quinta-feira, março 12, 2020

Sem pena



1980. Fui conduzido através de um longo corredor, de paredes quase imaculadas. Acompanhava-me um guarda, altíssimo, que não disse uma palavra.

À época, na interinidade entre dois embaixadores, tinha a meu cargo a embaixada. Mas, essencialmente, a minha presença por ali era na qualidade de chefe da secção consular da embaixada de Portugal em Oslo. Tratava-se de uma prisão, nos arredores da cidade, onde ia visitar um detido português, que aguardava julgamento. 

Nas semanas anteriores, o caso ganhara destaque em todos os jornais, com evidência particular no popular tablóide “Dagbladet”, que dera ao assunto um imensa visibilidade, na primeira página. O nome de Portugal vinha em todos os títulos. Incomodamente.

Se as razões para alguém estar numa prisão comum são, quase por definição, sempre desagradáveis, as que justificavam o encarceramento daquele homem eram particularmente graves: uma tentativa de violação de uma menina de oito anos. Tratava-se de um tripulante de um barco de passageiros que, creio, fazia a ligação entre Oslo e Copenhaga. 

O presumível violador fora apanhado em flagrante pelos pais da criança e, por muito pouco, havia-se livrado de uma valente sova dos colegas indignados. Mais tarde, viria a saber-se que já tivera atitudes inconvenientes para com outras crianças, sem que, por razões pouco claras, tivesse sofrido consequências criminais ou sequer disciplinares.

Entrei na sala, onde o homem estava sentado a uma mesa. Não se levantou, estendeu-me a mão e parecia invadido pela maior serenidade do mundo. Parecia estar a fazer-me o favor de me “receber”. Devia rondar os 40 anos. Recordo-me de que vestia uma camisa branca, tinha um olhar neutro e frio, um cabelo preto puxado para trás. Não havia pedido assistência consular e fora eu quem, alertado pelas notícias, pedira para ir vê-lo.

Era, aliás, a primeira vez que eu visitava, como responsável consular, um cidadão português detido. Uma certa arrogância que transparecia da sua cara, somada ao caráter repugnante daquilo de que era acusado, transformavam aquela minha diligência num momento bastante penoso. 

Perguntei-lhe se estava bem, se já tinha assistência de um advogado e, ns sequência dessa confirmação, mais para alimentar conversa do que por outra razão, se já tinha alguma ideia sobre a pena que poderia vir a ter. Não respondeu e mudou a conversa, com uma calma que começava a irritar-me. Nem por um instante tentou sugerir que as imputações que sobre ele impendiam eram falsas, ou mesmo exageradas. “O advogado disse-me que há a possibilidade de, dentro de semanas, poder vir a aguardar julgamento em liberdade, porque se metem as férias judiciais e não podem manter-me muito tempo em prisão preventiva”, disse-me, com um ligeiro esgar sorridente. 

Eu não tinha quaisquer informações sobre o processo. A Noruega dispunha um sistema judicial a toda a prova, ele já tinha uma defesa em curso, pelo que não se colocava o problema do Estado português providenciar alguma assistência judicial supletiva. Inquiri, assim, se necessitava de alguma coisa da embaixada. Respondeu-me: “O problema é que não tenho o meu passaporte”. Fiquei surpreendido: “Mas para que é que agora quer o passaporte?”. Num tom impávido: “Se me deixam em liberdade provisória, “piro-me” logo. Atravessar a fronteira para a Suécia é “canja” e o passaporte dava-me jeito depois, para depois chegar a Portugal“.

Pela minha cara, deve ter percebido de que não podia contar com qualquer “cumplicidade”. E, de repente, temeu: “Não vai contar isto aos noruegueses, pois não?”. E ainda tentou: “A embaixada passa-me um novo passaporte?”. Nesse tempo, os passaportes eram feitos à mão, com alguma discricionariedade e facilidade, mas com regras. Para emitir uma segunda via, era necessário que tivesse havido um extravio, comunicado à polícia.

A cena estava a ser demasiado pesada para mim. Ali estava alguém que claramente sabia a gravidade do que tinha feito, que tentava colar-me à sua esperteza. Levantei-me e disse: “Claro que não vou dizer nada desta conversa aos noruegueses. Mas, se quer a minha opinião, acho que eles não o vão soltar. E mesmo que isso acontecesse, eu não lhe ia emitir um segundo passaporte”.

Foi então que, pela primeira vez, mostrou uma expressão facial diferente. Levantou-se também. Era mais baixo do que parecia, quando sentado. Fixou-me com um olhar duro: “Eu tenho os meus direitos!”. 

Por um instante, “passei-me”, reconheço: “A miúda também tinha! O tribunal tratará dos seus direitos. Passe bem!”. Voltei-lhe as costas, bati na porta, o guarda grandalhão abriu e fui-me embora. Não me senti nada bem com a cena. A emoção toldara-me aquela que tinha sido uma das minhas primeiras ações de natureza consular.

Semanas depois, telefonaram-me do tribunal. Tinham recebido uma segunda queixa sobre o homem, um caso similar. Pela conversa, fiquei com a sensação de que houvera ali um certo artificialismo para que um novo tempo de prisão preventiva se iniciasse, evitando a saída do homem da cadeia. 

Poucos meses mais tarde, o tribunal decidiu, num julgamento em que esteve presente um representante da embaixada: uma condenação pesada. Devo confessar que não tive a menor pena “patriótica”.

quarta-feira, março 11, 2020

Cada um no seu papel

Lembrei-me dele ontem, ao ver anunciado que o açambarcamento nas lojas, por uma misteriosa razão, começa sempre pelo papel higiénico. Esse meu amigo, que acumulava essa já de si invejável qualidade com o facto de ser também um sábio, afirmava que “aquilo que verdadeiramente distingue um país é a qualidade do seu papel higiénico. Nunca encontrei nenhum país subdesenvolvido onde houvesse um papel higiénico decente”, sentenciava ele, prenhe de experiência. É claro que, na altura em que ele afirmava essas coisas imensamente sábias, ainda havia países “subdesenvolvidos”; agora só há “países em vias de desenvolvimento”, isto é, a doutrina aponta para que todos os países caminhem no sentido de virem um dia a ter um papel higiénico decente. (Que raio de conversa! E tem este tipo por aqui um blogue com pretensões!)

Adiamento


Os vírus também atacam os lançamento de livros... Lá teremos de encontrar uma nova data para a apresentação do “À Luz do Índico”, de Amélia Vera Jardim, que estava previsto para dia 16 de março. 

Depois avisarei da nova data.

Saudades de Draghi


Aquando da crise financeira, há pouco mais de uma década, o mundo desenvolvido passou a ter a súbita consciência de que todo o poderio que tinha criado uma imensa riqueza e bem-estar, que parecia sustentável com alguma segurança, era, afinal, uma realidade perecível. Em semanas, esfumavam-se fortunas, empresas desapareciam, a falta de postos de trabalho gerava miséria em vários dos seus setores. A engenharia financeira que tinha criado a “bolha” de progresso veio a mostrar-se de uma espantosa fragilidade. As consequências políticas foram óbvias: Trump, AfD na Alemanha, Marine Le Pen, o Brexit, Salvini e o estilhaçar ético-político da União Europeia.

Foi muito curioso constatar que o “clube dos ricos”, orgulhosamente reunido no G7, foi de imediato obrigado a estender a mão ao mundo emergente, situado no patamar imediatamente inferior de riqueza. Nasceu aí o G20, um conjunto muito heterogéneo que acolhia as economias de segunda linha, onde, na realidade, estavam situados os mercados em que assentava o crescimento dos primeiros. Todos nos recordamos daquelas imensas fotos de família, onde Merkel e os seus pares do “primeiro mundo” sorriam para chineses, indianos e brasileiros. Onde é que isso levou? A muito pouco, no final de contas.

Para além da pressão sobre os paraísos fiscais, onde o mundo desenvolvido tenta fazer esquecer que também alimenta “dumpings” que nunca dispensa - do Luxemburgo ao Delaware -, de um relativo esforço de transparência que, afinal, está nos antípodas daquilo que é a matriz do capitalismo especulativo, a “regeneração” pós-crise acabou por ter resultados globais muito parcos.

Nos fóruns onde a regulação económica verdadeiramente se pratica, isto é, nas instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e FMI), o novo “segundo mundo” apenas obteve algumas “migalhas” institucionais, quase sem significado. Para isso, muito contribuiu a circunstância dos “emergentes” terem ido cada um para seu lado, com a China a mudar de “campeonato”, a Rússia a claudicar económica e demograficamente, a Índia a não conseguir ter uma estratégia mínima de afirmação externa e o Brasil a regressar ao seu eterno estatuto de “país do futuro”.

Estamos hoje numa situação idêntica à de 2007/8? Alguma coisa se aprendeu, mas, ao que se sabe, nem a própria UE conseguiu ainda consensualizar medidas sólidas para enfrentar crises muitos sérias. Por estes dias, os efeitos do coronavirus irão pôr à prova a solidez do que aí está. Por que será que tenho saudades de Mario Draghi?

Noutro país

Como eu gostaria de ver, numa declaração conjunta, António Costa, Rui Rio, Francisco Rodrigues dos Santos, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins, expressando a sua comum preocupação pela situação que o coronavirus acarreta para o país e apelando a medidas coletivas de responsabilidade!

terça-feira, março 10, 2020

Greves


Fazer greves, na área da saúde, num tempo destes, é um ato de baixeza moral e de miséria ética corporativa.

Caramulo


Foi na semana passada. Com o estado do tempo, o dia escolhido podia ter sido bem mais feliz, mas era o único que nos dava jeito, já que andávamos por ali. Depois de muito bem tratados no “Três Pipos”, em Tondela, subimos ao Caramulo, zona que uns amigos brasileiros não conheciam. 

Do belo trajeto, acabariam, afinal, por ver muito pouco, porque caía um nevoeiro das arábias, embora eu desconfie que, nas arábias, não há nevoeiros tão “decentes” como aquele que por ali sofremos. O regresso seria mesmo épico: a “menina” da voz do Waze atirou-me, várias vezes, por estradas municipais sinistras, o que a fez ouvir “das boas”. Os qualificativos com que a apodei (as mais das vezes, diga-se, intimamente) justificavam, desta vez com forte razão, o qualificativo penal de “difamação agravada”!

Esta nota, porém, tem como objetivo essencial dar conta, a quem o não saiba, de que existe no Caramulo um excelente museu, com uma muito interessante coleção permanente de pintura, escultura, tapeçaria e outros objetos de arte, que justifica amplamente uma visita (como se diz nos guias verdes da Michelin, que “vaut le détour”). E com um pessoal dedicado e entusiasmado com a tarefa que ali lhe incumbe.

No mesmo edifício, existe ainda um museu do brinquedo (que será feito das peças do museu idêntico que, há poucos anos, ainda existia em Sintra?) e, até daqui a algumas semanas, por ali estará uma imensa e inesperada coleção de cartazes da Segunda Guerra Mundial - dos aliados, dos nazis e até dos japoneses. 

E, claro!, por lá há também o único museu do automóvel do país. Mas o museu do Caramulo - e é isso que quero sublinhar - é muito mais do que o seu museu do automóvel, por que, normal e vulgarmente, é conhecido.

Nos tempos que correm, já não se vai ao Caramulo apanhar “bons ares” no sanatório para curar a “tísica”, a saudosa Pousada é uma triste ruína, mantém-se por lá um hotel que parece já ter tido bem melhores dias. Mas a paisagem do Caramulo (que, desta vez, nos “escapou”) é sempre belíssima e, repito, a terra tem um museu muito interessante. 

“Vá para fora cá dentro!”, como antes proclamava o nosso Turismo. Eu faço isso sempre que posso!

(Deixo a fotografia de um cartaz que estava no museu do Caramulo. Com a “fachalhada” que por aí agora brota, talvez seja uma imagem oportuna!)

segunda-feira, março 09, 2020

Paulatinamente


Leio que o chefe Rui Paula ganhou o prémio do “Chef do Ano” (eles escrevem “chef”, eu escrevo “chefe”) do “Boa Cama Boa Mesa”. Não consegui estar presente na cerimónia, porque a ubiquidade continua a ser uma das qualidades que (ainda) me faltam - e digo isto com assumida modéstia.

Para o celebrar, decidi passar no “Cepa Torta”, em Alijó. O Rui já “largou” aquele negócio há uma década, como me explicou ontem o António, que ali nos serviu um almoço “de truz”. O “Cepa Torta” ficou em excelentes mãos!

Foi lá que o Rui Paula começou e foi onde o conheci, bem antes de ele ter rumado à Folgosa, onde fez o DOC. Depois foi para o Porto, com o DOP, e, finalmente, arribou à Boa Nova, onde, na Casa de Chá, ganhou as esporas estreladas da Guia Michelin. Ah! E, pelo meio, também teve a aventura pernambucana, no “Rui Paula” do Recife, e a escala breve no Terraço do Tivoli. Conheci tudo isso, claro, havendo coisas de que gosto mais e outras de que gostei menos. Mas, em geral, gosto muito do que ele cozinha.

É que, “all in all”, o meu amigo Rui Paula, que ainda arranja tempo para as televisões, é um chefe de mão cheia, com uma atenção única - repito, única - aos produtos locais. 

Um dia, há muitos anos, fui convidado por um amigo para ir jantar ao DOC. O Rui Paula fazia por lá uma estranha refeição de águas, “sem vinhos”! Escrevi então um texto, que agora vou reproduzir aqui, e que o Rui me pediu para incluir num belo livro que teve uma prémio internacional em Paris, numa cerimónia na Comédie Française a que assisti. É que o mundo é muito pequeno! 

Aqui fica o “Águas passadas no DOC”, um artigo (escrito há mais de uma dúzia de anos, ainda numa ortografia do antanho) um pouquito longo, reconheço:


“O entusiasmo com que partira a caminho do DOC foi de tal forma afectado pelo choque da informação recebida que abrandei a velocidade e quase parei o carro. Um jantar no DOC, sem vinho?!



Pois era essa a proposta, nem mais nem menos: uma refeição de degustação, só com águas e total ausência de alcoóis. Confesso que a hipótese de desistir chegou a passar-me pela cabeça e que só o facto de haver um compromisso fixado com antecedência, e não querendo ofender o autor do alvitre – um arquitecto de “primeira água” –, fez com que a minha relutância fosse atenuada.



A imagem que eu mantinha do DOC era muito positiva, pela boa memória de uma visita passada. Críticas lidas ao longo do ano haviam-me alimentado o desejo de regressar e rever a cozinha de Rui Paula, que me diziam estar cada vez mais imaginativa, com uma rara sustentação de qualidade. Mas, tenho de confessar, desse desejo também fazia parte integrante a possibilidade de acompanhar a comida com algum ou alguns dos excelentes Douros que integram a magnífica lista de vinhos que o restaurante sempre apresenta.



O DOC tem uma situação privilegiada, na margem esquerda do Rio Douro, a meio desse percurso mágico que é a sinuosa estrada entre a Régua e o Pinhão, bordejada de vinhas e nomes de quintas, algumas a fazerem-nos recordar rótulos de belas produções vinícolas. O local é magnífico, em dia ameno pode-se utilizar o deck exterior. Dentro, telas de plasma na sala permitem seguir os trabalhos na cozinha, um exercício de transparência que nos aumenta a confiança. Uma área para amenizar a espera foi entretanto criada, com um piano a sugerir interessantes potencialidades e a assegurar que nunca o espaço virá a ser perturbado por uma qualquer “musak” ambiental. E, sobre tudo isso, a certeza de podermos beneficiar de um cenário deslumbrante, no centro de uma paisagem de uma serenidade única.



Tudo bem, tudo isso era verdade, mas a minha perplexidade mantinha-se. A ideia continuava a ser verdadeiramente bizarra: um jantar degustação, sem vinhos, só com águas?! Não sou fundamentalista, não sou um ansioso de vinho, passo imensos dias sem provar uma gota de álcool. Mas no DOC, no coração do Douro, um jantar sem vinho soava-me como que ofensivo a esses “montes pintados” que Araújo Correia nos descreveu.



Foi num misto de perplexidade e curiosidade, com a primeira a superar em muito a segunda, que entrei no restaurante. Ainda lancei, sem sucesso, a ideia de, pelo menos, “abrir” com um gin tónico, como que a criar lastro etílico para sustentar o que aí viria. Fui logo desiludido por vozes suavemente reprovadoras, que me alertaram para os riscos de afectação da pureza gustativa, a qual deveria ser mantida numa espécie de virgindade profiláctica, indispensável ao acolhimento dos gozos que se seguiriam.



E, pronto, lá fomos para a mesa, uma dúzia de convivas, a maioria desconhecidos, uns aparentemente mais convictos das virtualidades do exercício que outros – comigo, francamente, bem ancorado no campo dos últimos.



Tudo começou por um período inicial de carência psicológica, em que um ou outro lá ia recordando a falta do vinho à mesa. A sólida constatação de que o único líquido permitido seria a água provocou então graçolas nervosas, com os mais imaginativos a aventarem o recurso limite a uma “aguardente” ou a uma “água-pé”.



É que, de facto, eram as águas as rainhas da noite. Águas diferentes, umas lisas outras gasosas, umas mais “planas” outras mais “profundas”, algumas algo “agressivas”. Tivemos até o privilégio de provar umas nórdicas de belo design, mais frescas umas que outras. Sempre águas, claro! Apenas uma água era portuguesa e, para mim, totalmente desconhecida.



Durante o repasto, as águas sucediam-se, em copos diferentes, cada uma a acompanhar as (creio!) oito propostas gastronómicas, que não estavam sequer listadas à partida. Um simpático “expert” – reputado conhecedor de vinhos, imaginem! – procurava ajudar-nos a identificar, não apenas a singularidade de cada uma das águas experimentadas (sobre cujas qualidades comparadas alguns dos convivas já ousavam, a medo, “mandar bitaites”), mas igualmente a razão pela qual essa mesma água fora seleccionada para acompanhar tal prato, em função do seu potencial para combinar, por contraste ou complemento, o produto cozinhado.



E foi então que se foi passando essa coisa extraordinária que foi o facto de, sem disso termos real consciência, a ausência do vinho ter deixado praticamente de constituir tema da conversa, muito menos de qualquer angústia. A refeição, regada a águas, ia-se impondo naturalmente, perante o deslumbre dos sentidos, a variedade das escolhas propostas, a riqueza das combinações que nos eram oferecidas.



Duas evidências ficaram claras, na minha perspectiva.



A primeira foi o facto da ausência do vinho nos ter tornado, a todos, muito mais atentos aos sabores do que nos ia sendo apresentado, não nos “distraindo” da essência dos paladares, obrigando a que nos concentrássemos, de forma mais profunda, em cada componente do que nos era sugerido. Por mim, pude constatar que o vinho, em toda a sua imorredoura glória de factor criativo e de qualificador global do gosto, pode ter o “defeito” colateral de nos afastar do esforço de procura de construção/desconstrução do que estamos a saborear, da especificidade de um molho, da ténue diferença gustativa de um vegetal, da “nuance”, quase imperceptível, de um produto sujeito a um tratamento muito sofisticado. Digo isto porque, talvez pela primeira vez desde há muito, consegui descortinar e isolar, combinando-os depois muito melhor, os componentes que o Chefe ia indicando como constituintes das propostas gastronómicas que surgiam.



Quererei dizer, com isto, bem no coração deste nosso Douro, que o vinho passou a ser algo dispensável? Longe disso: o vinho é, cada vez mais, o grande “sublinhador” criativo dos paladares, o provocador de efeitos que se acrescentam aos alimentos e deles consegue extrair novos e decisivos matizes. E tem, além disso, uma importante carga eufórica, que excita as almas e alegra os tempos, particularmente se for de qualidade e se tomado com conta, peso e medida – e, claro, se as garrafas forem abertas com antecedência adequada e se servido à temperatura requerida.



Mas esta interessante experiência teve a virtualidade de nos mostrar que, numa refeição, há mais vida para além do vinho, se bem que a vida e a refeição sejam sempre muito boas com ele à frente.



Uma segunda constatação também se impõe: a virtualidade desta prova, sem o recurso ao complemento do vinho, só teve o sucesso que teve pelo facto de ter sido apoiada na qualidade excepcional de todos os pratos apresentados, que a ausência do álcool permitiu que ganhassem autonomia própria, deixando-os “brilhar” por si mesmos. E foi a circunstância dessa qualidade nunca ter decaído ao longo do jantar, de prato para prato, que conseguiu garantir um apego contínuo e sustentado do nosso paladar àquilo que íamos degustando, sem fazer ressaltar a “saudade” do travo adjectivo do vinho. Com uma refeição banal, por melhores que fossem as águas, tudo não teria passado de uma grande “seca”… E eu, tenho de admitir, fui menos capaz do que outros companheiros desta agradável jornada de ser sensível a algumas características específicas que eram atribuídas e identificadas em cada uma das águas provadas.



Dito isto, vamos ao principal: Rui Paula provou-me definitivamente, nesta memorável noite, que é hoje um dos chefes portugueses com maior criatividade, que consegue aliar a sofisticação de uma cozinha contemporânea de grande nível e excelente apresentação com algumas notas de rodapé gustativo, em que faz orgulhosa questão de trazer-nos à lembrança sabores regionais, na maioria dos casos tipicamente nortenhos, umas vezes de forma subliminar, outras de modo plenamente assumido. Rui Paula consegue assim demonstrar-nos – e entendo que outros deveriam aprender com isso – que o cosmopolitismo sofisticado de uma cozinha não é incompatível com o recurso a citações sensoriais ligadas às raízes geográficas de onde se opera. Pelo contrário, a originalidade do que nos propõe no DOC só ganha com a chamada à mesa desses mesmos elementos.



Num circo, trabalhar sem rede é um risco que enobrece a arte. Num restaurante, ousar um menu sem o recurso ao complemento de vinhos será talvez a prova mais provada de que a grande gastronomia também se constrói na autoconfiança e na certeza de que a qualidade se imporá sempre por si própria. Quando exista no trabalho de um grande Chefe, como é o caso de Rui Paula.



A boa disposição com que saí deste exercício – que, a bem dizer, deveria ter o “mecenato” da Brigada de Trânsito da GNR – leva-me a ecoar a já célebre frase de um velho oficial de Marinha, pouco navegado nas especificidades da gramática, que a nossa História acolheu como uma patética anedota política, quando um dia quis qualificar uma sua qualquer alegria pública: “só tenho um ‘adjectivo’ para expressar o que hoje aqui senti: gostei!”.

domingo, março 08, 2020

Chega de virus!

Sei que, a alguns, isto pode parecer algo estranho, mas, desde há dias, deixei praticamente de ver, ouvir ou ler notícias sobre o coronovirus. Não assisto às reportagens na televisão sobre o surto, não leio artigos de jornais sobre o tema, não abro links na net, resisto à avalanche de estatísticas sobre doentes e mortos e coisas assim. Recuso, em absoluto, deixar-me tomar por este ambiente monotemático.

Assim, adoto as medidas básicas de higiene, evito contactos físicos desnecessários e restrinjo ao mínimo a ida a lugares com grande público. E logo se verá! 

Andar de manhã à noite a falar do assunto não resolve rigorosamente nada e só aumenta a paranóia. As pessoas que me são próximas já sabem: comigo, não contam para conversas sobre o coronovirus!

Diálogo, precisa-se

Vou dizer isto da forma mais simpática que consigo: ou o discurso oficial do PS é capaz de encontrar um registo dialogante,sem laivos de arrogância e isento de conversa “de cátedra”, ou o seu governo, a prazo curto, vai passar a ter mais problemas. E mais não digo, está bem?

Mulheres

Não quero diluir o charme social que se tornou hábito na comemoração do dia internacional da mulher, com flores e brindes, mas lembro que a data radica numa coragem extraordinária, contra discriminações e preconceitos, que, muitas décadas depois, estão longe de erradicados.

Responsabilidade

É uma obrigação de cada cidadão português responsável não apenas respeitar, mas igualmente apoiar e propagar de forma empenhada as restrições que a atual situação sanitária justifica, nomeadamente em matéria de visitas a unidades públicas e observância de regimes de quarentena.

A nova semiologia

Tem alguma (relativa) graça o variado modo como as pessoas se saúdam socialmente, nos dias que correm: há os que gesticulam à distância, os que tocam punhos ou cotovelos, os que abraçam sem beijar até aos afetuosos crónicos impenitentes. A semiologia tem aqui um novo capítulo.

João Vieira


A casa-museu é pequena, mas muito digna. João Vieira, um pintor de que gosto muito, merece bem a homenagem que a sua terra natal, Vidago, há poucos meses lhe fez, criando um espaço em sua memória, graças à pertinácia do seu filho, Manuel João Vieira.

Em setembro, por insuperável impedimento pessoal, não pude aceitar o simpático convite do Manuel João para estar na inauguração deste museu. Ontem, tive imenso gosto em passar por lá.

Meses antes da sua morte, em 2009, João Vieira tinha tido a amabilidade de me desafiar para comissário internacional da iniciativa “Sinais Douro”, um projecto que há muito acalentava, destinado a dar projecção a algumas belíssimas ermidas da zona duriense, associando-lhes trabalhos pictóricos de artistas estrangeiros convidados.

sábado, março 07, 2020

Um ponto final


Como já deve ter dado conta quem por aqui me lê, sou um “viciado” em restaurantes. Numa certa cidade do país, cujo nome não interessa, existe, desde há uns anos, não muitos, um restaurante, não excessivamente simpático como espaço mas com ambiente e serviço aceitáveis, num lugar conveniente, porque muito bem situado. Sem exceção, todos os meus amigos e conhecidos que são frequentadores do local me dizem bem dele. Fui lá, julgo ter a conta bem feita, umas cinco vezes, a primeira já aí há uns seis anos. No final das refeições, nunca de lá saí plenamente satisfeito. Às vezes, foi assim-assim, outras vezes, foi mesmo mau. Por que continuei a teimar? Não porque seja masoquista, mas porque esses amigos e conhecidos me iam dizendo, de cada vez que referia essa nova má experiência, que devia ter sido um “azar”. E assim fui dando o benefício da dúvida ao restaurante. Agora, acabou! Eu e quantos me acompanhavam numa refeição muito recente comemos francamente mal. Portanto, ponto final. Qual é o restaurante? Sei lá! Já o esqueci, de vez...

O remédio


Quando, como frequentemente me acontece, me “passo” com a nossa televisão, tenho um remédio quase infalível: mudar para a RTP 2. Obrigado, Teresa Paixão!

Há noites assim!


À escolha

A propósito de um artigo que ontem publiquei no “Jornal de Negócios”, onde critiquei a política de Israel, já houve quem me acusasse de anti-semitismo. Confesso que já estava à espera...

Quem não sabe distinguir a diferença entre anti-sionismo e anti-semitismo só tem três hipóteses: ou é parvo ou é ignorante ou está de má fé. Esses, façam o favor de escolher!

Casa de Sezim


É uma das mais deslumbrantes casas de Turismo de Habitação do país, situada perto de Guimarães. 

Passei ontem por lá para recordar aquele espaço magnífico e para degustar o excelente verde branco que ali se adquire.

A quem tiver uns minutos livres, aconselho vivamente que vejam o “Visita Guiada” que Paula Moura Pinheiro lhe dedicou: ver aqui.

Alibi

O argumento de que o deputado mais notório da extrema-direita parlamentar não pode ser deixado a falar “à solta”, sem escrutínio nem contraditório, está a ser um excelente alibi para, cada vez mais, alguns lhe darem um generoso tempo de antena. Os amigos são para as ocasiões...

Sem coronovirus

Numa certa altura de 2019, a Sky News criou uma serviço noticioso “Brexit free”, em que poupava os seus utentes à constante avalanche de notícias sobre o Brexit. Esse noticiário foi um êxito. 

Por estes dias, e porque não tenho uma curiosidade sobre toda a especulação em torno da doença, apetecia-me imenso ver telejornais “coronovirus free”.

Política senior

Tenho idade suficiente para poder dizer isto sem suscitar suspeitas de ”jeunisme”: é um pouco estranho que, num tempo em que as carreiras se fazem cada vez mais cedo na vida, em que pessoas na casa dos 30 e 40 anos assumem imensas responsabilidades, o cenário político americano esteja “nas mãos” de gente bem acima dos 70 anos.

sexta-feira, março 06, 2020

Gestão de crises


Acaba de ser publicada uma obra coletiva, que envolve os (então) 28 países da União Europeia, sobre o modo como a Europa se organiza, no tocante à sua intervenção na gestão de crises internacionais, focando, em especial, as mais notórias insuficiências que é possível detetar nessa ação.

A convite da Fundação Bertelsmann e do Center for European Policy Studies, tive o gosto de ser o representante português no grupo de trabalho, que, durante o ano de 2019, em Bruxelas, organizou reuniões sobre o tema, das quais resultaram os trabalhos agora publicados.

A contribuição portuguesa para este volume muito deve à Dra. Patrícia Magalhães Ferreira, uma reputada especialista que convidei para esta tarefa e que comigo figura como co-autora deste trabalho.

Essa gente


Há muitos anos, em Israel, visitei um “kibutz”. Na ocasião, a primeira impressão que tive foi a de devia haver poucas coisas mais parecidas com o “ideal” da sociedade comunista do que essas comunidades onde os bens materiais tinham uma importância muito limitada, em que o dinheiro físico era de um valor quase instrumental, onde a partilha de tudo, até a educação coletiva dos filhos, era a regra. Tratava-se de uma economia de mera subsistência, suportada por uma forte cultura religiosa, com as técnicas requintadas de preservação da água a dar o toque de contemporaneidade àquele vida de recorte quase primário.

A visita era “política” e tinha muito a ver com a propaganda israelita ao seu modelo de sociedade, de que os “kibutz” eram símbolos exemplares. O grupo de portugueses envolvido na visita, onde não havia nenhum crente no judaísmo, achou graça ao exercício mas, ao que pressenti, permaneceu sempre um pouco descrente na capacidade de sustentacão futura daquele tipo de “engenharia” social. Consta-me, aliás, que o mundo dos “kibutz”, nos dias de hoje, é já muito diferente, sendo pouco apelativo para as novas gerações, mobilizadas por agendas de interesses bem diversas.

Mas voltemos à nossa visita. Para chegar ao “kibutz”, verdejante e erigido como um bem guardado oásis em terra inóspita, tínhamos atravessado zonas que, vim a saber, em resposta à minha curiosidade, eram pequenos aldeamentos árabes, com um grau de visível pobreza. Fixei a cara dessas pessoas, que olhavam, com um ar tenso, as viaturas israelitas que nos transportavam.

No “kibutz”, para nossa surpresa, também se falava português. Eram alguns judeus que tinham migrado do Brasil para a “terra prometida”, ali misturados com outras nacionalidades. O nosso principal interlocutor, simpático e falador, fez-nos uma descrição verdadeiramente entusiástica das virtualidades do modelo: da troca de produtos que faziam com outros “kibutz”, da venda dos frutos da exploração nos mercados de Tel-Aviv, utilizando depois o resultado coletivo dessas vendas para compra de outros bens essenciais, nas raras saídas para fora do “kibutz”. “Se não fosse uma heresia dizê-lo, eu afirmaria que vivemos no paraíso, onde nada nos falta”, disse-nos, com um largo sorriso.

Acho que nenhum dos visitantes ficou seduzido pela hipótese de algum dia vir a viver num “falanstério” similar, mas por todos perpassou uma imensa admiração por quem o fazia, desprendido dos bens materiais. A similitude com um convento terá surgido de imediato na nossa cabeça.

Confesso que, sem o menor sentido provocatório, fiz então uma pergunta, num tom neutro, mais para encher conversa do que por real interesse: “Também trocam produtos com as aldeias árabes por que passámos, que vimos no caminho para cá?”

Num segundo, o ambiente mudou por completo. Os acompanhantes israelitas olharam para mim como se eu tivesse dito um insulto. O judeu brasileiro “fechou” a cara e nunca mais esqueci a frase simples, mas bem sintomática, com que me respondeu: “Essa gente, para nós, não existe!” E mudou de conversa.

As pessoas com quem eu ia creio que ficaram tão chocadas como eu. Acho que os próprios funcionários israelitas se surpreenderam com a crueldade do comentário do habitante do “kibutz”. E, naquele instante, grande parte da simpatia genuína que, nos minutos anteriores, se tinha gerado, desvaneceu-se. A visita terminou com alguma rapidez.

Quando, há dias, vi que o mandato de Benjamin Netanyahu foi renovado, que o seu projeto de um “grande Israel” tem hoje o apoio claro da maior potência internacional, à revelia de resoluções do Conselho de Segurança da ONU que os próprios EUA aprovaram, que o caminho do Estado israelita vai no sentido evidente de um sistema de “apartheid”, dei comigo a pensar que o judeu brasileiro com quem me cruzei, há umas décadas, nesse “kibutz” perdido no “West Bank”, se acaso ainda for vivo, deve estar hoje feliz. Mas lembrei-me muito “dessa gente”.

quarta-feira, março 04, 2020

Quem é?


Uma confiança essencial


“Bolas! Até na justiça! Isto vai bonito, vai!” Não foi necessário olhar para a televisão daquele café de estrada, na Beira interior, na tarde de segunda-feira, para perceber que o tema dos comentários era a notícia da demissão de um magistrado de um tribunal superior, num escândalo a que só o cronovirus ajuda a disfarçar a amplitude. “Aquilo é como na política, pá! São todos iguais!”, ouvi logo ao meu lado, no balcão. As vozes que emanavam daquelas samarras ressoavam uma desencantada unanimidade. “É como os árbitros! Cada um é pior que o outro!”, sentenciava um terceiro.

Mais do que em qualquer época recente de que me consigo lembrar, parece instalada, no sentimento comum, uma distância, quando não uma acrimónia, muito pouco saudável entre os cidadãos e as estruturas institucionais do Estado e dos corpos socialmente relevantes.

Se não acreditam no que escrevi, façam o teste: ao ouvirem comentários negativos sobre figuras políticas, sobre os partidos ou o parlamento, sobre grandes empresas ou outras entidades coletivas, experimentem tentar um discurso abertamente contraditório. Logo verão a reação! Logo “verão”, não, logo veriam, porque tenho o pressentimento de que a maioria das pessoas que me lê já não estará disponível, com sinceridade, para ensaiar esse discurso. Constato que muito rara é hoje a personalidade pública ou instituição que preserva um prestígio que, face a qualquer súbita acusação ou desconfiança, suscite um automático e maioritário benefício de defesa.

A estabilidade das democracias pressupõe a existência de um grau mínimo de confiança entre a generalidade dos cidadãos e as instituições representativas do poder dos Estados, para além de, pelo menos, alguma neutralidade no tocante à aceitabilidade de outras forças relevantes no respetivo tecido social.

A minha percepção, que concedo possa ser impressionista, é de que, com todos os seus defeitos, eventuais manipulações e desvios corporativos, a máquina da justiça se mantinha, até há bem pouco tempo, imune a suspeitas genéricas de corrupção ou tráfico de influências – salvo casos pontuais bem identificados. O que, nos últimos meses, tem vindo a passar-se num dos nossos tribunais superiores é, assim, muito grave. Todos esperamos que se trate de episódios bem isolados, a que possa ser posto cobro, com rapidez e transparência. É que se os cidadãos se sentirem tentados a duvidar da ética dos órgãos da sua justiça estaremos perante a perda de uma confiança essencial que sustenta o sistema democrático.

Constança Cunha e Sá


Cruzei-me algumas vezes com Constança Cunha e Sá em programas por ela moderados na TVI. Em várias algumas outras ocasiões, com pena minha, não pude aceitar convites que me formulou.

Sempre considerei que o seu jornalismo era feito com um imenso equilíbrio, assente numa experiência muito rica sobre a realidade política portuguesa. Com a sua saída, a TVI perde uma voz com grande credibilidade jornalística.

terça-feira, março 03, 2020

11 de março e outras histórias


Há meses, a RTP pediu-me um depoimento sobre os acontecimentos do dia 11 de março de 1975. Na conversa, vieram à baila outros temas desse tempo. Aqui ficam extratos desse dialogo.

Não percam, amanhã, 4 de março!


Brasil

Desde que saí do Brasil, fui-me habituando a alimentar regulares discordâncias com amigos que por lá criei. Alguns com posições diametralmente opostas, note-se. Aquele país entrou numa “guerra de trincheiras” da qual me recuso a ser parte.

Vem isto a propósito da atribuição, pelo município de Paris, de uma distinção ao antigo presidente Lula. 

Há amigos meus indignados com o que consideram ser uma provocação, uma atitude desajustada face a um cidadão cuja precária liberdade, de que atualmente usufrui, não pode fazer esquecer que ele foi já condenado em justiça e sobre ele impendem ainda outras acusações.

Outros amigos, porém, exultam, por estas horas, ao verem como que implicitamente reconhecido pelo mundo que Lula está a ser sujeito, no seu país, a um processo condenatório completamente enviesado, por motivos puramente políticos, sob um corpo de provas frágil e muito pouco credível.

(Já imagino o que virá “por aí”, em termos de comentários indignados!).

Não sou brasileiro, não sou juíz, mas acompanho com alguma atenção o que se passa naquele país. Por isso, apenas quero dizer uma coisa, bem simples: não tenho a certeza de que Lula não seja culpado de alguma coisa, mas tenho a convicção (que, valha ela o que valer, é a minha e por isso aqui a deixo) de que a sua culpabilidade é bem menor do que a diabolização que dele querem fazer.

segunda-feira, março 02, 2020

Diz que é uma espécie de desilusão...

Há semanas, um amigo dizia-me que, às vezes, ao ler-me, ficava chocado com o facto de, à revelia do que lhe parecia ser a coerência essencial daquilo que entendia serem as minhas ideias, políticas e não só, se confrontar, com alguma surpresa, com posições que abertamente contrariavam essa lógica, o que lhe suscitava intimamente uma reação do género: “Então este tipo, com quem tantas vezes estou de acordo, sai-me agora com uma destas!?” Uma espécie de uma desilusão...

Não o esclareci sobre se, na realidade, essa minha atitude tinha mais a ver com um displicente desinteresse em sustentar a coerência ou, muito mais, com uma forma provocatória de estar na vida, uma espécie de assumido “estar-me-nas-tintas”. Ou se acumulava, até com algum gozo.

De uma coisa, porém, tenho absoluta certeza: um amigo define-se pelo facto de continuar a sê-lo, mesmo depois de constatar que está em completo desacordo com o que dizemos, ainda que em coisas que tidas por ele como essenciais. O resto, já aprendi: no melhor cenário, são amigos de ocasião, no pior, amigos da onça.

domingo, março 01, 2020

Brevemente, num Afeganistão perto de si...

Os EUA são peritos em intervir em países alheios, mas a História prova a sua inabilidade para montarem “exit strategies” minimamente sustentáveis. Na maior parte das vezes, “deitam dinheiro” sobre os problemas que criaram, quase sempre na forma de créditos para as suas empresas. Foi um “filme” que já se viu no Iraque, e que vai ser realizado, pela enésima vez, no Afeganistão.

O destino da comenda

Anos 50 ou 60. O secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, depois de muitas insistências e empenhos de terceiros, lá se tinha dignado receber aquele diplomata. 

Era um homem apagado, a quem nunca tinha sido atribuída a chefia de qualquer missão, que jamais tinha podido ouvir alguém chamá-lo de embaixador, que rodara entre alguns postos de segunda linha, sem grandes queixas de ninguém mas também sem um lustro minimamente notório. 

Curiosamente, quer ele quer o secretário-geral tinham entrado para as Necessidades no mesmo ano, mas os seus destinos não podiam ter sido mais díspares. O chefe da carreira, que é aquilo que todo o secretário-geral é, tinha tido um percurso profissional fulgurante, com alguns postos daquilo que, na linguagem mordaz da casa, se chama a ”linha Elisabeth Arden”: Nova Iorque, Londres, Paris, Roma... O seu modesto colega de entrada apenas chegara a ministro plenipotenciário de segunda classe, vulgo “ministro de segunda”, e jazia, prestes a chegar à reforma, numa obscura repartição, onde vulgarmente ia parar quem estava destinado ao esquecimento.

O gabinete do secretário-geral era, ou parecia, imenso. Estava situado no chamado terceiro andar do palácio. Quem não estivesse habituado à linguagem da casa diria que aquele era o primeiro andar do edifício das Necessidades, situado imediatamente após o piso da entrada, a quem acede pelo largo do Rilvas. Mas não, as contas, por lá, não se fazem assim - e não me obriguem a explicar agora porquê.

Escrevi que o gabinete “era”, porque, desde há bem mais de três décadas, a birra de um ministro, num assomo de poder, determinou a saída do secretário-geral desse espaço tido por nobre, enviando-o para outro andar - mais abaixo, claro. Onde hoje está e, por sinal, dignamente instalado o chefe da carreira.

Entrava-se para esse antigo gabinete do secretário-geral por uma porta envidraçada a fosco, bordeada a cortinados de veludo verde. A secretária onde se sentava o poderoso embaixador estava situada ao fundo. Os escassos segundos que demorava a travessia da sala atapetada, a caminho da pessoa que encarnava o topo funcional da casa, pareciam, para alguns funcionários que eram ali convocados, uma eternidade, que pontuava a distância hierárquica que esse percurso simbolizava. Lá chegados, havia uma cadeira, sempre colocada ligeiramente de lado, arredondada nos braços e nas costas, com palhinha. 

O nosso homem, que tinha dado entrada na sala por indicação do chefe de gabinete, instalado na antecâmara, aproximou-se da mesa do poder corporativo e, atento e venerador, ali ficou de pé, expectante. O secretário-geral, a custo, levantou os olhos para o velho colega, com quem não falava havia décadas, e, com um ar indiferente, disse: “Ah! És tu!”. Sem lhe estender a mão, apontou para a cadeira: “Senta-te!”. Passaram uns segundos e, com um suspiro e a condescendência de quem não estava disposto a perder muito do seu tempo, atirou: “Então diz lá ao que vens!”

O diplomata tinha ensaiado um discurso que começou a debitar. A sua carreira estava a chegar ao fim, preparava-se para regressar definitivamente a casa, sem que alguma vez a casa tivesse tido para com ele um reconhecimento mínimo, depois dos mais de quarenta anos que dedicara ao serviço público. Nunca pudera dar o gosto à família de ter recebido, por parte do Estado que servira, um gesto de apreço pelo seu trabalho, passado algumas vezes em lugares bem penosos, porque o seu fora o caminho das pedras.

O secretário-geral, sobranceiro, com um palpável e sobranceiro sentimento de distância humana. Era conhecido por ser uma figura autoritária, que utilizara o poder para algumas “vendettas” e não poucos gestos de arbítrio, à revelia do ministro, que lhe entregara a gestão da casa. Notava-se que começava a perder a paciência para toda aquela ladaínha, e já não o escondia, ora remirando papéis sobre a mesa, ora esboçando um esgar desagradado. Olhava o interlocutor por cima das lentes dos óculos, que usava para o despacho que se vira obrigado a interromper para aquela indesejada audiência. A certa altura, visivelmente cansado das lamúrias do colega, que mal reconhecia profissionalmente como tal, exclamou: “Mas então é uma condecoração que tu queres, é isso?”. O outro tartamudeou algo que não contrariava esse entendimento do secretário-geral. 

Este, impaciente e quase irritado, abriu uma gaveta da sua secretária, remexeu umas coisas por lá e fez sair uma pequena caixa côr-de-vinho que fez cair à frente do diplomata: “Pronto! Pega lá! Leva esta!”

A condecoração era um grau baixo de uma ordem criada pela Polónia depois da recuperação da independência do império austro-húngaro, após a Grande Guerra. Era atribuída, por esses tempos, com uma generosidade quantitativa que a desqualificava pelo mundo, pelo chamado governo polaco no exílio, em Londres, a quem desse mostras oficiais de apoiar a sua luta contra o regime comunista que passara a reinar em Varsóvia. A ordem honorífica chamava-se “Polonia restituta”.

O nosso homem olhou a caixa, intrigado, não reconhecendo, na águia dourada gravada na tampa, nenhum sinal identificativo de uma qualquer comenda portuguesa, que era o seu objetivo natural, nesse final de carreira. E perguntou, já tenso: “O que é isto?” O secretário-geral, displicente, respondeu-lhe: “É a “Polonia restituta”. É o que se pode arranjar...”.

Não tocando na caixa, o diplomata pôs-se de pé, afastou a cadeira, ficou hirto e, num assomo de dignidade, que terá vingado uma vida de humilhação e de forçada modéstia, teve uma reação sobre a qual, passados que são todos estes anos, a doutrina da casa ainda hoje se devide. 

Há uma escola, que creio maioritária, segundo a qual, cavalgando a sonoridade da última sílaba da designação da distinção polaca, o nosso homem terá mandado o secretário-geral de volta para a senhora, com suposta vida pública menos prestigiante, que o teria gerado. 

Outra corrente alimenta, contudo, a versão de que o diplomata poderá ter sugerido ao secretário-geral que viesse a introduzir a condecoração num orifício natural que a contenção tradicionalmente usada neste espaço me não permite explicitar, com a crueza lexical que consta terá sido utilizada.

Tirando esta pontual divergência sobre o destino recomendado para a comenda, contradição que, passados todos estes anos, se torna difícil de sanar, a única coisa que me é possível atestar, porque faz parte da irrefragável tradição oral do venerável palácio das Necessidades, é que a veracidade do episódio que acabo de relatar se situa acima de qualquer dúvida.

sábado, fevereiro 29, 2020

Dúvida angustiante

Sempre me coloquei esta (seriíssima) questão: alguém que tenha nascido a 29 de fevereiro sente-se bem, durante ciclos de três anos, a festejar o aniversário a 1 de março? E tem lata para soprar velas e receber presentes numa data que todos sabem que é falsa?

Guiné-Bissau


Foi a primeira colónia portuguesa a declarar independência, em 1973, ainda a ditadura por cá imperava. Era o tempo da ligação política Guiné-Cabo Verde, que se perdeu com o tempo e com o peso das realidades. Hoje, Cabo Verde é um Estado democraticamente exemplar, onde a alternância política se processa com serenidade, fruto do voto nas urnas. Uma outra “alternância” existe também na Guiné-Bissau, a que é marcada pelos sucessivos golpes de Estado, com a imponência das fardas a surgir ciclicamente por detrás de uma classe política onde há conhecidos caciques sustentados pela corrupção, pelo narco-tráfico, títeres de uma desbragada ingerência externa, que mantém o país seu refém. A Guiné-Bissau é hoje uma realidade muito triste no mundo da lusofonia.

Previsão

Não me perguntem como sei isto, mas quer-me parecer que o primeiro caso de cronovírus em Portugal só vai aparecer lá para março.

Higiene

Em França, a direita democrática manteve quase sempre uma barreira “higiénica” no tocante ao convívio público com a extrema-direita. Por cá, a Europa vai ser discutida, daqui a dias, com gente do PSD lado-a-lado com o deputado do Chega. Depois queixem-se!

Lado a lado


Aqui vai mais uma contra o “ar do tempo”: neste tempo de incensamento do cronista Vasco Pulido Valente, talvez fizesse bem a muita gente ler (e comparar com) o que escreveu Nuno Brederode Santos.

Baixar a guarda

No boxe, “baixar a guarda” significa facilitar o ataque do adversário. Quase sempre, isso acontece involuntariamente. Desta vez, faço-o em toda a consciência, ao deixar aqui escritas duas coisas, “com toda a frontalidade” (para citar o “clássico” Paulo Bento):

- aprecio muito coragem da ministra da Saúde, tendo-a por uma pessoa dedicada e competente, que está a desempenhar com grande seriedade uma tarefa muito difícil, em especial na conjuntura em que a exerce. Pode, aqui ou ali, ter tido uma declaração pública menos feliz, mas até no reconhecimento dos seus erros tem demonstrado a sua grande honestidade. (“Disclaimer”: Não conheço nem sou amigo da ministra Marta Temido)

- é uma evidência que Vitalino Canas é, de entre os políticos portugueses, uma das pessoas academicamente melhor preparadas para poder ser um excelente juiz do Tribunal Constitucional. Considerar como um “capitis diminutio” o facto de ele ter exercido cargos político-partidários é um reflexo de cariz populista, tipo “conversa de taxista”, como se a passagem por esse tipo de funções públicas, para pessoas honestas e probas, como nunca ninguém o acusou de não ser, significasse perda da sua independência pessoal e legitimasse o lançamento irresponsável de um manto de suspeição. A leitura enviesada e jocosamente chicaneira daquilo que ele disse sobre o facto de se ter preparado durante quatro décadas para o exercício de funções desse tipo é a prova do nível por que se arrasta o debate político. (”Disclaimer”: Fui colega de governo de VC, com quem tenho relações cordiais mas não de proximidade).

E, agora, façam favor...

Têvês

A agenda noticiosa das televisões portuguesas (sublinho, portuguesas) tem um “template” fixo: futebol, “tempos de antena” (presidencial, governamental, partidário, sindical), desastres, escândalos & tudo o que corre mal. É fácil, é barato e dá milhões de visualizações. E o país gosta assim.

Capas

O “Expresso” de hoje traz uma manchete que, em tempos idos, o jornalismo de referência denunciaria como alarmista. Estou certo que era isso que faria o “Expresso”.

sexta-feira, fevereiro 28, 2020

Risco do coronavirus


Percentagem de risco de morte, por grupo etário, se uma pessoa for infetada.

O destino


O que nos últimos dois dias se passou com as equipas portuguesas envolvidas nas competições europeias consagra uma tendência que, ano após ano, dá ideia de se acentuar. Parece hoje evidente que o futebol português, a nível de clubes, revela uma capacidade cada vez mais limitada de afirmação no plano internacional. Os clubes nacionais - mais uns do que outros, naturalmente - tendem a “cair” cedo nas provas onde intervêm e começam a afastar-se inexoravelmente de “potências” de países como a Alemanha, a Inglaterra, a Espanha, a Itália ou a França. Portugal continua a ter excelentes condições para “produzir” magníficos jogadores, mas o poder económico dos seus clubes, mesmo os mais poderosos, revela-se incapaz de os “segurar”. Assim, com alguma arte e organização, o nosso país poderá continuar a ter seleções nacionais competitivas, constituídas com os melhores dos seus jogadores que atuam no estrangeiro, mas o destino parece apontar inexoravelmente para que, cada vez mais, os clubes portugueses venham a ficar distantes do grandes troféus europeus. É pena, mas é assim!

Marquem nas vossas agendas!


quinta-feira, fevereiro 27, 2020

Tristeza

Há pouco, deparei, ali no Facebook, com uma troca acrimoniosa de comentários entre duas pessoas com quem tive o gosto de trabalhar num determinado posto diplomático.

Por essa época, essas pessoas mantinham entre si um esplêndido relacionamento pessoal, que muito ajudava ao convívio, são e descontraído, que sempre imperou naquela embaixada.

O que é que mudou? A política. Gente de esquerda contra gente de direita? Nada disso! Curiosamente, ambos de esquerda! (Ainda por cima simpatizantes doentios da mesma cor futebolística!)

Ao longo da vida, satisfaz-me muito constatar que nunca me zanguei com ninguém das minhas relações por motivos políticos. O contrário já não é verdade: houve amigos, muito poucos, é certo, que se foram afastando por divergências de opinião que eles terão considerado impeditivas da sustentação da normalidade da nossa relação anterior.

É triste? É, mas é a vida.

quarta-feira, fevereiro 26, 2020

Extremos


As expressões “extrema direita” e “extrema esquerda” têm duas similitudes. A primeira é semântica: em ambas, existe a palavra “extrema”. A segunda é que o passado em que essas correntes tiveram origem foi marcado por sinistras ditaduras - de um lado o fascismo e o nazismo, do outro os regimes comunistas, que resultaram num desastre totalitário. As similitudes acabam aí, pelo que é hoje profundamente desonesto procurar equiparar os dois conceitos.

A extrema direita é xenófoba, racista, discriminatória e promotora de políticas de ódio, obsessivamente securitária, cavalgando um sinistro nacionalismo.

A extrema esquerda, chamemos-lhe assim por facilidade, pelo contrário, defende políticas de igualdade e integração social, é anti-racista e anti-xenófoba e tem uma agenda política basicamente humanista - embora eu discorde do seu anti-europeísmo, do radicalismo simplista de muitas das suas receitas e ache irrealistas grande parte das suas propostas, por muito generosas que possam parecer.

Mas eu não esqueço nunca quem esteve do lado certo na 2ª Guerra Mundial, tendo tido um papel fundamental para a derrota do mais odiento projeto político que se conhece - o nazi-fascismo. E também me lembro bem de que, por cá, quando se tratou de ajudar a derrubar o projeto de fascismo saloio, mas criminoso, de Salazar, bem como lutar contra o colonialismo, essa esquerda foi essencial e, por virtude da sua luta corajosa, pagou um elevado preço, sofrendo o que nenhuma outra força de esquerda então sofreu.

Se é verdade que, nos anos de 1974/75 – vai para meio século! -, parte dessa esquerda foi tentada a uma deriva de populismo autoritário, é também uma evidência que a democraticidade da sua postura no sistema político tem sido, desde então, inquestionável. A sua participação na “geringonça” foi o reconhecimento natural desse seu pleno estatuto democrático.

Por isso, não votando eu nos partidos de Jerónimo de Sousa ou de Catarina Martins, de que muitas coisas me separam, deixo expresso que tenho consideração política (e, por sinal, também pessoal) por essas figuras e pelas formações que dirigem. E, como é óbvio, não tenho a menor consideração por quem titula políticas de extrema-direita, bem como por quem tende a desculpabilizá-las e por quem vier a prestar-se a estender-lhes a mão.

Há muito que me apetecia deixar isto bem claro. Seria porventura mais cómodo não o fazer, mas começo a estar cansado da fraude que é a recorrente tentativa de equiparar duas realidades que não se podem comparar.

terça-feira, fevereiro 25, 2020

Ansiedade

Estarei enganado ou deteto em algumas das nossas televisões uma espécie de ávida expetativa pelo primeiro caso de virus positivo em Portugal? Mas deve ser só impressão minha...

Pesar

Não confundo nunca as fronteiras da política com as relações pessoais. A grande perda que Pedro Passos Coelho acaba de sofrer, com a morte da sua mulher, somada ao desaparecimento, não há muito, do seu pai - pessoa por quem eu tinha estima e consideração -, configura para ele um tempo que imagino bem difícil. Deixo-lhe um abraço vila-realense de solidariedade e de pesar.

José Cutileiro


José Cutileiro escreve como poucos. O seu português de lei, culto e preciso, mas não gongórico, somado a um apurado sentido de observação, de onde ele parte para uma análise fina e percutante, torna a leitura dos seus livros um grande prazer. Acresce que a vida deu a Cutileiro a oportunidade de cruzar terras e gentes muito diversas, sabendo ele extrair disso notas inteligentes e divertidas.

Este seu novo livro, agora editado pela Dom Quixote, é uma colagem de textos curtos, muito diversos entre si, que podem ser digeridos autonomamente, o que transmite uma grande leveza à leitura, estendendo o prazer pelo tempo. Tenho apreciado bastante este “Inventário” e já estou com pena por estar a acabá-lo.

Eu gosto das palavras


Eu gosto das palavras e do canto
E dos ecos que trazem à lembrança,
Dessas canções de frança e aragança
Que são só sons que cobrem, como um manto,

O que têm que cobrir, porque, entretanto,
Já há, profissional, uma ordenança
A recolher em fichas, sem parança,
O tom, o cheiro, o muco, do seu pranto

Que cante, e dance, e viva, e morra, e vibre,
Que se desdobre em nervos e minutos,
E seja para sempre eterno e livre

O grito que se ergueu irresoluto
Desse sítio onde o corpo se coíbe
E súbito triunfa do seu luto.

Manuel Resende

segunda-feira, fevereiro 24, 2020

Daniel de Matos


Daniel de Matos é o médico que acompanhou os últimos quatro presidentes da República. No “Público” de ontem, Maria João Avillez traçou-lhe um interessante retrato humano, que vale a pena ser lido. Nele se descobre um homem sereno e de bem com a vida. Quem o conhece, sabe-o um profissional de grande qualidade, com uma lendária capacidade de diagnóstico. E sabe algo mais: a sua simpatia, o seu proverbial humor e boa disposição, meio caminho andado para a confiança que transmite.

USA

Era excelente ver Bernie Sanders no lugar de Trump na Casa Branca. Pergunto-me é se o facto dele poder vir a ser o candidato democrático não acabará por ajudar a que Trump permaneça no lugar por mais quatro anos. Logo veremos...

E se tentassem fazer jornalismo?

Será demais pedir à comunicação social portuguesa, em especial às televisões, que, perante a expectável extensão a Portugal do vírus, adote uma postura contida e não alarmista, deixando-se de bitaites e de especialistas paroquiais e dando relevo aos conselhos oficiais?

domingo, fevereiro 23, 2020

Palavras

Se a jornalista Ana Leal provar, sem sombra de dúvida, que o primeiro-ministro telefonou para a TVI a pedir a sua demissão, trata-se de um caso gravíssimo, que não pode passar sem sérias consequências políticas. Se não provar, a gravidade é idêntica e, de facto, é uma razão para ser demitida.

O país

Na consequência de corridas com automóveis, feitas de madrugada, bem acima dos 200 km/h, morreram anteontem quatro jovens na 2ª circular. 

Ontem, em ”homenagem” às vítimas, amigos juntaram-se com carros no local do acidente, impedindo o trânsito, obrigando à intervenção da polícia.

Está tudo doido?

Festival


A cançoneta apresentada num estilo muito La La Land foi a que mais me agradou no Festival da Canção, não obstante ter uma letra a armar ao intelectual, com um “name dropping” algo pretensioso. 

Confesso que percebo muito pouco destas coisas, em que sou um assumido “achista”. Pergunto-me, contudo, se aquilo é um estilo para a Eurovisão. Alguns dirão, com razão: também a balada do Sobral não era...

sábado, fevereiro 22, 2020

“Les miens”



Ontem, a propósito da morte de Jean Daniel, citei por aqui o título de um seu livro. Hoje, olhando os mortos “notáveis” que este fim de semana nos trouxe, lembrei-me de outra obra desse jornalista (ou deveria dizer escritor?).

Há quem se queixe de que este meu espaço se converte às vezes num excessivo registo obituário. E quem diz isso, sem o dizer, é porque acha isso chato. Aceito o remoque mas a verdade é essa mesmo: cada vez tenho mais mortos conhecidos.

E há também quem entenda que “faltam” por aqui alguns mortos, que deixo “escapar” gente e que, numa espécie de hierarquia de destaque obrigatório de quantos se vão, isso deveria justificar uma nota.

Ora isto não é um órgão de comunicação social, ou melhor, isto é apenas um órgão de “comoção” pessoal. Por aqui vou notando algumas pessoas cuja saída da cena da vida me toca, umas vezes pela relação ou contacto que possa ter tido com eles, outras vezes pelo que representam na minha memória afetiva (e a afetividade tem dois sentidos, pelo que isso não significa necessariamente que deles goste). Outras vezes, essas notas surgem apenas “porque sim”. Tentar descortinar uma qualquer lógica definitiva na escolha do que aqui deixo escrito é, podem crer, um esforço vão.

O título do outro livro de Jean Daniel de que agora me lembrei é “Les Miens” e resume, em geral, o sentido das notas obituárias que aqui publico. Mas, aviso!, nem sempre!

(E a fotografia? Não tem nada a ver com isto, ou melhor, tem a ver com o facto de eu estar agora sentado num banco do Jardim da Parada, em frente da estátua da Maria da Fonte, uma figura do século XIX, período que, desde sempre, me habituei a ver refém de uma historiografia oportunista, com agendas que se projetam nos interesses políticos do tempo presente. E mais não digo, porque vou comer um pastel de nata à Aloma, para animar os meus açúcares)

Regresso à escola

 
Regressei ontem à minha escola, ao Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Fui convidado para ali fazer a conferência de abertura de um ciclo de doutoramentos em Ciência Política e Relações Internacionais.

Na ocasião, o presidente do ISCSP ofereceu-me um livro sobre a longa história daquela casa, em que acabo de verificar que surjo, numa fotografia de 1968, engravatado e de colete, com um ar de muito bem comportado, algo que, à época, estava longe de ser.

“Contumaz agitador académico” foi a expressão com que fui brindado num processo disciplinar que me valeu, dois anos mais tarde, uma suspensão de seis meses. Em duas das três eleições para os corpos diretivos da Associação Académica em que fui eleito pelo voto livre dos meus colegas, a longa mão do Ministério da Educação Nacional (tempos de Hermano Saraiva mas também de Veiga Simão) viria a determinar também a minha “não homologação”, pelo que não pude vir a exercer esses cargos.

Ganhei por essa época um cadastro e até alguma fama de “troublemaker”, coisa um pouco desajustada para quem, como eu, não estava então ligado a qualquer atividade política ou partidária e apenas me limitava a lutar pelos direitos dos estudantes. Aliás, devia ser curioso comparar a nossa agenda revindicativa desses tempos com as preocupações das estruturas associativas de hoje.

Questão de fusos


O episódio passou-se há mais de três décadas.

Estávamos num hotel de uma capital africana, integrados na comitiva de um membro do governo português. Nessa manhã, íamos partir para o palácio presidencial, onde o chefe de Estado receberia o nosso dignitário. Toda a delegação estava já no hall, pronta para embarcar nos carros. Toda, não! Faltava o nosso embaixador acreditado nesse país, que vivia no hotel, enquanto a residência oficial portuguesa não terminasse as obras que, sob o seu exigente critério, há meses prosseguiam.

Com o tempo a escassear, via-se que o nervosismo começava a apoderar-se no nosso governante, pessoa que os anos futuros mostrariam ser pouco dada a absorver com bonomia as contrariedades que a vida a todos traz.

Tomei a iniciativa de telefonar para o quarto do embaixador. Expliquei-lhe que estava tudo "em pulgas", já com algum atraso, pelo que era urgente que descesse. Como se tivesse à sua frente todo o tempo do mundo, e ignorando olimpicamente a minha observação de que o nosso político estava a ficar furioso, disse-me com a sua proverbial, mas muito simpática, displicência: "Tenham calma! Aqui ninguém chega a horas..."

Cinco minutos depois, desembarcou do elevador, sorridente, aproximando-se da nervosa comitiva. O governante não resistiu e, entre o ácido e o irónico, lançou-lhe:

- Então, embaixador?! Não acordou? Não tinha despertador?

O diplomata, homem há muito conhecido por olhar para as minudências do tempo com a serenidade de quem tem outras prioridades na vida, respondeu-lhe, sem perder o sorriso, quase sarcástico:

- Sabe, até acordei muito cedo. Foi esse, aliás, o problema! Tão cedo era que voltei a deitar-me e, olhe!, adormeci...

E já caminhando para a porta, comentou, comandando a mudança da conversa:

- Belo dia, não acha?

Entre as nossas gargalhadas abafadas e a fúria oficial do chefe da delegação, lá fomos para o palácio. Ainda por lá esperámos um bom bocado, é verdade.

Tarde do dia de Consoada