Confio na justiça portuguesa? Nos tempos que correm, apenas relativamente, confesso. Como cidadão, a minha confiança no sistema judicial tem vindo a baixar ao longo dos últimos anos e, podem crer, isso angustia-me imenso. Porque fui habituado a acreditar que a justiça é como uma espécie de rede última de salvação, que pode e deve servir-nos de derradeiro e sério anteparo, quando tudo o resto falha.
No entanto, dia após dia, somos confrontados com decisões judiciais arbitrárias, discricionárias e frequentemente contraditórias entre si. Quando se refere isto a alguém "do ramo", somos logo criticados por não compreendermos que, sendo os juízes humanos, é mais do que natural que, na sua interpretação da lei, possa haver diferentes sensibilidades. Muito bem, aceito isso, mas será que perante duas decisões judiciais em absoluto contraditórias, precisamente sobre o mesmo assunto, devemos "respeitar" a legitimidade de ambas? Ora essa! Então um diz uma coisa e o outro diz o seu contrário e um cidadão é forçado, bovinamente, a aceitar de cara alegre essa dualidade de atitudes? E a ter de considerar que ambas têm o seu mérito próprio?
Acredito que a maioria dos magistrados sejam pessoas de bem, que procuram fazer o seu melhor, nem mais nem menos do que em qualquer outra profissão. Haverá assim bons, maus e péssimos juízes, como há bons, maus e péssimos diplomatas, como há bons, maus e péssimos médicos, e por aí além. Só que a profissão judicial é constitucionalmente ungida do caráter de órgão de soberania, pelo que é quase um crime de lesa-pátria dizer que um determinado juiz é um refinado cretino, que uma certa sentença é um chorrilho de imbecilidades, que uma ou outra decisão releva de uma incompetência profissional manifesta. O juíz vive "lá em cima", é-lhe devida uma reverência funcional automática, qualquer que seja a sua efetiva qualidade profissional. Se um cidadão afirmar publicamente que o juíz fulano é incompetente, arrisca-se a um processo e, claro, a ser julgado ... por um juíz! Se disser o mesmo de um diplomata, por exemplo, tem logo fartos aplausos da bancada, a começar pela comunicação social.
A que propósito vem isto? Vem da circunstância de me parecer escandaloso que um juíz que teve interesses pessoais diretos no caso colégios privados/ensino público possa, de longe ou de perto, estar envolvido no julgamento das providências cautelares suscitadas sobre a questão. A argumentação de que o cavalheiro saberá muito bem discernir entre o interesse pessoal e as questões jurídicas de princípio, que irá julgar o caso com neutralidade e independência, "só contado p'ra você", como diriam os brasileiros.
Dito isto, também me parece menos curial que o Ministério da Educação, numa sociedade democrática onde vigora o princípio da separação dos poderes, saia à estocada contra o juíz, suscitando uma suspeição. Eu, cidadão, posso desconfiar da isenção do juíz e gostaria de ter o direito de proferir todas as diatribes que contra ele que me apeteça dizer. O governo pode tentar acionar os mecanismos legais de contestação que ache adequados. O que não pode é proceder de forma idêntica à de um executivo recente, de muito má memória, que tentou, sistematicamente, afetar a liberdade do nosso Tribunal Constitucional, aliás sob a culposa omissão do supremo "magistrado" da nação. Se o juíz incorreu em práticas que podem suscitar suspeição, as instâncias próprias do sistema judicial deveriam atuar com todo o rigor e a necessária tranparência E, para proteger a sua própria dignidade institucinal, deveriam utilizar os mecanismos ao seu alcance para que não fique a dúvida de que "isto é o da Joana", e não necessariamente Marques Vidal.