domingo, dezembro 07, 2014

Mário Soares

Começo por uma declaração de interesses: sou amigo de Mário Soares.

Vi-o pela primeira vez em 1969, à porta da Sociedade Nacional de Belas Artes, na rua Barata Salgueiro, em Lisboa, numa noite em que o então líder da oposição socialista pretendia aí fazer uma "sessão de esclarecimento". A polícia proibiu o "ajuntamento" e ouvi Soares, com voz forte e indignada, a contestar a decisão diante do famigerado capitão Maltez, antes deste ter ordenado a dispersão daquelas dezenas de pessoas, "por ordem do governo". Lembro-me bem de Soares perguntar, jocoso: "e que ministro é que deu a ordem? O da Agricultura?". Um grande jarrão à entrada de um vizinho restaurante chinês, atrás do qual me refugiei com uma amiga, ia sendo a vítima colateral da subsequente fuga dos circunstantes.
 
Cruzaria depois Soares, ainda nesse ano, em duas outras reuniões da oposição. Eu estava então noutra onda política, longe das suas ideias, mas apreciava-lhe já a coragem e a determinação. Depois das "eleições" de outubro desse mesmo ano, em que Soares e os seus amigos tiveram um resultado muito fraco - relativamente ao resto da oposição -, o líder socialista saiu do país e, mais tarde, seria obrigado a permanecer no estrangeiro, sob pena de ser preso se regressasse a Portugal. Só aqui chegaria em 29 de abril de 1974.
 
Verdadeiramente, a primeira conversa que me lembro de ter tido com Mário Soares seria quase 20 anos depois, em Londres, na nossa embaixada, aquando da sua visita de Estado, como presidente, ao Reino Unido. Falámos desses episódios da luta contra a ditadura e de amigos comuns. Criámos uma imediata relação de simpatia.
 
Em fins de 1995, dar-me-ia posse como membro do governo e, poucos dias depois, acompanhei-o a Israel e à Palestina, escassos meses antes dele abandonar Belém. Lembro-me de uma frase que então me disse: "Sabe que, em 10 anos como presidente, é a primeira vez que sou acompanhado numa visita oficial ao estrangeiro por um membro do governo da minha família política?" Era verdade. Fui o primeiro e o último, embora Soares me tivesse contado histórias que revelavam o cordial entendimento que tinha tido com alguns governantes do "cavaquismo", período a que Guterres tinha posto um ponto final, semanas antes.
 
Desde então, convivi bastante com Mário Soares. Tive o gosto de o ter a prefaciar e a apresentar um livro meu. Andei com ele por vários locais, de Estrasburgo a Roma, de Brasília a Paris. Em Lisboa, na sua Fundação e em várias outras ocasiões, tive o ensejo de trocar com ele impressões sobre o mundo, sobre a Europa e sobre as pessoas que ele cruzou. Integrei a "comissão de honra" da sua frustrada terceira candidatura à Presidência da República, que achei dispensável mas que entendi ter o dever moral de acompanhar. 
 
Tenho orgulho em poder hoje afirmar que sou amigo de Mário Soares. Tenho por ele um imenso respeito, uma profunda consideração pela sua postura cívica, pela magistratura ética que representa para o nosso país. No passado, nem sempre estive de acordo com ele e, ainda hoje, divirjo de algumas atitudes que toma ou de declarações que faz, sendo que essa divergência é muitas vezes mais pela forma do que pelo conteúdo. Mas essa é a "graça" de Mário Soares: ter a coragem da opinião forte, não se importar com a polémica, saber arrostar com a crítica, não se calar perante a indignação. Ter-lhe-ia sido mais fácil, se quisesse passar imune por entre as pingas da conjuntura, remeter-se a um silêncio de "Colombey", construir um currículo de silêncios graves, numa parcimónia de palavras e gestos que é a patine que molda os estadistas de cera. Soares não é assim e felizmente que o não é.
 
Mário Soares faz hoje 90 anos. Vou estar com ele e com alguns dos seus muitos amigos para lhe dar um forte abraço e para lhe agradecer a ventura que é tê-lo connosco. Soares não durará sempre e, quando um dia desaparecer, tenho a certeza que o nosso país ficará tristemente órfão do seu exemplo cívico.

sábado, dezembro 06, 2014

Tratado orçamental

Parece-me pouco sensato ouvir agora, da boca de alguns responsáveis da nova direção do PS, a ideia de que a anterior liderança não devia ter concedido o seu voto ao Tratado Orçamental europeu, quando, em 2012, esse instrumento jurídico foi submetido à ratificação pelA Assembleia da República, depois da sua assinatura.

O Tratado Orçamental foi uma medida de reforço do rigor macroeconómico desenhada para tentar acalmar os mercados, num tempo de grande incerteza. Não se nega o seu caráter constrangente e mesmo o eventual irrealismo daquilo que prevê em termos de metas. O PS votou a favor do Tratado na Assembleia da República. O que teriam feito os socialistas se acaso fossem poder em Portugal, à época? Se acaso tivessem conduzido o país a um voto contra, Portugal teria ficado isolado e seriam acusados de um gesto de grande irresponsabilidade. Basta pensar o que aconteceu com os socialistas franceses que, depois de uma grande agitação retórica antes das eleições presidenciais, acabaram por subscrever o Tratado, logo que regressados ao poder.

Alguns poderão dizer: mas se, em 2012, havia na AR uma maioria de direita suficiente para fazer aprovar o Tratado, não poderia PS ter evitado "sujar as mãos" com esse seu voto? Não. O PS é um partido de poder, não poderia ter gestos oportunistas dessa índole sem atingir a sua credibilidade política internacional. António José Seguro fez muito bem em fazer votar o Tratado Orçamental.

Outra coisa, agora, é a necessidade do PS, como António Costa tem vindo a defender, se juntar a quantos, um pouco por toda a Europa que subscreveu o Tratado, pugnam por uma sua leitura "inteligente", nomeadamente no tocante à discussão dos fundamentos em que assenta o conceito de "défice estrutural" e na questão dos critérios caraterizadores dos ciclo económicos, que poderão flexibilizar o rigor dos seus preceitos.  Essa, sim, é uma "bonne guerre".

sexta-feira, dezembro 05, 2014

Gastronomia

Hoje, a Academia Portuguesa de Gastronomia, presidida por José Bento dos Santos e da qual faço parte, procedeu, no Grémio Literário, à entrega anual dos seus prémios. Com um almoço, naturalmente.

Dentre os prémios, quero destacar o prémio "Maria de Lourdes Modesto", destinado a premiar, "a título excecional", "um restaurante de cozinha tradicional portuguesa de grande qualidade". A distinção, cujo merecimento pessoalmente reitero, foi para o transmontano "Geadas", um excelente restaurante da cidade de Bragança.

Na ocasião, tive o gosto de conhecer a patrona do prémio, Maria de Lourdes Modesto. Para além de fazer parte da memória televisiva da minha geração, a ela se deve uma cuidadosa recolha de receituário culinário português que muito tem contribuído para a fixação desse nosso património cultural.

"Tudo pela Palestina?"

Há pouco mais de três anos, Paulo Portas, num sound bite mais apropriado a um título de “O Independente” do que a uma declaração de um responsável pela política externa de um Estado, saiu-se com a frase “Tudo pela Palestina, nada contra Israel”. Tentar resolver a quadratura do círculo é uma atitude estimável, mas gratuita.
 
A comunidade internacional vive, desde há anos, com o angustiante dilema de tentar proteger Israel do recorrente extremismo de alguns dos seus dirigentes. Simultaneamente, e não obstante a diversidade na abordagem, o mundo tem procurado dar alento, político e financeiro, à estruturação do Estado palestino, ciente de que não pode deixar de responder à profunda injustiça que atravessa o destino do seu povo.
 
Israel parece agora tentado a uma fuga para a frente a qual, a concretizar-se, pode vir a ter consequências naquilo que, até agora, era a sua identidade inatacável: a democraticidade do seu regime. Ao optar pelo caráter judaico do seu Estado, Israel caminha para um regime de “apartheid” – e devemos ter a coragem de dizer estas coisas com todas as letras.
 
É lamentável que o governo português revele uma imensa tibieza face ao crescente movimento europeu no sentido de reconhecer o Estado da Palestina, como se já não tivesse bastado a lamentável postura assumida por ocasião da integração da Palestina na UNESCO, que foi depois necessário retificar de forma atabalhoada na ONU. A política externa portuguesa deve mostrar-se coerente com o sentido de responsabilidade que revelou, por muitos anos, ao abordar a questão israelo-palestina. Assim, deveria agora ter estado na linha da frente deste reconhecimento, não ficando comodamente à espera da sua quase inevitabilidade, com conforto parlamentar, para fazer esse gesto. "Prudência e caldos de galinha" não ilustram uma postura internacional e tentar passar despercebido e ganhar tempo, apenas para agradar a amigos poderosos, é apenas uma forma de poder ser vir a ser acusado de oportunismo. Isso não dignifica Portugal, como nas Necessidades deviam saber.
 
Artigo que hoje publico no "Diário de Notícias"

Interrogação

Hoje, no "Diário de Noticias", publico um artigo que intitulei "Tudo pela Palestina?".
 
Olho agora para o "online" do jornal e verifico que o ponto de interrogação desapareceu. Apenas no "online". Mas muda tudo. É a vida!

quinta-feira, dezembro 04, 2014

Sem Camarate

O exercício não deixa de ser fascinante, embora sem consequências.
 
Qual teria sido o futuro político de Francisco de Sá Carneiro e de Adelino Amaro da Costa se, na noite de 4 de dezembro de 1980, não tivessem morrido no desastre aéreo (fujo de qualificar como acidente ou atentado) de Camarate?
 
Há certezas: Eanes ganharia de igual modo as eleições presidenciais, dois dias mais tarde, contra Soares Carneiro. E Sá Carneiro não continuaria na chefia do governo. Mas haveria novas eleições, com Eanes a tentar "cavalgar" a sua vitória, ou a solução Balsemão iria de qualquer forma ter lugar, como aconteceu? E que faria Francisco Pinto Balsemão como primeiro-ministro, com Sá Carneiro fora de cena, a guardar para si a verdadeira legitimidade social-democrata? Sabe-se que Freitas do Amaral também não continuaria no executivo. E a Aliança Democrática? Manter-se-ia? Era muito pouco provável que Adelino Amaro da Costa viesse a ser a "cara" do CDS num governo Balsemão, tanto mais que fora ele o responsável pela falhada escolha de Soares Carneiro como candidato da direita. Que governo, liderado pelo PSD, surgiria no imediato?
 
Sá Carneiro teria hoje 80 anos. Qual teria sido o seu percurso desde então? Se não tivesse havido Camarate, seis anos depois, Portugal teria entrado de igual modo para a Europa comunitária. Que oportunidade teria entretanto tido Cavaco Silva para se afirmar no seio do PSD? Como teria sido a evolução da relação entre Sá Carneiro e Mário Soares, o verdadeiro contraponto geracional que se esperaria? Em 1986, Sá Carneiro teria sido eleito contra Mário Soares, que derrotou Freitas do Amaral com grande dificuldade? O carisma de Sá Carneiro seria suficiente para criar um grande partido de direita, absorvendo o CDS?
 
E Amaro da Costa? Continuaria a subordinar-se à tutela de Freitas do Amaral, ele que era politicamente muito mais hábil? Teria hoje 71 anos. Será que ele teria conseguido garantir uma melhor progressão dos centristas no espetro político, escapando aos períodos de grande instabilidade que afetaram o CDS?
 
Tudo isto são especulações. A realidade é o que está aí. 

As fotos

Há bastantes anos, num momento complexo de uma negociação financeira europeia, em que a posição portuguesa era muito delicada, dei uma entrevista a um jornal diário. Foi um prestação relutante, pela sua oportunidade, só realizada dada a particular consideração que a jornalista que a solicitou me merecia. Acrescia o facto de estar engripado e com um pouco de febre. A conversa correu bem, mas, talvez talvez pela minha concentração, distraí-me e não atentei no deambular do fotógrafo pelo gabinete. No dia seguinte, ao olhar para o jornal, dei-me conta do texto ter sido ilustrado por fotografias em que surjo com um braço estranhamente cruzado sobre a testa e numa atitude facial que poderia significar quase desespero. A seleção feita pelo paginador privilegiou imagens que pretendiam ilustrar um tempo de "tragédia". Na realidade, apenas refletiam um entrevistado febril.

Recordo-me que a jornalista que fez a entrevista ficou desagradada e me pediu desculpa pelo modo como ela fora tratada pelo jornal, no que havia sido, objetivamente, um ato de desrespeito pouco consentâneo com um profissionalismo correto. 

Com um fotógrafo a passarinhar à nossa volta durante largos minutos, é impossível que ele não fixe instantes que, se isolados, podem parecer ridículos. Os nossos gestos não são controlados ao ponto de mantermos sempre a maior das elegâncias, particularmente se estivermos descontraídos a falar com alguém. Todos nós temos a experiência de eliminar, com regularidade, fotografias em que achamos que "estamos mal". Imagine-se agora que era feito um álbum nosso precisamente com a coleção dessas imagens...

Tenho-me lembrado disto ao observar as fotografias que os jornais escolhem, nos últimos dias, para acompanhar as reportagens sobre José Sócrates. É uma interessante ilustração do modo como a seleção das imagens, o caráter sombrio dos planos ou os esgares captados numa imagem de rua ou numa pausa de uma cerimónia, servem para transmitir uma nota subliminar, ligada ao sentido da mensagem que o texto pretende fazer passar. Sublinho que esta minha observação não tem qualquer sentido crítico. É perfeitamente natural que isto assim suceda, que as reportagens procurem, nos arquivos, os apoios de imagem mais adequados, mas isso não impede que ache interessante que saibamos "desconstruir" o modo como as nossas sensações são condicionadas.

Uma questão talvez incómoda

Há semanas, num jantar com um antigo ministro de uma das antigas colónias portuguesas, que tinha vindo ao nosso país para estar presente numa evocação da Casa dos Estudantes do Império, coloquei-lhe uma questão: será que os novos países emergentes da colonização portuguesa manifestaram já o seu reconhecimento àqueles que, em Portugal, sob a repressão da ditadura, lutaram a seu lado, defendendo a independência dessas colónias?

A oposição ao Estado Novo chegou tarde ao anti-colonialismo. O patriotismo do movimento republicano, no final do século XIX, tinha a defesa das colónias no eixo da sua doutrina. Já no século XX, Portugal forçou a sua entrada na Grande Guerra como forma de poder sentar-se à mesa dos vencedores, que decidiria o futuro dos territórios. Cunha Leal e Norton de Matos, figuras destacadas da oposição a Salazar, eram orgulhosos "colonialistas", tendo-se confrontado nesse terreno com Salazar em termos meramente metodológicos. Nos anos 50, perante o movimento independentista que se generalizou às colónias britânicas, francesas e belgas, os democratas portugueses permaneceriam por muito tempo numa linha recuada.

Embora com um "timing" bastante atrasado face aos seus congéneres europeus, verificaremos que os comunistas portugueses foram os primeiros a iniciar uma leitura sobre a inevitabilidade da independência das nossas colónias. O desencadear da luta armada em Angola, e a tomada do Estado da Índia, em 1961, marcam o início desse novo tempo. Se nenhuma hesitação se pode igualmente registar da parte dos movimentos de extrema-esquerda, surgidos na vida política portuguesa a partir de 1962, já na área socialista o tema levou muito mais tempo a maturar: durante as "eleições" legislativas de 1969, o discurso "ultramarino" da Ação Socialista Portuguesa (ASP), liderada por Mário Soares na CEUD, manteve-se ainda muito equívoco. Já antes, aliás, na origem da crise da Resistência Republicana e Socialista, que daria origem à cisão entre a ASP e a Ação Democrato-Social, a questão colonial havia estado já ligeiramente presente.

Pode dizer-se que as eleições de 1969 representaram o momento em que a questão da luta anti-colonial passou a estar no centro do discurso oposicionista. É nessa altura que começam a multiplicar-se ações muito concretas de apoio aos "movimentos de libertação", com uma curiosa incidência nos meios católicos, enfunados pela leituras radicais do Concílio Vaticano II, de que o episódio da Capela do Rato (1972) é um exemplo importante. Exemplos como o CIDAC (Centro de Informação e Documentação Anti-Colonial, reconvertido, após 1974, em Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral) e as ações violentas conduzidas pelas Brigadas Revolucionárias e pela Ação Revolucionária Armada são apenas algumas dentre as muitas estruturas cuja ação ilustrou, de forma muito clara, essa atitude anti-colonial no seio da oposição à ditadura. Note-se que a repressão policial tinha as expressões de apoio à luta armada nas colónias como alvo prioritário.

Apoiar a independência das colónias nunca foi fácil. Com tropas portuguesas a morrerem nas frentes africanas, no combate aos movimentos independentistas, estava longe de ser cómodo assumir, em Portugal, um apoio a esses grupos. Quem o fez arrostou - e às vezes ainda arrosta - com um labéu de "traidor", que se estendeu com particular virulência aos desertores. Ter razão antes do tempo é, quase sempre, bastante complexo.

E volto ao princípio, para me interrogar sobre se os novos Estados, passados que são quase 40 anos sobre as suas independências, marcaram já, de forma clara e inequívoca, o seu reconhecimento histórico face a quantos, deste lado europeu - mas também, em alguns casos, no seu próprio território -, arriscaram a sua vida e a sua segurança para apoiarem uma luta que consideravam justa. Não creio que isso tenha sido feito e tenho pena: essa seria uma ação pedagógica junto das próprias opiniões públicas das antigas colónias, que assim melhor perceberiam que os seus povos puderam contar, a partir das suas primeiras movimentações de contestação dos poderes de Lisboa, com bons e leais amigos na "frente" do próprio país colonizador, que por eles correram fortes riscos e muitos dos quais pagaram por isso um imenso preço. Talvez a própria imagem de Portugal junto desses novos Estados pudesse vir a ganhar com isso. Mas, um gesto desses, a ser feito, teria de sê-lo num prazo de tempo razoavelmente rápido. É que essa geração portuguesa começa já a desaparecer.

quarta-feira, dezembro 03, 2014

A esquerda e as greves

Às vezes, há a ideia que ser de esquerda é estar, como regra, ao lado daqueles que fazem greves. Assim, não sei o que há-de fazer alguém que se considera de esquerda e que se opõe:
 
- às greves do pessoal da TAP, que afetam dia após dia, o valor da companhia e parecem ter como objetivo desvalorizá-la para a "passar a patacos" na privatização;
 
- às greves de enfermeiros por altura do surto da "legionella";
 
- às greves dos maquinistas da CP, que já se fazem substituir por atrizes brasileiras na condução a alta velocidade;
 
- às greves dos professores comandados pelo inefável Mário Nogueira, cujos estudantes a quem deu a última aula devem estar já à beira da reforma.

Concerto de beneficência

A Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica (APELA) organiza no Teatro Nacional de São Carlos um concerto para angariação de fundos, na sexta-feira, dia 12 de dezembro.
 
O reduzido número de doentes a nível mundial desta enfermidade genética (em Portugal são "apenas" 700) levou ao desinteresse dos laboratórios no investimento em investigação desta terrível doença degenerativa. Nos Estados Unidos iniciou-se um movimento de sensibilização (o "ice bucket", o balde de gelo) que levou personalidades como Bill Gates a doar 8 milhões de dólares. Em Portugal, os amigos e familiares desses doentes - e eu conheço alguns - tentam alertar e mobilizar as boas vontades para a gravidade do problema. Todos se recordarão, nas televisões e jornais, das cenas dos "bandes de gelo", com vista à recolha de fundos. Mas é necessário fazer mais e daí a razão deste concerto.
 
Na primeira parte do concerto, haverá música sinfónica com a Orquestra do Norte: obras de Manuel de Falla e Luis de Freitas Branco. A segunda parte será dedicada à ópera, com o cantor russo Sergei Leiferkus, a soprano Elmira Karakhanova e o baixo Misha Gravilov, acompanhados pela Orquestra do Norte, dirigida pelo seu maestro titular, José Ferreira Lobo. Serão interpretadas diversas árias e duetos famosos.
 
Pode reservar os seus bilhetes através do 910690559 e obter informação complementar através do mais gala.apela@gmail.com

Necessidades

É um retorno inesperado, confesso. Não fazia parte dos meus cenários de futuro regressar a questões ligadas à vida interna dos Negócios Estrangeiros, das quais me tinha afastado, por completo. Porém, a persistente insistência de um grupo de jovens diplomatas fez com que aceitasse, pelo período de um ano, regressar às lides do associativismo sindical diplomático.
 
A difícil situação que atravessa a "condição diplomática" obriga-me a dar um contributo, ainda que modesto, à organização dessa inquietação no seio da Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses (ASDP), como candidato à presidência da sua Assembleia Geral. É uma lista que tem os meus colegas e amigos Manuel Marcelo Curto e Josefina Carvalho, respetivamente, na chefia da Direção e do Conselho fiscal, acompanhados por gente das novas gerações que consideramos ser nosso dever apoiar, nestes tempos complexos.
 
Há precisamente 20 anos, tinha feito parte, como vice-presidente, de uma Direção da ASDP chefiada por António Santana Carlos, que desenvolveu um interessante trabalho de diálogo com o poder político de então, para a revisão do Estatuto da carreira diplomática. Agora, a agenda da ASDP centra-se precisamente no mesmo tema. Toynbee terá razão?

terça-feira, dezembro 02, 2014

Palestina

Quando, há algum tempo, publiquei no "Diário Económico" um artigo sobre Israel, muito crítico da posição do governo de Telavive, tive fortes mas espectáveis reações. Uma amiga israelita ofendeu-se e deixou de me falar, um amigo português telefonou a dizer esta frase curiosa: "Só hoje acreditei que não tens ambições políticas. Ninguém que as tivesse poderia escrever o que escreveste". Como se eu não soubesse isso.

Dou uma contribuição mais para essa avaliação ao dizer agora que acho profundamente lamentável que o Estado português revele uma imensa tibieza face ao crescente movimento europeu no sentido de reconhecer o Estado da Palestina. Como se já nos não tivesse bastado a triste postura assunida por ocasião da integração da Palestina na UNESCO, que foi depois necessário retificar de forma atabalhoada. A política externa portuguesa deveria mostrar-se leal e coerente com momentos do seu passado em que revelou um forte sentido de responsabilidade ao abordar a questão israelo-palestina e afirmar-se agora na linha da frente deste reconhecimento, não ficando comodamente à espera da sua quase inevitabilidade para fazer esse gesto. "Prudência e caldos de galinha" não ilustram uma postura internacional e tentar passar despercebido e ganhar tempo é apenas uma forma de poder ser vir a ser acusado de mero oportunismo. Isso não dignifica Portugal, como nas Necessidades deviam saber. Não me agrada trazer polémica a um terreno em que o consenso deve prevalecer, mas há limites.

segunda-feira, dezembro 01, 2014

O mistério da RTP

Com as trapalhadas supervenientes, dos vistos "gold" ao caso Sócrates, já quase esquecemos a desgraça do sistema informático da Justiça ou a incompetência sem par no início do ano letivo. 

Quando vivi no Brasil, num jantar, no auge de um escândalo qualquer, ouvi um político, entre o irónico e o sério, dizer mais ou menos o seguinte: "Temos de aguentar a pressão dos mídia uns dias mais. É que, pela estatística, deve estar por aí a surgir um outro caso que logo fará esquecer este..." E Portugal é uma "colónia" brasileira nesta matéria.

Mas uma coisa é ter de sofrer as eventualidades, outra é ser delas fautora. E, nesse aspeto, este governo não para de surpreender. É o que acontece com a crise na RTP, onde se espera que não venham a ser assacadas culpas à oposição (há ainda uma hipótese: dizerem que tudo é fruto da saída de Sócrates de comentador). Com uma inabilidade quase inédita no tratamento da RTP (e fazer pior que outros governos, de diferente orientação, é entrar para o Guiness!) este executivo fez "gato e sapato" da RTP, nomeou, desnomeou, teve e deixou de ter estratégias para a RTP 2, para a RTP i, criou conselhos, legislou sobre serviço público. O habitual na escola "agora é que é!" Lá dentro, na RTP mas também na RDP, vive-se um ambiente angustiado, de imensa incerteza, de grande desânimo e preocupação.

A propósito dos contratos do futebol - e seguramente mobilizado pelos concorrentes da televisão estatal, a quem é forçoso "ouvir", em época pré-eleitoral... -, está hoje estabelecida uma enorme confusão entre uma administração nomeada pelo governo e um conselho estratégico pelo governo nomeado. Se são tudo "valores entendidos", como antes se dizia, porque não se coordenam? Ou, como na anedota se recomendava: organizem-se! 

Pedaço de asno

Gosto da expressão "pedaço de asno". O meu amigo Ferreira Fernandes, numa das suas imperdíveis crónicas no DN, utilizou-a, há dias, para crismar um determinado escriba da imprensa a que temos direito. É um qualificativo forte, mas (pensando bem!) tem algo de elegante. Ao utilizá-lo em relação a alguém, foge-se do plebeísmo, não se usa "burro", "besta" ou mero "animal", recorre-se ao termo mais erudito, hoje protegido pelo politicamento correto da preservação das espécies. Asno é, no fundo, um "upgrade". E então se se usar o apóstrofo - "pedaço d'asno" - ascendemos mesmo à nobilitação do conceito. Além disso, quem assim é designado é apenas um pedaço, um bocado, uma fatia de um asno, pelo que, numa determinada leitura, fica mesmo "à porta" de ser um verdadeiro e completo asno. Numa perspetiva menos gloriosa, poderia dizer-se que nem dessa total categoria subequídia se pode reclamar. Mas, se se olhar pelo "bright side" das coisas, numa leitura benévola, a pessoa assim qualificada não chega a ser um verdadeiro asno, o que, de certo modo, pode ser, para ela, um elogio. E, para alguns, é mesmo.

Cá por mim, aprendi de há muito uma expressão para designar esses pobres em espírito: "paralelepípedo batizado". Há décadas que ouvi esta fórmula e acho que a irrecusável solidez do conceito, associado à sua dimensão telúrica, lhe confere uma dignidade que reforça a sua autenticidade. A um paralelepípedo, na sua rusticidade, não se pode exigir que pense mas, ao mesmo tempo, o facto de ser beneficiado com um nome permite-lhe poder reivindicar-se de uma identidade própria. O que não é pouco, para certos cretinos. Na minha terra, bem para o norte, quando a bondade nos leva a escapar dos qualificativos, costumamos atirar a essas figuras uma fórmula definitiva: "quem te atasse um arado!" Fica tudo dito!

Mas tem razão, Ferreira Fernandes, seja como for que os designemos, isto está cada vez mais cheio "deles"!

O 1° de dezembro

António Barreto chamou "estupidez" à decisão governamental que eliminou o 1° de dezembro do mapa dos feriados nacionais. Eu falei em "ignorância" e "irresponsabilidade". Não fixei exatamente os termos utilizados pelos restantes oradores, como Adriano Moreira e Eurico de Figueiredo, na crítica unânime a essa medida. Foi durante a sessão organizada pela Associação dos Antigos Alunos do Liceu Camilo Castelo Branco, em Vila Real, precisamente para comemorar a data da Restauração.

Juntámos cerca de duas centenas de pessoas, unidos pelo interesse em rememorar a data, a sua simbologia, muito para além das sensibilidades políticas. É que o 1° de dezembro não é uma data apropriável pelas ideologias, muito embora o Estado Novo me tivesse feito marchar algumas vezes, de camisa verde (a minha mãe enchouriçava-me de camisolas), calção castanho curto (!!!) e um cinto com um grande S (que era de Salazar mas que a vergonha levava os prosélitos do regime a dizer que era de Serviço), de braço estendido em saudação romana (e também nazi-fascista), sob o frio matinal de uma Vila Real invernosa. Nem assim fui dissuadido de venerar o gesto histórico dos conjurados que, em 1640, recuperaram a nossa independência de Madrid.

Para o ano, espero regressar a Vila Real no 1° de dezembro, já com o feriado reposto. Voltarei a encontrar os velhos amigos na "ceia" da véspera da data, que agora se faz já com as mulheres (no meu tempo de liceu, as "ceias" eram exclusivamente masculinas), com outros pratos para além do arroz de frango (a tradição era a ceia ser confecionada com as "penosas" desviadas dos quintais, por onde nos introduzíamos nas noites anteriores). Iremos, como sempre, cantar o Hino da Restauração e berrar os Efe-Erre-Ás de regra, com a romagem à estátua de Camilo Castelo Branco, no jardim da Carreira. E, a partir de então, procuraremos fazer esquecer à cidade que foi um primeiro-ministro dela originário quem decidiu promover a suspensão da comemoração dessa data fundacional da nossa identidade e do nosso orgulho como país.

Viva o 1° de dezembro!

domingo, novembro 30, 2014

Socialistas

António Costa venceu, da forma esmagadora que já se presumia, o congresso do PS. A sombra da tragédia que envolve José Sócrates pairou por algum tempo sobre o conclave socialista, mas Costa foi capaz de mobilizar as hostes e de dar um sentido de forte unidade política ao seu partido. Os "seguristas" terão sido respeitados, os "socratistas" não terão sido excluídos e só Francisco Assis terá visto o seu individualismo desenquadrado da nova liderança. O discurso de encerramento de António Costa foi uma lufada de esperança, pelo que é agora de presumir que o PS exerça, neste ano que o separa das eleições legislativas, uma oposição determinada e efetiva à maioria "sortante", como dizem os franceses. Este congresso acabou por correr muito melhor para o PS do que, à partida, se poderia esperar.

À porta do conclave ficaram dois nomes: Sócrates e Seguro.

O futuro de José Sócrates não passa pelo PS, mas o contrário não é necessariamente verdade. Se Sócrates estiver inocente e impoluto, como espero e desejo, essa será uma sua grande vitória pessoal e sairá pela porta grande, com tudo o que isso representará para o prestígio da nossa Justiça. Se acaso se viesse a provar que, no exercício de funções de Estado, Sócrates tinha cometido algum delito grave, esse já seria então um problema do qual o PS não sairia incólume. Para já, e porque o reino do "achismo" só aos especuladores interessa, aguardemos. Quanto ao juízo que os socialistas fazem do trabalho de Sócrates à frente dos governos, só posso esperar que haja seriedade, isto é, destaque público para o muito que foi feito de bom e uma reflexão serena e modesta sobre os aspectos negativos que haja a apontar. O resto é "espuma"...

António José Seguro, cujo comportamento durante a campanha interna no PS não me eximi de criticar, é uma figura de bem, cujo recato atual configura uma atitude de grande dignidade, à altura daquilo que, com grande sentido de Estado e de serviço público, executou durante os cerca de três anos do seu mandato. O PS deve a Seguro a construção, num tempo inigualavelmente difícil, de um património de ideias e propostas que, sem a menor dúvida, também estarão no centro do programa de António Costa. E fica igualmente devedor de um ato de abertura democrática do partido que permitiu o sopro de legitimidade de que António Costa é hoje beneficiário. António José Seguro pode não ter o élan mobilizador de Costa, mas é um homem respeitável que também integra a história do socialistas.

Este é o primeiro dia de um PS renovado que se espera possa estar à altura daquilo de que muita gente no país hoje espera.

António

Como o tempo passa! Há precisamente 40 anos, António Antunes - que assina simplesmente António - publicava no "Expresso" o seu primeiro cartoon. Ao longo destas décadas, o mais genial e talentoso cartoonista português fez um imenso retrato a cores do país e do mundo. Um e outro premiaram fartamente a sua obra, que hoje é conhecida por toda a parte.

Ao António, membro da nossa tertúlia da "mesa dois", deixo aqui um forte abraço de amizade e de parabéns. E resisto à quase obrigatória tentação de reproduzir aqui um dos seus desenhos - embora hesite muito quanto aos que prefiro, dentre uma obra tão rica - colocando o seu retrato, onde se destaca o permanente sorriso, mas de onde se não ouve a voz inconfundivelmente rouca, que, pelas noites do Procópio, nos traz a graça do seu humor e fina ironia.

sábado, novembro 29, 2014

O governador civil (3)

Estava-se em julho de 1969. Havia sido convidado pelo meu tio, Humberto Cardoso de Carvalho, para o acompanhar num passeio turístico com a família pelo sul de França. Colocava-se, porém, um obstáculo: eu estava em "idade militar", pelo que havia uma certa dificuldade em ser-me concedido um passaporte, necessitando de uma credibilitação prévia. Como o meu tio conhecia bem o governador civil, Torcato de Magalhães, fomos ambos por ele recebidos e o assunto resolveu-se, sem grandes dificuldades.

Fez-se a viagem. Passados dois meses, o país entrava em ebulição política com a preparação das primeiras "eleições" legislativas (à época, o regime não admitia outras e mesmo estas mereciam fortes aspas) da era Marcelo Caetano. Salazar caíra da cadeira em agosto do ano anterior, Caetano herdara-lhe o lugar, menos de dois meses depois. Durante as férias, o meu tio, que havia sido seduzido pela "abertura" política que então se anunciava aos quatro ventos, tinha-me dito que aceitara liderar a lista "marcelista" de deputados pelo distrito.

As hostes oposicionistas locais, pelo seu lado, não estavam paradas. Congregadas em torno da Comissão Democrática Eleitoral (CDE), pediram uma audiência ao governador civil para lhe fazerem a entrega formal da sua lista dos candidatos a deputados pelo distrito. Solene mas cordial, Torcato de Magalhães recebeu uma manhã três responsáveis oposicionistas: Otílio de Figueiredo, Délio Machado e... eu. Ao ver-me entrar, senti que os seus olhos se arregalaram um pouco. Então aquele miúdo (eu tinha 21 anos) que, dois meses antes, lhe fora apresentado pelo agora líder politico local do regime, integrava o núcleo duro dos próceres do "reviralho"?

Acabada a cena, Torcato de Magalhães telefonou de imediato ao meu tio que, com toda a naturalidade, lhe respondeu que já sabia da minha opção e que "o rapaz tem todo o direito de ter as suas ideias". O governador civil deve ter ficado um pouco confundido. 

sexta-feira, novembro 28, 2014

O governador civil (2)

Esta é uma história que faz parte da mitologia de Vila Real e, ainda há semanas, a ela se referiu no Facebook o meu amigo Carlos Leite, um vilarealense "exilado" no refastelo do sol da Grécia.

Nos anos 50 do século passado, o Governo civil de Vila Real era chefiado pelo coronel Augusto Sequeira, um grande homem de bem a que me ligaram laços de amizade e grande simpatia, e a cuja comemoração do centenário de vida tive mesmo o privilégio de assistir. Era um "craveirista", um próximo de Craveiro Lopes, o presidente pouco cómodo de quem Salazar acabaria por se desfazer em 1958, optando por essa figura de antologia anedótica que se chamou Américo Tomaz.

Augusto Sequeira recebia nesse dia, em Vila Real, o então ministro do Interior, Trigo de Negreiros, um homem originário de Mirandela que também viria a cair politicamente em 1958. Passeavam-se os dois pelas ruas da cidade, numa tarde seca de inverno, aproximando-se a certa altura da Pastelaria Gomes, então (e ainda um pouco agora) o eixo social do burgo. À chegada à esquina no edifício, preparando-se para entrar no café, o valpacense Sequeira comentou alto, para Trigo de Negreiros, com a cumplicidade regional que os unia:

- Está um frio tipicamente transmontano!

Antes que Negreiros pudesse retorquir, a um gandulo de samarra que se encostava à esquina, fumando uma perisca, e quase sem os olhar, saiu esta frase que ficou nos anais locais:

- Transmontano o c...o ! Está mas é um frio f...o !

A doutrina divide-se sobre a sequência do episódio. As versões mais reviralhistas dão conta do rapaz ter sido encaminhado por um cívico para a esquadra da PSP, ali perto, por baixo do Governo civil. Leituras benévolas dão incidente por findo com uma repreensão risonha feita ao atrevido pelas figuras políticas. 

Uma coisa não mudou: passei há pouco pela esquina da Gomes e, embora não ousando a mesma ênfase lexical, sou levado a concluir que o famoso anónimo dos anos 50 do século passado continua a ter a sua razão...

quinta-feira, novembro 27, 2014

O governador civil

No tempo "da outra senhora", o lugar de governador civil, em especial na província, era um posto de alguma importância. Os ministros viajavam pouco, Lisboa podia ficar longe e competia aos governadores informar sobre a realidade local e representar localmente o governo. Porque os autarcas eram nomeados pelo partido único, cabia aos governadores - homens da estrita confiança do governo - um papel decisivo na seleção dos presidentes dos municípios e suas vereações. Daí a importância objetiva desses chefes dos distritos, que alguns relativizavam com maior ou menor simpatia, que a outros enfatuava o porte.

Em Vila Real, recordo-me das caras de vários governadores do Estado Novo. Deles me ficou a imagem de que se passeavam pelas ruas com alguma pompa, acompanhados de figuras, figurantes ou mesmo figurões locais, ungidos da vaidade de serem vistos a fazer parte do serralho do poder. O "senhor governador" era, sem exceção, o centro dessa coreografia, revelando o seu ascendente por um pormenor que, para mim, foi sempre significativo: se, durante o passeio, para sublinhar um argumento, ele decidia travar o passo, logo o rebanho à volta suspendia a marcha e atentava nas importantes palavras que sua excelência entendia relevar. E, ao seu estugar do andamento, todos os outros o seguiam. Se Roland Barthes passasse então em frente à Gomes ou na rua Central, retiraria dali um capítulo para os seus estudos de semiologia. No mínimo, dedicaria uma das suas "Mitologias" a essas curiosas figuras que compunham a teatralidade político-social da ditadura.

Porque me lembrei disto agora? Porque passei, há minutos, junto a um desvio para a aldeia de Moura Morta, entre Castro Daire e Lamego, e recordei-me que havia uma figura dessa aldeia que vinha com frequência a Vila Real e que, pela sua pose e ar majestático era conhecida na cidade, jocosamente, como o "governador civil de Moura Morta". Mas não tinha o exclusivo do apodo: um comerciante de Lordelo, às portas de Vila Real, aliás homem simpático e agradável, possuidor de uma "bela figura" e andar pausado, foi também, durante anos, conhecido como o "governador civil" de Lordelo. De certo modo, estas designações acabavam por ser um implícito reconhecimento do prestígio do cargo.

Com a chegada da democracia, os governadores civis deixaram de ter alguma "graça" - e que me perdoem alguns bons amigos que exerceram esse cargo. Com os autarcas a serem as figuras centrais do jogo político local, esses representantes do poder central foram sendo limitados nos seus poderes. O governo que aí anda decidiu mesmo acabar com eles. Não sou nostálgico, mas a entrada de um governador civil da "outra senhora" na Gomes era um espetáculo!

"Com amizade"


Há pouco, o Cante Alentejano foi considerado pela UNESCO como "património mundial". Aqui deixo uma história alentejana, e não só.

No auge dos tempos revolucionários de 1975, o Alentejo vivia sob as movimentações da Reforma Agrária, com a ocupação das propriedades rurais e o ataque aos respetivos detentores - os "grandes agrários", tidos como historicamente responsáveis por graves injustiças sociais e económicas, autorizadas e protegidas pela lei e pela repressão policial, durante a recém-abolida ditadura. "A terra a quem a trabalha" era o lema que dava corpo a um movimento tendente a forçar uma reversão de poder, onde o Partido Comunista Português teve grande influência, nele se destacando a criação das UCP's (Unidades Coletivas de Produção), estruturas emblemáticas no novo modelo produtivo em expansão nas grandes propriedades. A realidade agrária alentejana iria ter impactos muito fortes nos equilíbrios da governação do país, podendo considerar-se que, durante vários anos, marcou fortemente a evolução da política interna portuguesa, muito embora o saldo final de toda essa turbulência tenha ficado muito longe dos objetivos revolucionários originais.
 
Com a Reforma Agrária a marcar então, quase quotidianamente, a agenda política nacional, passava-se, na televisão portuguesa, um fenómeno bizarro, quase marginal mas que, visto à distância, não deixa de ter alguma curiosidade. Sobrevindo do tempo anterior ao 25 de abril, mantinha-se na grelha de emissão da RTP o programa "TV Rural", dirigido pelo engº Sousa Veloso, uma figura sorridente e cordial, que anos de presença regular no écran haviam transformado num visitante virtual da casa de todos os portugueses. E de que falavam os programas de Veloso? Da "outra" vida rural, da "lavoura", de experiências agrícolas e de práticas de produção tidas por exemplares. Enquanto no Alentejo arrancavam as campanhas mobilizadoras para a viabilização produtiva das UCP's ou das novas cooperativas, Sousa Veloso mostrava-nos, impávido aos ventos da Revolução, a glória da pêra-rocha do oeste, a safra desse ano dos melões de Almeirim, os resultados do combate ao míldio nas uvas do Dão ou as novas técnicas usadas no azeite da terra quente transmontana. Nem uma palavra sobre o Alentejo!
 
Sousa Veloso morreu hoje, aos 88 anos. Era um homem simpático, sorridente, que se despedia sempre dos espetadores "com amizade". Hoje, despedimo-nos nós dele.

Alemanha


Ontem, durante a manhã, intervim num debate na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, organizado pelo respetivo Instituto Europeu. Um parêntesis para fazer notar o notável trabalho que, desde há vários anos, Eduardo Paz Ferreira tem vindo a desenvolver com sua equipa do Instituto. Muito lhe devemos por ter aí criado um espaço ímpar de reflexão sobre a Europa e os nossos desafios - e desencantos - no seu seio.

O tema ontem foi a Alemanha e a Europa que a Alemanha pretende. Tentei "perceber" Berlim, interroguei-me sobre se há uma bem definida estratégia alemã para a Europa ou se a Alemanha vive ainda numa relativa "navegação à vista", fruto da falta de estabilidade do próprio processo europeu, sob pressão da crise. Fui pela última hipótese. Referi que o conceito das "duas Alemanhas" já não é apenas o das que antecederam a queda do muro: para o projeto europeu, houve uma Alemanha ao tempo em que havia muro (solidária, pró-federal) e há hoje uma outra Alemanha no cenário pós-unificação (seria a unificação alemã o verdadeiro objetivo por detrás do "europeísmo" alemão?), em especial pós-alargamento, marcada por algum dirigismo paternal/autoritário e pela indisponibilidade de "pagar" a Europa. Discorri sobre o alargamento e sua génese, bem como o seu efeito sobre o equilíbrio interno europeu. Discuti a atual unipolaridade do poder europeu - o diretório hoje é apenas a Alemanha - e o sentimento de desconfiança/hostilidade que Berlim suscita (embora cada europeu tenha "a sua Alemanha", em função da experiência histórica diferenciada de cada um), por virtude da sua cada vez mais obstinada "rightousness" face aos "pecadores" da periferia. Perguntei-me até onde a Alemanha poderá querer forçar a introdução de um modelo institucional europeu de direção centralizada e em que medida isso não poderia criar a ideia de que as ordens constitucionais ficarão hierarquizadas (o que diz o tribunal de Karlsruhe é já hoje mais respeitado do que o que estatui o nosso tribunal constitucional - até pelo nosso governo). E, naturalmente, questionei se esse caminho não levará a uma perda de legitimidade dos poderes nacionais cuja representação no poder central europeu se sente progressivamente debilitada. Fui de opinião de que a "grande coligação" no poder em Berlim acaba por ter um efeito nefasto na diversidade do debate político interno na Alemanha, sendo a classe política alemã claramente culpada de uma falta de pedagogia sobre a opinião pública doméstica, que pudesse sublinhar as vantagens (únicas na Europa) que o país retira do projeto europeu. Falei dos efeitos da "décrochage" de poder formal com a França e dos malefícios, cada vez mais evidentes, do Tratado de Lisboa. Idem sobre a escassez de visão estratégica da Alemanha na questão ucraniana, onde, a meu ver, se deixou levar pela agenda primária anti-russa da Europa na vizinhança direta de Moscovo, promotora da posição irresponsável que a União Europeia tomou face ao poder em Kiev, que acabou por facilitar a deriva autoritária de Putin. Comecei e terminei com uma mensagem de fé nas virtualidades da democracia alemã, de que estou plenamente convicto.

O video da minha intervenção pode ser visto aqui.

A imprensa e o processo Sócrates

Vai ser muito interessante - melhor, já está a ser - seguir o comportamento dos diversos meios de comunicação social no acompanhamento do processo de José Sócrates. 

Alguns jornais foram beneficiados por informação privilegiada no dia da detenção do antigo primeiro-ministro, oriunda da investigação, com o objetivo de credibilizar as teses da acusação. A similitude daquilo que foi publicado pelo "Sol" e pelo "Correio da Manhã" revela bem essa origem comum. A SIC e, ao que me lembro, a TVI tiveram apenas direito ao "leak" da chegada de Sócrates ao aeroporto, aliás mal aproveitado. De certo modo, houve alguma naturalidade na escolha dos jornais privilegiados: o "Correio da Manhã" é o órgão que maior atenção dedica às questões criminais e a jornalista do "Sol" tem um histórico assinalável nesse domínio.

Fica claro que, tomada que foi a decisão de deter o antigo primeiro-ministro e atenta a expectável repercussão política e social que esse ato sempre provocaria, os acusadores sentiram necessidade de publicitar, simultaneamente, os fundamentos em que assenta o processo, como forma de rodear a decisão de alguma legitimidade. Assim, e contrariamente a outros casos em que o jornalismo de investigação teve um papel fundamental, desta vez os jornais e as televisões começaram por operar exclusivamente com base naquilo que os "deep throat" da polícia ou da magistratura lhes transmitiram. Não sendo profissionalmente "glorioso", sempre é melhor que nada. E, de passagem, também não vale a pena sermos ingénuos ao ponto de pensar que o "inquérito" que a Procuradoria-Geral da República vai lançar para tentar "descobrir" os responsáveis pelas "quebras do segredo de justiça" terá alguma consequência. É como se tentássemos olhar para as nossas próprias costas...

O tema promete não esmorecer nos próximos tempos. Aliás, o surgimento da carta de José Sócrates, que parece denunciar a sua intenção de intervir ativamente por via mediática, numa forma pouco vulgar de "defesa" pública, acaba por tornar-se muito interessante para a imprensa, que agora passará a aguardar os "próximos capítulos". A comunicação social vai ser sujeita a um constante teste sobre o rigor da suas análises, sobre a sua maior ou menor disposição para resistir aos "fait-divers", sobre a sua capacidade de identificar factos concretos e de saber separá-los de meras suposições. Esperam-se dias movimentados na frente jornalística, agora que um novo "nicho" temático se abriu.

quarta-feira, novembro 26, 2014

"Crónica das minhas teclas"


Logo à tarde, pelas 18.30 horas, no Palácio da Independência, no largo  de S. Domingos, em Lisboa, vou apresentar o livro de Henrique Antunes Ferreira, "Crónica das minhas teclas", que também prefaciei.

Carnaval

 
Aquele jovem empresário, homem de "boas" famílias, era um deslumbrado: muito dado "ao social", adorava as colunas da então "Olá" e o ensejo a estar presente em ocasiões oficiais. Um dia, conseguiu um convite para ir "ao café", num jantar de Estado na Ajuda, uma espécie de "terminação" para aqueles a quem não saía a "sorte grande" de obterem um lugar à mesa da refeição.

Deu-se então conta de que não tinha nenhuma condecoração com que pudesse alindar a vistosa casaca que alugou para a ocasião. Achou que isso lhe dava um ar de "pelintra". E teve uma ideia: havia lá por casa uma condecoração elevada, que, em tempos, um presidente da República dera ao seu pai. Decidiu-se a usá-la. Ficava-lhe "a matar"!

Já nos corredores do palácio, teve o azar de dar de caras com o chefe do Protocolo de Estado, homem sabedor das grandes honrarias cerimoniais, pessoa conhecida da sua família. Num segundo, lembrou-se logo de que o diplomata, seguramente, não iria acreditar que ele pudesse ser o possuidor daquela comenda. Num acesso de prudência, o nosso homem entendeu então que seria melhor "abrir o jogo" e confessar que trouxera uma condecoração "da família", mas que não lhe pertencia.

O chefe do Protocolo, olhou-o, severo, e retoquiu simplesmente: "Não faz mal! Assim como assim, já falta pouco tempo para o Carnaval..."

terça-feira, novembro 25, 2014

O Tribunal


Eu era miúdo, mas lembro-me como se fosse hoje. Todas as manhãs, numa camioneta de caixa aberta com longos bancos, chegavam os operários que tinham a seu cargo as obras do novo Tribunal de Vila Real. À época, era uma forma vulgar de transporte de trabalhadores. Porém, havia algo de diferente: quatro homens fardados ocupavam os cantos da caixa da viatura. Os operários eram os presos da cadeia da cidade.

A direção desses presos, a organização e planificação do seu trabalho, passou por alguns meses a ser assegurada por um homem que também estava naquela prisão, acusado, creio, que de uma qualquer fraude. A sua preparação académica dava-lhe um estatuto diferente, pelo que me recordo que se movimentava na obra com muito maior à vontade que os restantes presos. Era uma pessoa de Viana do Castelo, que aí tinha sido antigo colega de escola primária do meu pai. Durante os meses em que permaneceu em Vila Real, o meu pai fez questão de o visitar, com alguma regularidade. Ouvi-o então dizer: "Antes de tudo é um amigo, para além dos erros que possa ter cometido na vida". Neste dia em que, se fosse vivo, o meu pai completaria 104 anos, recordei-me desta sua lição.

"As curvas do mundo"

No âmbito da série "Falemos dos outros", organizada por Fátima Pinheiro, tem lugar nesta terça-feira, pelas 21.30 horas, na Casa-Museu Medeiros e Almeida, na rua Barata Salgueiro, próximo da Cinemateca Nacional e da Sociedade Nacional de Belas Artes, um debate entre mim e Jaime Nogueira Pinto sobre o críptico tema "As curvas do mundo".

A avaliar pelo que a Fátima adianta no seu blogue, a conversa promete. Senão, leiam:

"Vou perguntar-lhes pelas curvas de Portugal e do mundo. Estas semanas foram um shot delas. E para shot, shot e meio. Eles são pessoas para isso e muito mais. Acham normal que, em véspera de eleições, cada dia da semana seja um dia em que se descobre mais "uma falha" desta governança? Que os bandidos estão todos deste lado, e os xerifes, de botim a luzir (nada melhor que um par de sapatos bem tratados, nisso concordo), sejam todos uns inocentes e heróis? E que o justos paguem tudo? Ou que um roseiral seja um paraíso de odores "incênsicos", ao passo que um laranjal, apenas um titanic de interesses manhosos e cretinos finalmente a afundar-se de vez?"

Reputação

Portugal é um país frágil. Tem uma história antiga, existe no imaginário internacional como um país simpático, de gente cordial e modesta, que o mundo se habituou a encontrar espalhada por esse mesmo mundo, como se isso fosse a sua sina. A glória do seu império passado sublinha hoje ainda mais a modéstia desta nação que, há séculos, segue como a mais pobre de toda a Europa ocidental. Às vezes, nuns assomos, consegue concitar alguma atenção: é uma revolução quase sem sangue, é uma exposição universal conseguida, é um escritor que ganha um Nobel e outro que desassossega as consciências, é a boa coreografia de uma presidência europeia ou de uma performance internacional, é o ser a pátria de um desportista ou de um treinador de nomeada, é o seu sol agradável, é a canção nacional que rima connosco. Esses e outros arroubos, prestigiantes, rapidamente são abafados pelo regresso ao retrato que, aparentemente, nos define: um país que declinou sem remissão desde a perda do Brasil, incapaz de sustentar o sucesso, com defeitos comportamentais endémicos.

A Europa trouxe um dia um sopro de esperança a este país frágil, recém-orfão das suas colónias. Pareceu que tudo ia mudar, da paisagem às mentalidades. Na frase que melhor nos define, os portugueses pensaram, em uníssono: "agora é que é!". Não foi. Nessa maratona de obstáculos, ficámos para trás e, à primeira borrasca, revelou-se a nossa impreparação para as exigências da prova. 
 
Teve de vir a "troika" dos credores, com a qual um governo de saída mal negociou. Com ela, vieram as exigências do ajustamento, perante as quais um outro governo, mais subserviente, se ajoelhou. O país humilhou-se, a dívida aumentou, o governo fez peito para a foto sincrónica do défice, ajudado pela emigração e pelo desenrascanço das empresas. Os mercados, que não são parvos, rapidamente perceberam que se tratava apenas de uma cosmética leve, que as estruturas e as mentalidades não tinham mudado, que nada de fundo estava resolvido, que Portugal era basicamente o mesmo, de Soares a Cavaco, de Sócrates a Passos. Nem é necessário recorrer ao dito escatológico de Brito Camacho.
 
Graças a Draghi, o país estava assim em precário sossego financeiro. Um dia, numa hecatombe anunciada, cai o grupo financeiro mais estruturante do sistema, num novelo de fraudes. De seguida, a gloriosa empresa nacional de telecomunicações, metida em cavalarias baixas com emergentes em crise, cai em maus lençóis. Surge uma rede criminosa de corrupção, em que parece estarem envolvidas altas figuras da administração. Na sequência, um ministro cai. Nem uma semana era passada e é detido um antigo primeiro-ministro, acusado de várias malfeitorias. 
 
Se, apesar do efeito reputacional destes eventos, o país não se afundar perante o mundo, só uma conclusão é legítimo tirar: já não somos nós que nos sustentamos perante o mundo, é apenas a nossa irrelevância no jogo global que nem sequer nos permite sermos sujeitos da nossa própria crise. Porventura, é melhor assim.
 
Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, novembro 24, 2014

Serviço público

Foto de António Manuel Pinto da Silva
De um aeroporto europeu, aqui fica um aviso à navegação: não confiem totalmente nos "cartões" de embarque eletrónicos nos vossos iPhones. Não é que eles não funcionem, o problema é que, se acaso a bateria do aparelho se esgota, podemos arriscar-nos a ficar completamente ilegais no meio de uma aerogare, sem conseguir provar como ali chegámos e, claro, sem possibilidade de embarcar. Já se tinham lembrado disso? Sei do que falo...

"Uma Alemanha Europeia ou uma Europa Alemã"

 
"Nos anos cinquenta do século passado, o grande escritor alemão Thomas Mann falava do dilema que se colocaria à Alemanha: ser uma Alemanha Europeia ou criar uma Europa Alemã. Sessenta anos depois, a Alemanha impôs à União Europeia uma política de austeridade com resultados económicos profundamente negativos e que ameaçam prolongar-se por décadas. Ao mesmo tempo, a chanceler e o governo alemão não hesitam em criticar opções de política interna dos Estados, como ficou patente com o comentário sobre o número de licenciados portugueses. É tempo de fazer um balanço: temos uma Alemanha Europeia ou uma Europa Alemã? "
 
Este é o texto introdutório de um debate que, no dia 26 de novembro, a partir das 9.30 horas, no auditório da Faculdade de Direito de Lisboa, irá ter lugar.
 
Integro o primeiro painel, com o José Loureiro dos Santos, Reinhard Naumann e António Menezes Cordeiro. No segundo painel, intervirão Francisco Louçã, Ricardo Cabral, Pedro Brás Teixeira e Eduardo Paz Ferreira. 

A Voz de Trás-os-Montes

 
É uma excelente notícia o regresso de "A Voz de Trás-os-Montes", o semanário vilarealense que esteve sem se publicar por cerca de três meses.
 
A suspensão da publicação da VTM tinha levado o "Notícias de Vila Real" a passar de quinzenário a semanário. A concorrência entre os dois jornais pode assim, se bem gerida, transformar-se numa importante mais-valia para a cidade.
 
No próximo fim de semana, quando por lá for para as comemorações do "Primeiro de dezembro", logo verei como "param as hostes" jornalísticas na capital de Trás-os-Montes.

domingo, novembro 23, 2014

O pingo de solda

Na minha infância, o meu pai contava uma história que, na minha família, ficou conhecida como "o pingo de solda".

Uma senhora queixara-se à polícia de que dois trabalhadores, que tinham ido fazer um trabalho elétrico a sua casa, se tinham envolvido numa acesa disputa, com agressões e insultos mútuos, diante dos seus filhos muito jovens. A cena fora tão violenta e a linguagem tão desbragada e vernácula que a senhora entendeu por bem chamar a polícia. (Estamos a falar de outros tempos, em que estas coisas escandalizavam). E os operários foram levados para a esquadra.

Lá chegados, os visados estiveram muito longe de confirmar a versão da senhora. E um deles explicou, cândido: "As coisas não se passaram assim. O que ocorreu é que o meu colega, o Alberto, que estava no alto de uma escada que eu segurava, soldava uns fios. Inadvertidamente, sem a menor intenção, deixou escapar da máquina com que trabalhava um pingo de solda, incandescente, que me caiu no pescoço. Confesso que isso me incomodou um pouco! Daí que eu tivesse exclamado: "Ó Alberto! Vê lá se, para a outra vez, tens mais cuidado! Nada mais!" ".

O grau de plausibilidade da cena era mais do que evidente.

Lembrei-me disto ontem, ao ler no "Expresso" a justificação dada por Ricardo Salgado para o facto de ter recebido do empresário José Guilherme uma "oferta" de 14 milhões de euros (isso mesmo!). 

A história é interessante. Salgado revela ter dado a Guilherme "alguns conselhos pessoais sobre a evolução da economia em geral e dos mercados para onde pretendia alargar a sua atividade". Perante uma intenção de Guilherme de investir num determinado país, Salgado tê-lo-á dissuadido e aconselhado outro mercado, onde o empresário acabaria por ter "enorme sucesso". Guilherme, naquilo que Salgado descreve como uma "demonstração aliás muito caraterística do seu caráter grato e generoso", quis "manifestar o seu reconhecimento pela ajuda" prestada pelo banqueiro. E resolveu oferece-lhe a quantia de 14 milhões de euros, mas só após "reiterada insistência", a que Salgado se viu constrangido a vergar-se. Depois, como naturalmente pode acontecer nestas coisas de dinheiro, Salgado esqueceu-se da "prenda" numa conta no Panamá, não a declarando no IRS, mas isso é apenas um pormenor despiciendo.

Esta cena tem uma plausibilidade idêntica à da história do pingo de solda. A similitude é que quer os operários quer o banqueiro tiveram de prestar declarações à polícia. A diferença é que, se bem me lembro, na história do pingo de solda os operários acabavam presos.

O Camilo

Há quase quatro décadas, o Alfredo Magalhães Coelho e eu resolvemos elaborar, para distribuição entre os amigos, uns guias de restaurantes, de um tamanho de bolso, com indicações sobre preços, pratos mais típicos mas, igualmente, com dias de encerramento, telefones, facilidades de parqueamento e até indicações sobre os melhores acessos. Saíram vários números (lembro-me, pelo menos, de termos publicado os do Minho, Trás-os-Montes, Alentejo e Algarve). Os exemplares muito limitados, algumas escassas dezenas, e cada zona tinha a sua cor de papel. Os guias, escritos em 1987/88, no meu primeiro computador, foram um imenso sucesso e muita gente continuou a fotocopiá-los por alguns anos (o que é perigoso, porque este tipo de indicações é rapidamente "perecível" com o tempo).

Ajudava-nos nesta tarefa o Camilo, um funcionário simpatiquísimo da primeira estrutura do MNE para os assuntos europeus, um ás da reprografia, que foi a alma logística da operação. Ele era o nosso "editor"! Voltámos a cruzar-nos várias vezes durante a minha relativamente longa passagem pelo palácio da Cova da Moura, nos anos 90. Entretanto, havia-o perdido de vista, há muito. Acabam de me informar que morreu hoje. Deixo um abraço sentido à Família desse amigo, que comigo também fez parte da equipa pioneira, criada na avenida Visconde Valmor, que "arrancou" com a presença de Portugal nas instituições comunitárias, no dia 1 de janeiro de 1986.

O PS e José Sócrates

Contrariamente à esmagadora maioria dos observadores, não tenho a perspetiva de que a detenção e o processo contra José Sócrates acabe necessariamente por vir prejudicar, a médio prazo, as possibilidades eleitorais do Partido Socialista em 2015. Explico porquê.

O político José Sócrates, por muito que isso custe aos seus amigos e apoiantes, terá terminado ontem. Independentemente da evolução do seu processo judicial, e a menos que uma reviravolta inesperada venha a acontecer, as suas hipóteses de regressar à cena política terão ficado definitivamente encerradas. Ninguém conseguiria recuperar politicamente depois do que ontem sucedeu.

Mas é importante recordar que, há algumas semanas, a importância política do antigo primeiro-ministro era ainda considerável. Se acaso o "terramoto" de ontem não tivesse ocorrido, tudo indicava que a imagem de José Sócrates iria permanecer e talvez acentuar a sua presença no centro do debate político que aí vem. Ora isso, em princípio, já não virá a acontecer.

Com efeito, parece-me que a atual maioria vai forçosamente ter de se refrear, a partir de agora, nomeadamente em termos parlamentares, na frequência das referências políticas a José Sócrates, que seriam vistas como uma agressão de desforço face a alguém que está hoje fragilizado por um processo judicial. É que ser-lhe-ia muito difícil jogar na dualidade discursiva entre um Sócrates político e um Sócrates réu, sem que isso afetasse a necessária contenção que lhe compete, em especial como poder, face ao processo em curso na justiça.

Por outro lado, em face da nova situação que envolve José Sócrates e a expectável retração nas menções a seu respeito por parte da atual maioria, mobilizadoras do ambiente anti-Sócrates que pré-existia à sua tragédia pessoal, o novo PS será menos apelado a vir defender publicamente a sua herança política, como o vinha mais recentemente a fazer, numa atitude de grande coerência e ética política, mas que, a prazo, poderia acarretar-lhe algum custo eleitoral. Isto pode parecer um tanto cruel, mas é uma realidade insofismável.

Haveria, porém, um único cenário em que tudo o que deixei dito deixaria de ter qualquer sentido: se acaso se viesse entretanto a densificar a plausibilidade das acusações feitas a José Sócrates terem algo a ver com a sua conduta enquanto primeiro-ministro. Nesse hipotético caso, que francamente não espero e naturalmente não desejo, o PS não deixaria de se ver necessariamente arrastado para uma "partilha" de responsabilidades, com inevitáveis consequências políticas.

sábado, novembro 22, 2014

A fuga

Alguns mostram-se escandalizados pelo modo algo teatral como José Sócrates foi detido, com oportuno aviso prévio à comunicação social.

Não concordo com esta interpretação e até percebo a lógica policial: a sua detenção no aeroporto deve-se ao facto de haver um evidente risco de fuga para o estrangeiro, a partir do momento da sua entrada no país...

As contradições do desejo

Desejo sinceramente que José Sócrates possa demonstrar que está inocente e que as acusações que sobre ele impendem não tenham solidez.

Desejo sinceramente que a Justiça portuguesa, para que os cidadãos nela possam confiar, tenha detido José Sócrates com base num processo consistente e incontroverso.

A tragédia dos jornais

É em dias como este, em que a notícia que faz a manchete chega num momento que já não permite mudar sequer a primeira página (com uma exceção jubilosa), que se espelha a tragédia da imprensa escrita. Os jornais de hoje (com a capa da tal exceção jubilosa) já são jornais de ontem. Mesmo o "Expresso", que, nas suas quatro décadas de existência, tantas vezes viveu das "caixas" como a que agora lhe teria dado a glória, surgirá, no seu saco, a cheirar à vésperas.
 
Hoje vai ser o dia de glória das televisões, do fim das folgas dos comentadores, da análise dos especialistas, das palavras medidas ao milímetro dos políticos mais responsáveis, das proclamações de fé no trabalho da justiça ("à política o que é da política, à justiça o que é da justiça", dirá algum mais inspirado), do cinismo de uns, da tática de outros, da alegria de muitos, da tristeza de outros tantos. Assim vamos.  

sexta-feira, novembro 21, 2014

Do tempo (1)

 
Quem é que acredita que se pode estar à mesa de almoço quase três horas e meia, numa conversa com um amigo com quem já não falava "ao vivo" há vários anos, sem qualquer agenda (há "almoços grátis"!), apenas trocando opiniões (em muitos casos, bem diferentes), recordando histórias e debatendo ideias, sem que o telefone, nem por uma só vez, nos interrompesse, sem nos tivéssemos lembrado de ver mensagens, e-mails, facebook ou twitter? Foi o que me aconteceu hoje, num restaurante, num dia em que o sol de Lisboa deu um ar da sua graça, em que os filetes de peixe galo e o cabrito estiveram à altura, em que procurei reconciliar-me com o Meandro (que, pode ser que esteja enganado!, já não é bem o que era, este "next best" do agora estratosférico "Vale Meão"). Sabe-me bem gozar este tempo de inverno ma non troppo, espairecer a angústia política, tentar acreditar que o dia de manhã vai valer a pena.  

O sorriso

 
Não conheço a senhora ministra da Administração Interna, nunca lhe ouvi a voz. Para além do currículo, que parece impecável, e a admiração pelo facto de ser uma mulher no mundo duro das polícias, o que é que terá levado ao seu tão "soft landing" no mundo político, com a esquerda a baixar a guarda e uma nuvem de benevolência geral a cair sobre ela?
 
Acho que foi o sorriso. Não é um sorriso qualquer. É um sorriso leve, quase sofrido, sereno e digno. Um sorriso bonito de uma mulher de 60 anos. Terá sido isso? 

Duquesa de Alba

Se se quiser homenagear a Duquesa de Alba, que agora morreu - embora eu desconheça qualquer razão particular que justifique essa homenagem -, então façamo-lo publicando uma foto antiga dela que, por um instante, nos faça esquecer a figura em que as sucessivas operações estéticas a converteram e que - confessem as pessoas ou não - induziam em todos, desde há vários anos, um sorriso sarcástico, sempre que fazia as suas patéticas aparições em público. Sejamos sérios!

quinta-feira, novembro 20, 2014

Subsídios a ex-políticos

Não fazendo naturalmente parte dos beneficiados, nem me lembrando de ninguém amigo que esteja nessas condições, devo dizer - e sei que isto não é mesmo nada popular - que estou perfeitamente de acordo com a medida hoje aprovada na Assembleia da República, relativa à reposição dos subsídios a ex-políticos, a serem concedidos sob determinadas condições.
 
E fico chocado que, tanto no PS como no PSD, haja quem ache que "não é oportuno" repor esta medida. É com reações destas, medrosas e demagógicas, é pagando mal aos deputados e aos ministros que, progressivamente, vamos aviltando a condição dos eleitos e dos servidores da causa pública, criando pasto para o ambiente da sua diabolização, gerando progressivamente um terreno cívico em que os melhores se afastam da política, fartos de serem agredidos no dia a dia, sujeitos a um escrutínio que às vezes raia o miserabilismo, que alguma comunicação social faz gala em agravar.

Não alinho minimamente na vaga de opinião segundo a qual a palavra "políticos" deve ter um sentido negativo e que os políticos portugueses são piores que os outros. Não acho que "são todos iguais", que são "um bando de gatunos a viver à nossa custa", uma "cambada de inúteis".
 
Este discurso - fácil, demagógico e populista - é que põe em causa a democracia, não é a compensação dada a cidadãos que passaram anos da sua vida ao serviço da causa pública, muitos deles perdendo anos nas suas profissões, em muitos casos podendo nelas ter uma vida bem mais confortável.

Destinos

Há uns anos, quando era embaixador em França, o meu amigo Jean Barbosa, presidente da Associação Católica dos Portugueses de Roubaix, convidou-me para uma festa de aniversário daquela simpática instituição. 

Ao atravessar um bairro que levava às instalações da associação, notei que o meu motorista estava um pouco nervoso. Olhando o ambiente circundante, logo percebi: estávamos numa zona socialmente degradada, rodeados de "gardiens des murs", de gente desocupada encostada às paredes, com grupos a bloquear parte das ruas, num ambiente que não induzia a menor segurança, naquele tipo de áreas suburbanas onde, de um momento para o outro, se sente que pode acontecer qualquer coisa de desagradável.  

Roubaix é uma das zonas de França com maior desemprego, fruto do encerramento de várias indústrias. As comunidades de origem estrangeira que têm culturas contrastantes com a sociedade francesa tradicional, o que não é o caso da portuguesa, estão aí muito presentes. Não por acaso, o Front National tem por essa zona uma elevada expressão. Alguém então referiu que a comunidade muçulmana estava por ali em crescendo e que, um tanto surpreendentemente, alguns luso-descendentes não deixavam de ser sensíveis ao seu proselitismo. Lembrei-me disso ontem, ao ser divulgado que um dos fanáticos islamistas que aparece no vídeo do Estado Islâmico a proceder a uma decapitação é precisamente um luso-descendente de Roubaix.

"... e viva Portugal! "

Foi assim que Carlos do Carmo terminou ontem o seu agradecimento público, ao receber o "Grammy" latino, no Estados Unidos. Por cá, o galardão foi recebido por alguns com sobranceiro desdém (não é nessa pessoa que estou a pensar, palavra!), numa reação por onde perpassou um sectarismo político pouco disfarçado.

Carlos do Carmo é um homem de esquerda. Nunca o escondeu. Não sei, porém, se os mais trauliteiros e "talassas" amantes do fado alguma vez já lhe agradeceram aquilo que ele, no auge da Revolução de abril, fez pela nossa canção. 

O ambiente radical da época levou alguma gente a identificar o fado com a ditadura e a ver, nas letras melancólicas e no "choradinho" da lua a rimar com a rua, um Portugal que era necessário arquivar definitivamente no passado. Na altura, o "nacional-cançonetismo" foi na enxurrada (a democracia trouxe, entretanto, o "pimba" e não ficámos a ganhar) e tudo o que não fosse baladismo contestatário e com "mensagem" estava fora do tom. O fado passou então as passas do Algarve, ridicularizado por uns, acusado por outros. Era qualificado como a canção do SNI, um saudosismo patético acompanhado à guitarra, um bolor musical do Estado Novo. Eu, que sempre gostei daqueles fados de fazer chorar as pedras da calçada, com letras simplórias, machistas e bem popularuchas, vi-me à época "gozado" por amigos que me olhavam com piedade, sem perceberem como é que eu compatibilizava o meu esquerdismo como o gosto pelo "Não venhas tarde" do Carlos Ramos. Como diz um amigo meu, bem "reaça", nessa altura só se salvava o "Nem às paredes confesso", porque parecia evocar os interrogatórios da PIDE, então muito no "l'air du temps"...

E foi então gente como Carlos do Carmo, foram pessoas como José Carlos Ary dos Santos, ambos tributários de uma forte imagem de esquerda, quem acabou por dar "legitimidade" política ao fado, que ajudou a tirá-lo do gueto em que o extremismo revolucionário o tinha procurado acantonar. Só um cantor e um poeta de esquerda o poderiam ter feito. É claro que o fado, cedo ou tarde, viria aí de novo, mas Carlos do Carmo é "culpado" por lhe ter dado a mão quando ele passou pelas ruas da amargura...

Convém lembrar isto neste momento, importa saudar Carlos do Carmo, o seu fantástico percurso, a grande dignidade da sua carreira. Como ele disse sobre o país que tão bem representa... e viva Carlos do Carmo!

Terras baixas