sábado, dezembro 29, 2018

Já não há anos calmos


Deixei há muito de comprar a publicação que “The Economist” edita nesta altura do ano, com as suas previsões para os doze meses seguintes. Como a revista sempre nos habituou, os textos são magníficos, mas, se os guardarmos para ler no fim do ano a que respeitam, verificaremos que a qualidade da análise não resiste ao “teste do algodão” com a realidade que acabou por acontecer. A culpa não é da revista, é da vida, que tem sempre uma imaginação que supera qualquer antecipação dos factos.

Dizer que o mundo de hoje vive uma rápida mutação é uma banalidade. Mas é também uma pura verdade. Períodos houve da nossa História contemporânea em que “o tempo parou”, no que respeita a certos equilíbrios geopolíticos fundamentais. Basta lembrar alguns anos da Guerra Fria, em que o confronto Leste-Oeste “empatou”, pelo equilíbrio do terror, a possibilidade de confrontos entre os principais atores. Os conflitos processavam-se assim nas “zonas de confluência de poderes”, como Adriano Moreira as designava - guerras como as da Coreia, do Vietnam, do Afeganistão ou mesmo de Angola. Mas a confrontação essencial entre as chamadas super-potências era evitada, porque se sabia existencial.

Esses tempos mudaram. Correndo o risco da simplificação, pode dizer-se que o mundo das últimas décadas nos trouxe quatro realidades marcantes: o recuo no poder global de Moscovo, após a implosão da União Soviética, a esforçada tentativa europeia de criar um novo modelo integrado que desse músculo político ao poderio económico conjugado dos seus Estados, o crescimento, “silencioso” mas poderoso, da China, nos plano económico, político e militar e, como vetor mais estável. a permanência dos Estados Unidos como indiscutível potência de referência à escala mundial.

Mas hoje já nem tudo passa por este quarteto de poderes de Estado. Durante muito tempo falou-se do papel crescente das entidades económicas multinacionais e do condicionamento, por essa via, da ação dos Estados. As últimas décadas, além de terem assistido à emergência de várias outras entidades não-estatais, como atores internacionais relevantes, consagraram uma espécie de “internacionalismo” do poder financeiro, a que veio somar-se uma nova e poderosa realidade: o mundo da tecnologia informática, que tudo veio alterar, desde as relações de trabalho aos produtos informativos que hoje, através da internet, romperam as fronteiras do conhecimento. Há a sensação de que, nesse domínio, tudo se transforma muito rapidamente e, entre o deslumbre e o receio, esse novo e incontrolado poder continua a aturdir as sociedades.

É nesse cenário de poderes globais que 2019 nos projeta.

Uma América estranha

Nele avulta, goste-se ou não, o papel dos Estados Unidos, dirigidos por um presidente que, em dois anos, alterou, para alguns apenas circunstancialmente, a matriz de afirmação do país. Embora os EUA tivessem sido os grandes promotores da ordem multilateral surgida no final da Segunda Guerra mundial, a verdade é que eles nunca deixaram de ser apoiantes apenas seletivos do papel dessas mesmas instituições, considerando-se como que ungidos de uma excecionalidade que decorria do modo como viam a sua responsabilidade num mundo onde eles escolhiam o que entendiam como livre.

Esta é, em definitivo, uma América diferente, como Trump é um presidente de novo e inesperado tipo. Com a sua autoridade debilitada por eleições parlamentares intercalares, sob forte pressão judicial, Trump exercita uma agenda intuitiva que alarma os seus parceiros, desconcerta os adversários mas que, de momento, ainda não desiludiu quantos nele investiram a sua esperança. O poder de Trump pode ter sido afetado, mas ele mantém-se “master” do jogo, com grande capacidade para, no plano externo, condicionar a vontade alheia, dado o peso da economia americana e o suporte de poder militar que pode exibir. No passado, os presidentes dos EUA auto-limitavam-se frequentemente, em nome de uma ordem internacional de valores que cuidavam em respeitar formalmente, como modo de alimentar a sua autoridade moral. Trump não tem esses pruridos, não se sente sequer condicionado no verbo pelo respeito pela verdade. E assim vai continuar.

A obsessão americana, no plano externo, tem um nome: República Popular da China. Democratas e republicanos convergem no receio de Beijing poder vir a consagrar passos estratégicos que ameacem a “network” de poderes que se habituaram a ser próximos de Washington, obtendo conquistas que venham a ser irreversíveis. Privilegiando o diálogo entre potências, Trump segue um roteiro errático de testes da vontade chinesa. Em 2019, ver-se-á o que vai suceder à curta trégua comercial há semanas pactuada entre os dois Estados. Estará o presidente americano disposto a uma bravata jingoísta face à China, por exemplo tendo como pretexto as despudoradas ações de expansão dos chineses no seu mar meridional? Ou dará prioridade à espetacularidade das decisões comerciais, que colhem aplausos em setores do seu eleitorado, seduzidos pelos efeitos de curto prazo?

O “amigo russo”?

Se a China é o “inimigo”, a Rússia é, para os EUA, apenas um poder adverso. Com a recente decisão de recuar militarmente da Síria, numa linha de “desengajamento” progressivo que já vem dos tempos de Obama, Trump arrisca reforçar pontualmente Moscovo, que talvez ali veja como um “aliado” objetivo na luta contra o islamismo radical. A estranha relação que mantém com Putin, que se espera um dia venha a ser clarificada de vez, permite a este ir testando as “linhas vermelhas” até onde pode provocar a vizinhança europeia e, paulatinamente, reforçar o seu papel regional.

Vale a pena lembrar que nem no tempo da poderosa União Soviética a Rússia dispôs de uma posição tão confortável no Médio Oriente, onde agora venceu a difícil batalha para manter o ditador sírio no poder e é hoje o principal aliado tático do solitário Irão. Importa deixar também claro que de há muito que Moscovo tem conseguido manter um entendimento discreto com Israel. No ano que entra há que estar atento ao modo como a Rússia se comportará perante a inevitável subida de perfil da Turquia na região, que, depois do agravamento de relações com a Arábia Saudita por virtude do caso do jornalista assassinado, tornou mais remotas as hipóteses de qualquer entendimento no seio do eixo sunita. Curiosamente, Moscovo e Ancara gerem os seus conflitos bilaterais federados pelo interesse conjuntural que pode unir dois poderes autoritários e amorais, revisionistas da ordem internacional, que procuram exploram as vantagens colaterais da marginalização relativa que estão a sofrer.

Será que o vazio de poder, criado pela saída militar americana, vai potenciar as tensões no Médio Oriente? Será que a Arábia Saudita, para espantar os escândalos em seu torno, se sentirá tentada, com o apoio de Israel, a afrontar o poder iraniano que definitivamente a assusta e que, por via indireta, já combate no Iemen? E qual seria a posição da Rússia nessa hipótese?

A “nova” Europa

Muito ouviremos falar do Brexit em 2019. Este texto desatualizar-se-ia, em poucas semanas, se Theresa May acabasse por conseguir “vender” o (mau) acordo que fez com os “vinte e sete” - embora essa fosse a melhor solução para a Europa, num terreno em que, aliás, nenhuma solução é boa. Acho, no entanto, que o cenário de um Brexit duro, sem acordo, continua a ser o mais plausível. E isso pode desencadear consequências que, estando relativamente desenhadas, ficarão sempre além do que é possível prever, segundo todos os especialistas.

O Brexit e os seus efeitos não deixarão de estar também presentes na campanha eleitoral para o Parlamento Europeu. Aí se irá sentar, a partir de setembro, um número muito mais forte de anti-europeus. E essa será também a linha da frente de defesa dos Estados da União que hoje seguem modelos de autoritarismo e enveredam por práticas discriminatórias face aos estrangeiros, dos migrantes económicos aos refugiados. Essa é a razão pela qual estas eleições serão tão importantes.

No terreno do euro, veremos como a França e a Itália vão conseguir ultrapassar a sua divergência face às metas que são exigidas aos restantes. O ano também nos trará resposta à questão das hipóteses de completamento da União Bancária, embora nada aponte, por ora, para que o ambiente possa vir a modificar-se em favor dos modelos institucionais que Merkel recusou, apoiada aliás numa frente nórdica para quem a palavra solidariedade parece banida do léxico.

O ano vai ser muito complexo para a Europa, que, com a saída do Reino Unido, a forte tensão com a Rússia, o desprezo americano e as ameaças económicas chinesas, num cenário interno de alguma desunião (que só se quebrou para a resposta unida a Londres), atravessa um momento de rara solidão estratégica. E alguma angústia existencial.

... e agora a China!

É uma história fascinante, de determinação e ambição, o processo de afirmação da China no quadro mundial, nas últimas décadas. Para trás ficaram o seu “cisma” com a URSS, os conflitos com a Índia e o Vietnam, a persistência nos casos do Tibete, de Taiwan, de Hong-Kong (e Macau) e do mar da China. Fica a sensação de que vigora por ali um ritmo histórico próprio, onde se combinam fortes tensões internas com a continuidade inabalada de um poder ditatoral atípico. A “Belt and Road Initiative”, de que teremos novidades em 2019, e sobre a qual os EUA mantêm um atitude de estranha discrição, vai ser um magnífico teste à capacidade diplomática chinesa, até agora feita de iniciativas pontuais, cuja sustentabilidade num quadro de ação mais alargado e coerente está por confirmar. Parece evidente que, para concretizar aquela ambição (e a persistência chinesa não aponta para um cenário do recuo), a China vai ter de alterar substancialmente o seu perfil de ação externa.

Por ora, Beijing vai ter de procurar atenuar o sério problema comercial que tem com os Estados Unidos. As cartas não estão apenas de um lado, a América tem muitos trunfos e Trump conta também com algum susto que o peso da China provoca, desde a sua vizinhança a uma Europa que sente já o seu desafio económico. Se há país a que, não obstante a constância dos seus interesses identificados, se torna difícil antecipar as “jogadas”, esse país é a China. É que, se tivermos em conta os fortes investimentos militares que os chineses estão a levar a cabo, em especial no setor naval (a China importa energia e comercia pelos mares, cuja liberdade lhes é essencial), fácil é inferir que nenhuma opção está excluída para a defesa dos seus interesses. Em 2019, salvo surpresas, vai continuar a ser interessante acompanhar a coreografia da relação da China com os EUA.

A menos que Trump, para se defender internamente, procure uma improvável “aventura” externa (Venezuela?) que ele acha que o reconciliaria um pouco com o mundo, que Putin decida “explorar o sucesso” numa aventura suas cercanias, contando que os EUA estão longe e que as baterias da Europa só disparam palavras, que a China não rompa com um ato de violência a sua tensão fria com a vizinhança, provocando Washington, que a Arábia Saudita meça mal o incêndio que um desafio ao Irão poderia significar, quase se podia dizer que 2019 poderia ser um ano relativamente calmo. Mas aprendi que já não há anos calmos.

6 comentários:

Anónimo disse...

"Mas aprendi que já não há anos calmos." Resta tentar antever o aonde e quando. Será,
No Médio Oriente?. Tudo heterogéneos "players". Vários shiismos, sunismos, turcos, persas, arabismos, africaniamos ... e "last but not least" judaismos. Muito entretidos uns com os outros.

Na velha Europa?. Tudo heterogéneos "players". Ultrapssado o pico de um dissonante Unionismo Germânico, falho em harmonias, cada um terá que lamber as suas próprias feridas, o melhor que souber e puder. Não vai ser fácil.

Nestes novos Estados Unidos da América?. Com esta invulgar nova gerência, um "civil"?. Decerto que alguém bem re-escrevería que "há razão nesta loucura". Trump frequentou (desastradamente) a New York Military Academy. Terá conhecimento e força suficiente para remeter os militares a quarteis. Ao contrário,

Nesta China já com um Imperador, vitalício?. Uma ou duas canhoneiras dão alguma força há diplomacia. Uma Armada já é outra música. Servirá de cauta lembrança o exemplo, histórico, do vizinho Imperador japonês, nas mãos dos militares?. Até quando?.
Depois da "visita" do Imperador Xi a Portugal... nas lojas chinesas, dir-se-ia que os empregados estão com outra cara. Dá que pensar ou é engano?.

Afinal nada mudou, ao longo de milénios, na natureza humana.

Anónimo disse...

"Mas aprendi que já não há anos calmos."

Pois é Snr. Embaixador que faz análises políticas tal qual um Snr. Embaixador muito batido de várias e multiculturais Embaixadas do mundo.
Isto é, tudo muito fundamentado, muito pormenorizado, muito certinho, mas;
Já aprendeu de ginjeira prática que não há anos calmos, quer dizer que nunca as coisas dos anos se passam como previsto com base do bom andamento e desenvolvimento linear do que está em marcha. Porque o que estava em marcha tem de chegar a algum destino e conhecidos os destinos os povos desses destinos podem não aceitar avanços estranhos marchando em sua direcção.
Daí, sobreveem oposições, discussões ou colisões que baralham os dados todos num foguete. Aliás a calmaria prolongada é, em si, prenúncio de tempestade.
jose neves

Anónimo disse...

Lido com muito apreço.

Despacho.

Pois...... os anos mais calmos foram aqueles em que se implementou o socialismo democrático aqui na terra, com os dinheiros lançados pela Europa.
Agora tudo vai ser diferente porque teremos que trabalhar e muito, para nos fazermos por nós mesmos e daí a insegurança de termos formado deficientemente a população para isso.
É por isso que este projecto de sociedade não vai ser compreendido pelas próximas gerações.
Se foi uma boa aventura para uns.... foi péssima para outros. É o problema das utopias.

No entanto dou deferimento a este texto

Anónimo disse...

Ler quem puder também:


http://www.agoravox.fr/tribune-libre/article/la-troisieme-guerre-mondiale-est-211113

Joaquim de Freitas disse...

Excelente foto da situação no dia de hoje, neste fim de ano 2018. Claro que é fácil escrever sobre o passado, conhecido, mesmo introduzindo “nuances” segundo os pontos de vista.
Parece muito mais difícil imaginar o que vem no ano de 2019. Porque tudo pode acontecer. Há tantas hipóteses e tantos actores em vista.

Tenho receio, e espero que me engane, mas nunca estivemos tão próximos dum desenlace fatal. Um animal feroz ferido, mas ainda vigoroso, é, segundo me disseram em África, mais perigoso que nunca.

No mundo de hoje, existe um animal feroz ferido, senão à morte, pelo menos bastante chocado e pronto à carga mais brutal que se pode imaginar. E é desta reacção que o Mundo deve ter receio.

O Senhor Embaixador conhece melhor que eu, aquele monumento em frente do edifício das Nações Unidas, em Nova Iorque, um revólver no qual o artista que o concebeu fez um nó no cano, como para o impedir de funcionar…

Alguém já desfez o nó e sonha de o fazer funcionar.

Permita que lhe apresente os meus votos dum Bom Ano Novo, assim como a todos os seus.

vitor disse...

"Mas hoje já nem tudo passa por este quarteto de poderes de Estado. Durante muito tempo falou-se do papel crescente das entidades económicas multinacionais e do condicionamento, por essa via, da ação dos Estados. As últimas décadas, além de terem assistido à emergência de várias outras entidades não-estatais, como atores internacionais relevantes, consagraram uma espécie de “internacionalismo” do poder financeiro, a que veio somar-se uma nova e poderosa realidade: o mundo da tecnologia informática, que tudo veio alterar, desde as relações de trabalho aos produtos informativos que hoje, através da internet, romperam as fronteiras do conhecimento. Há a sensação de que, nesse domínio, tudo se transforma muito rapidamente e, entre o deslumbre e o receio, esse novo e incontrolado poder continua a aturdir as sociedades."

Um bom resumo da famosa globalização. Onde o que globalizou verdadeiramente foi o capital ou se preferirmos a alta finança com menos conotação ideológica. Completamente desregulada a seu belo prazer. Bastou ver as consequências da última grande crise financeira. Onde se pôs as populações em geral a pagar os desvarios da alta finança. Assim como as consequências que daí advieram para o mundo laboral. Inclusive com vários estados completamente de cócoras como é o nosso caso. Em suma e por maior fascínio pelo xadrez mundial - perfeitamente compreensível aliás - interessa voltar a colocar o homem no centro do mundo. O homem livre e não essa espécie de escravo que hoje habita inclusive o mundo mais desenvolvido.

Um bom ano para todos!

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