O meu dia começou cedo. Ido de Santo António de Cavaleiros, onde vivia desde que casara, poucos meses antes, entrei de carro na Escola Prática de Administração Militar (EPAM) onde, às 9 horas iniciei a primeira aula de "Acção Psicológica" aos ensonados soldados-cadete. Às 11 horas, recolhi à biblioteca que orientava (além de "oficial de Ação Psicológica" da unidade, era coordenador do próprio curso de formação de oficiais milicianos nessa especialidade, bibliotecário e também diretor do jornal da unidade, "O Intendente"). Foi aí que fui procurado pelo António Reis.
Um parêntesis para explicar que o António Reis, hoje um consagrado historiador e professor universitário, era o contacto privilegiado dos milicianos da unidade com os oficiais do quadro, para o conjunto de movimentações político-militares que, desde há meses, acompanhávamos. Conhecia o António dos tempos da luta da oposição democrática, onde ele tinha tido um papel destacado, nomeadamente como candidato oposicionista por Santarém. Para surpresa de muitos de nós, em especial para meu grande espanto, António Reis surgira, meses antes, integrado na especialidade de Ação Psicológica, que eu orientava. A máquina das informações militares, na sua articulação com a PIDE (que, nessa altura, já era designada por DGS), tinha algumas lacunas e só semanas mais tarde, já muito próximo da data da Revolução, mandara "reclassificá-lo", devendo regressar a Mafra, onde iria ser Atirador de Infantaria. Esta determinação tinha sido por nós sonegada ao comando da unidade, através de cumplicidades burocráticas internas, pelo que não viria a ter qualquer efeito prático até ao 25 de abril. O António pôde, assim, assumir o importante papel que desempenhou nesse dia.
Regressemos à biblioteca. Com um ar conspirativo, nesse final de manhã, o António pediu-me para reunir alguns oficiais milicianos já previamente "apalavrados". Juntámo-nos na sala e ele informou que o golpe militar estava previsto para essa noite. Ficámos tensos, confrontados com a gravidade da informação recebida. Só mais tarde iríamos saber o que de cada um de nós se esperava. Aos pedidos de detalhes que colocámos, nomeadamente no tocante à dimensão da ação militar (o fracasso da tentativa de golpe de 16 de março ainda estava muito "fresco"), o António adiantou explicações naturalmente vagas.
Depois, só me recordo da tarde, já após a saída da unidade. Encontrei-me com António Franco, hoje embaixador aposentado, que tinha feito a especialidade de Ação Psicológica comigo, mas que fora requisitado pelo MNE. Tomámos um café no snack-bar "2000", ao Campo Pequeno, e revelei-lhe a iminência do golpe. Não havia nenhuma razão especial par eu cometer essa indiscrição, mas esse gesto (que hoje posso ver como algo irresponsável) foi espontâneo, face a um amigo em que eu confiava em absoluto.
Dei a informação também ao meu pai, que estava de visita a Lisboa. Democrata dos sete-costados, o meu pai alimentava uma desconfiança persistente sobre a capacidade dos militares derrubarem o regime que ele sempre detestara. Recordo-me o comentário depreciativo que ele fez sobre "a tropa", à saída do hotel "Suíço Atlântico", onde fomos juntar-nos com um tio meu, então deputado do regime... Acabámos todos a jantar em casa de outros familiares, nos Olivais. Foi uma ocasião estranha: se a operação militar que iria decorrer, horas depois, tivesse sucesso, o futuro desse meu tio - um grande amigo de todos nós, a começar por mim - iria sofrer uma grande mudança. À mesa, apenas eu, o meu pai e a minha mulher estávamos a par dessa forte possibilidade, pelo que a conversa, para nós os três, não deixou de ter sempre isso como pano de fundo.
Acabado o jantar, deixei os meus pais na Feira das Indústrias, à Junqueira, onde havia uma exposição de antiguidades. Pretextei algo para regressar a casa. À saída da exposição, ao deparar com o Bentley que transportara o presidente da República para a inauguração do evento, o meu pai disse para a minha mãe uma frase enigmática, que ela lembraria até ao fim da vida: "Se uma coisa que o nosso filho hoja me disse vier a acontecer, a partir de amanhã o Américo Tomaz não volta a entrar neste carro". E mais não adiantou. O dia 24 de abril de 1974 estava a terminar.