perú e no Mali (sobre os quais escrevia, sentencioso, o jovem articulista: “Se os exércitos continuarem na sua senda de executores de golpes de Estado, deixarão de ter por fim garantir a paz externa e serão apenas simples perturbadores da ordem interna”). E também falei da Espanha (de Juan Carlos e das hipóteses de restauração monárquica), bastante sobre o Médio Oriente, da Rodésia sob domínio branco, das crises políticas internas no Reino Unido e em Itália, do “Mercado Comum” europeu, das tensões no Brasil, etc.

Com deliberada distância, como se estivesse a falar de um Estado distante, com as “pinças” necessárias à passagem na censura, o artigo atreve-se a abordar a situação do nosso próprio país: “Em Portugal - e após grave enfermidade do Prof. Salazar que, durante semanas, trouxe o país em intensa expectativa - sobe ao poder o Prof. Marcello Caetano, eminente jurista e antigo ministro, que procede a uma remodelação nos quadros administrativos, alargada à própria União Nacional, frente única de representação política. No entanto, é ponto assente nos objectivos do Governo a defesa intransigente das possessões do Ultramar, assegurando uma política de “continuidade com adaptação” “.

Eu tinha então 20 anos, uma escrita algo gongórica, muito tributária do que lia na imprensa francesa (o mundo anglo-saxónico só me chegaria mais tarde), marcada por alguma falsa ingenuidade, que rapidamente viria a abandonar.

Por muito narcisista que isto possa parecer, devo dizer que achei muita graça ao “ler-me”, meio século depois...

sábado, dezembro 29, 2018

A anedota e a vida


Não vi muito apreciada esta anedota. É que, tendo ontem sido comemoradas, cá por casa, essas quatro décadas e meia de casamento, a coisa podia dar azar. Não dá!

Já não há anos calmos


Deixei há muito de comprar a publicação que “The Economist” edita nesta altura do ano, com as suas previsões para os doze meses seguintes. Como a revista sempre nos habituou, os textos são magníficos, mas, se os guardarmos para ler no fim do ano a que respeitam, verificaremos que a qualidade da análise não resiste ao “teste do algodão” com a realidade que acabou por acontecer. A culpa não é da revista, é da vida, que tem sempre uma imaginação que supera qualquer antecipação dos factos.

Dizer que o mundo de hoje vive uma rápida mutação é uma banalidade. Mas é também uma pura verdade. Períodos houve da nossa História contemporânea em que “o tempo parou”, no que respeita a certos equilíbrios geopolíticos fundamentais. Basta lembrar alguns anos da Guerra Fria, em que o confronto Leste-Oeste “empatou”, pelo equilíbrio do terror, a possibilidade de confrontos entre os principais atores. Os conflitos processavam-se assim nas “zonas de confluência de poderes”, como Adriano Moreira as designava - guerras como as da Coreia, do Vietnam, do Afeganistão ou mesmo de Angola. Mas a confrontação essencial entre as chamadas super-potências era evitada, porque se sabia existencial.

Esses tempos mudaram. Correndo o risco da simplificação, pode dizer-se que o mundo das últimas décadas nos trouxe quatro realidades marcantes: o recuo no poder global de Moscovo, após a implosão da União Soviética, a esforçada tentativa europeia de criar um novo modelo integrado que desse músculo político ao poderio económico conjugado dos seus Estados, o crescimento, “silencioso” mas poderoso, da China, nos plano económico, político e militar e, como vetor mais estável. a permanência dos Estados Unidos como indiscutível potência de referência à escala mundial.

Mas hoje já nem tudo passa por este quarteto de poderes de Estado. Durante muito tempo falou-se do papel crescente das entidades económicas multinacionais e do condicionamento, por essa via, da ação dos Estados. As últimas décadas, além de terem assistido à emergência de várias outras entidades não-estatais, como atores internacionais relevantes, consagraram uma espécie de “internacionalismo” do poder financeiro, a que veio somar-se uma nova e poderosa realidade: o mundo da tecnologia informática, que tudo veio alterar, desde as relações de trabalho aos produtos informativos que hoje, através da internet, romperam as fronteiras do conhecimento. Há a sensação de que, nesse domínio, tudo se transforma muito rapidamente e, entre o deslumbre e o receio, esse novo e incontrolado poder continua a aturdir as sociedades.

É nesse cenário de poderes globais que 2019 nos projeta.

Uma América estranha

Nele avulta, goste-se ou não, o papel dos Estados Unidos, dirigidos por um presidente que, em dois anos, alterou, para alguns apenas circunstancialmente, a matriz de afirmação do país. Embora os EUA tivessem sido os grandes promotores da ordem multilateral surgida no final da Segunda Guerra mundial, a verdade é que eles nunca deixaram de ser apoiantes apenas seletivos do papel dessas mesmas instituições, considerando-se como que ungidos de uma excecionalidade que decorria do modo como viam a sua responsabilidade num mundo onde eles escolhiam o que entendiam como livre.

Esta é, em definitivo, uma América diferente, como Trump é um presidente de novo e inesperado tipo. Com a sua autoridade debilitada por eleições parlamentares intercalares, sob forte pressão judicial, Trump exercita uma agenda intuitiva que alarma os seus parceiros, desconcerta os adversários mas que, de momento, ainda não desiludiu quantos nele investiram a sua esperança. O poder de Trump pode ter sido afetado, mas ele mantém-se “master” do jogo, com grande capacidade para, no plano externo, condicionar a vontade alheia, dado o peso da economia americana e o suporte de poder militar que pode exibir. No passado, os presidentes dos EUA auto-limitavam-se frequentemente, em nome de uma ordem internacional de valores que cuidavam em respeitar formalmente, como modo de alimentar a sua autoridade moral. Trump não tem esses pruridos, não se sente sequer condicionado no verbo pelo respeito pela verdade. E assim vai continuar.

A obsessão americana, no plano externo, tem um nome: República Popular da China. Democratas e republicanos convergem no receio de Beijing poder vir a consagrar passos estratégicos que ameacem a “network” de poderes que se habituaram a ser próximos de Washington, obtendo conquistas que venham a ser irreversíveis. Privilegiando o diálogo entre potências, Trump segue um roteiro errático de testes da vontade chinesa. Em 2019, ver-se-á o que vai suceder à curta trégua comercial há semanas pactuada entre os dois Estados. Estará o presidente americano disposto a uma bravata jingoísta face à China, por exemplo tendo como pretexto as despudoradas ações de expansão dos chineses no seu mar meridional? Ou dará prioridade à espetacularidade das decisões comerciais, que colhem aplausos em setores do seu eleitorado, seduzidos pelos efeitos de curto prazo?

O “amigo russo”?

Se a China é o “inimigo”, a Rússia é, para os EUA, apenas um poder adverso. Com a recente decisão de recuar militarmente da Síria, numa linha de “desengajamento” progressivo que já vem dos tempos de Obama, Trump arrisca reforçar pontualmente Moscovo, que talvez ali veja como um “aliado” objetivo na luta contra o islamismo radical. A estranha relação que mantém com Putin, que se espera um dia venha a ser clarificada de vez, permite a este ir testando as “linhas vermelhas” até onde pode provocar a vizinhança europeia e, paulatinamente, reforçar o seu papel regional.

Vale a pena lembrar que nem no tempo da poderosa União Soviética a Rússia dispôs de uma posição tão confortável no Médio Oriente, onde agora venceu a difícil batalha para manter o ditador sírio no poder e é hoje o principal aliado tático do solitário Irão. Importa deixar também claro que de há muito que Moscovo tem conseguido manter um entendimento discreto com Israel. No ano que entra há que estar atento ao modo como a Rússia se comportará perante a inevitável subida de perfil da Turquia na região, que, depois do agravamento de relações com a Arábia Saudita por virtude do caso do jornalista assassinado, tornou mais remotas as hipóteses de qualquer entendimento no seio do eixo sunita. Curiosamente, Moscovo e Ancara gerem os seus conflitos bilaterais federados pelo interesse conjuntural que pode unir dois poderes autoritários e amorais, revisionistas da ordem internacional, que procuram exploram as vantagens colaterais da marginalização relativa que estão a sofrer.

Será que o vazio de poder, criado pela saída militar americana, vai potenciar as tensões no Médio Oriente? Será que a Arábia Saudita, para espantar os escândalos em seu torno, se sentirá tentada, com o apoio de Israel, a afrontar o poder iraniano que definitivamente a assusta e que, por via indireta, já combate no Iemen? E qual seria a posição da Rússia nessa hipótese?

A “nova” Europa

Muito ouviremos falar do Brexit em 2019. Este texto desatualizar-se-ia, em poucas semanas, se Theresa May acabasse por conseguir “vender” o (mau) acordo que fez com os “vinte e sete” - embora essa fosse a melhor solução para a Europa, num terreno em que, aliás, nenhuma solução é boa. Acho, no entanto, que o cenário de um Brexit duro, sem acordo, continua a ser o mais plausível. E isso pode desencadear consequências que, estando relativamente desenhadas, ficarão sempre além do que é possível prever, segundo todos os especialistas.

O Brexit e os seus efeitos não deixarão de estar também presentes na campanha eleitoral para o Parlamento Europeu. Aí se irá sentar, a partir de setembro, um número muito mais forte de anti-europeus. E essa será também a linha da frente de defesa dos Estados da União que hoje seguem modelos de autoritarismo e enveredam por práticas discriminatórias face aos estrangeiros, dos migrantes económicos aos refugiados. Essa é a razão pela qual estas eleições serão tão importantes.

No terreno do euro, veremos como a França e a Itália vão conseguir ultrapassar a sua divergência face às metas que são exigidas aos restantes. O ano também nos trará resposta à questão das hipóteses de completamento da União Bancária, embora nada aponte, por ora, para que o ambiente possa vir a modificar-se em favor dos modelos institucionais que Merkel recusou, apoiada aliás numa frente nórdica para quem a palavra solidariedade parece banida do léxico.

O ano vai ser muito complexo para a Europa, que, com a saída do Reino Unido, a forte tensão com a Rússia, o desprezo americano e as ameaças económicas chinesas, num cenário interno de alguma desunião (que só se quebrou para a resposta unida a Londres), atravessa um momento de rara solidão estratégica. E alguma angústia existencial.

... e agora a China!

É uma história fascinante, de determinação e ambição, o processo de afirmação da China no quadro mundial, nas últimas décadas. Para trás ficaram o seu “cisma” com a URSS, os conflitos com a Índia e o Vietnam, a persistência nos casos do Tibete, de Taiwan, de Hong-Kong (e Macau) e do mar da China. Fica a sensação de que vigora por ali um ritmo histórico próprio, onde se combinam fortes tensões internas com a continuidade inabalada de um poder ditatoral atípico. A “Belt and Road Initiative”, de que teremos novidades em 2019, e sobre a qual os EUA mantêm um atitude de estranha discrição, vai ser um magnífico teste à capacidade diplomática chinesa, até agora feita de iniciativas pontuais, cuja sustentabilidade num quadro de ação mais alargado e coerente está por confirmar. Parece evidente que, para concretizar aquela ambição (e a persistência chinesa não aponta para um cenário do recuo), a China vai ter de alterar substancialmente o seu perfil de ação externa.

Por ora, Beijing vai ter de procurar atenuar o sério problema comercial que tem com os Estados Unidos. As cartas não estão apenas de um lado, a América tem muitos trunfos e Trump conta também com algum susto que o peso da China provoca, desde a sua vizinhança a uma Europa que sente já o seu desafio económico. Se há país a que, não obstante a constância dos seus interesses identificados, se torna difícil antecipar as “jogadas”, esse país é a China. É que, se tivermos em conta os fortes investimentos militares que os chineses estão a levar a cabo, em especial no setor naval (a China importa energia e comercia pelos mares, cuja liberdade lhes é essencial), fácil é inferir que nenhuma opção está excluída para a defesa dos seus interesses. Em 2019, salvo surpresas, vai continuar a ser interessante acompanhar a coreografia da relação da China com os EUA.

A menos que Trump, para se defender internamente, procure uma improvável “aventura” externa (Venezuela?) que ele acha que o reconciliaria um pouco com o mundo, que Putin decida “explorar o sucesso” numa aventura suas cercanias, contando que os EUA estão longe e que as baterias da Europa só disparam palavras, que a China não rompa com um ato de violência a sua tensão fria com a vizinhança, provocando Washington, que a Arábia Saudita meça mal o incêndio que um desafio ao Irão poderia significar, quase se podia dizer que 2019 poderia ser um ano relativamente calmo. Mas aprendi que já não há anos calmos.

Todos os nomes

Acabo de constatar que o nome de Benedita entrou no “top 10” dos mais escolhidos para crismar crianças, em 2018. Pertencendo a uma família que mantém esse nome em todas as gerações, acho de meridiano bom gosto essa crescente opção de pais e padrinhos.

Conforta ver Francisco em segundo lugar. É claro que um argentino que vive em Roma ajuda bastante à festa, mas não deixa de ser também uma muito boa escolha.

A mãozada do Trancoso


Eu trabalhava no setor de contabilidade da Secção de Títulos da Caixa Geral de Depósitos, no Calhariz, em Lisboa, nesse início dos anos 70. 

Era o meu primeiro emprego, a que fora parar por concurso público. As tarefas que me cabia fazer “nos Títulos” (como lhe chamávamos) não eram entusiasmantes, o regime de trabalho era bastante rigoroso, mas o salário não deixava de ser simpático. Continuava a ser estudante “voluntário” na universidade, onde ia fazer as “frequências” e os exames. Para se imaginarem as “facilidades” dadas a um trabalhador-estudante, nesses tempos da ditadura, bastará dizer que, sempre que tinha uma prova académica, esse dia era-me descontado nas férias.

O “setor da contabilidade” era, vale a pena dizer, um conceito majestático: era apenas constituído pelo Sirgado Serra, que o chefiava, e por mim. Por graça, ameacei várias vezes mandar imprimir cartões com o meu título de “subchefe do setor de contabilidade”...

Por esta altura do ano, entre o Natal e o Ano Novo, a nossa tarefa tornava-se mais pesada: eram os “acertos” do balanço. Os acertos era a tentativa de fazer coincidir, até ao limite do centavo, todas as folhas da contabilidade, o que nem sempre era fácil. Nesses dias, trabalhava-se até às 11 da noite e recordo-me de um ano em que, por 30 centavos de diferença, perdemos horas infindas, com o Serra a suar em bica, intercalando impropérios entre a interminável e repetida conferências das folhas. Era assim a vida nesse serviço público, nesses tempos em que o único “computador” era controlado pelo Salazar.

(Não, não é esse que estão a pensar, esse já tinha ido à vida: o Salazar era um colega que manejava uma máquina gigante a que chamávamos “computador”, de onde, ao fim do dia, saía o Modelo 19. E, por favor, não me perguntem o que era o Modelo 19!)

O Serra, o meu chefe direto, era um montijense, com grossos óculos, bastante mais velho do que eu, mas com quem logo estabeleci uma relação simpática. Não tinha um feitio fácil, andava às vezes macambúzio, mas não me recordo de alguma vez termos discutido. Nas saídas, era pontual como um cronómetro. E sentia-se que tinha a vida marcada pelos barcos para a Outra Banda. Dois minutos antes da hora, da gaveta do fundo do lado direito da secretária (estou a ver a imagem), sacava de uma escova e de um pano de lustro, dava polimento aos sapatos e, ao bater da “badalada”, era o primeiro a zarpar.

Eu era um “hard worker” e tinha um truque íntimo: fazia o meu trabalho de contabilidade como quem faz charadas ou palavras cruzadas. Talvez porque soubesse que, a prazo, aquela não ia ser a minha vida, levava o quotidiano com alguma ligeireza. Mas muito a sério. À tarde, depois de sair da Caixa, mudava de registo: ia beber um copo à Opinião, onde entrava na tertúlia do Batista Bastos e do Carlos Porto, ou ia para o Curso de Semiologia, do Eduardo Prado Coelho, no Centro Nacional de Cultura. E acabava o dia, ou melhor, a noite, na Grãfina ou no Montecarlo e, nos fins de semana, às vezes no Bolero.

Ao meu camarada de trabalho Serra uniam-me algumas ideias políticas e, nesse capítulo, tínhamos criado mesmo uma certa cumplicidade. Num tempo em que as paredes tinham ouvidos, as nossas conversas sobre as patifarias do regime suspendiam-se habilmente quando, à nossa frente, passavam alguns colegas que sabíamos adeptos “da situação”. Eu era então bastante radical, o Serra era um socialista moderado. E assim correu a nossa vida, por alguns anos, até que a tropa me apanhou.

A uns metros da secretária do Serra ficava o gabinete do Trancoso, o poderoso chefe de Repartição, figura mítica, que quase não víamos, encafuado nos seus domínios, convocando pelo telefone os dois chefes de Secção existentes na imensa sala em L em que trabalhávamos. Raras vezes, em todos esses anos, vi o Trancoso sair da sua fortaleza burocrática e dar a confiança de se deslocar à nossa sala. Quando o fazia, atravessava em passo largo em direção à secretária do Marques, o nosso chefe de Secção, que logo se colocava em sentido. E o Trancoso, nessa sua rápida coreografia, nem nos olhava e, claro, nunca lhe passava pela cabeça cumprimentar-nos. O Serra, no final dessas raras aparições do chefe de Repartição, rosnava sempre coisas indizíveis.

Disse que o Trancoso nunca nos cumprimentava? Não é verdade! Fazia-o na véspera de Natal. Eu não tinha a menor ideia do ritual, mas, na manhã do primeiro 24 de dezembro que por ali passei, o Serra advertiu-me: “Hoje vai haver mãozada do Trancoso”. 

E assim foi. Quando faltava um minuto para a hora de saída, que nesse dia era generosamente antecipada para as 13 horas, sempre medida num relógio nervoso, colocado numa parede em frente a mim, cujo ponteiro dos minutos me recordo que tinha um sobressalto sessenta vezes por hora, lá emergiu a figura do Trancoso, da eternamente fechada porta do seu gabinete, colocando-se junto à nossa saída. E, prodigalizando-nos um sorriso que sempre tive por um mero esgar, dava-nos então essa “mãozada” anual, como dizia o Serra, acompanhada de um “Boas Festas” ritual - e eram essas únicas duas palavras que dele ouvíamos em 365 dias. No ano seguinte havia mais.

Nostalgia desse tempo? Não brinquem, está bem?

(Dedico esta memória ao meu amigo João Aldeia, a quem sei que ela chegará. Recordo-me dos sorrisos irónicos que ambos trocávamos, naquela sala “dos Títulos”, nesse nosso dia-a-dia de burocratas, que, com o saudoso Murta, tentávamos tornar divertido. E, às vezes, conseguíamos.)

sexta-feira, dezembro 28, 2018

Arranha-céus



Passei por lá na tarde de ontem e decidi ter uma fotografia. A imagem mostra o aspeto, nos dias de hoje, de um prédio de Vila Real, da segunda metade dos anos 50, construído na zona norte da cidade, em frente ao novo mercado municipal. À época, a sua construção foi considerada um marco na vida urbana.

Já repararam quantos andares tem? Pois é, mas, ao tempo em que foi construído, era o mais alto prédio de apartamentos da cidade. Chamavam-lhe - acreditem! - o “arranha-céus”! Lembro-me bem!

Na base do prédio houve um estabelecimento comercial com uma magnífica decoração interior, o Café Brasília. Por ali existiam magníficas peças de arte cujo paradeiro continua a ser um dos mistérios da Vila Real.

O autor deste edifício foi um importante arquiteto do Porto, Artur Andrade (1913/2005), que nessa cidade assinou obras tão marcantes como o Cinema Batalha ou o Café Rialto.

Artur Andrade foi também uma personalidade com forte intervenção cívica. Oposicionista a Salazar, foi várias vezes preso por razões políticas, foi candidato da Oposição em “eleições” legislativas na ditadura e dirigiu a campanha presidencial de Humberto Delgado. A seguir ao 25 de abril, aderiu ao PPD, mais tarde ao PRD, tendo tido intervenção autárquica no Porto. 

AGAVI

Sabem o que é a Agavi? É a Associação para a Promoção da Gastronomia, Vinhos, Produtos Regionais e Biodiversidade, uma associação empresaria...