terça-feira, agosto 12, 2025

A lasca


Quando, em 1979, cheguei à Noruega, meu primeiro posto diplomático, a aprendizagem da língua portuguesa fazia-se na Universidade de Oslo, num minúsculo departamento dependente da secção espanhola, como frequentemente acontece. Era seu responsável o professor Kåre Nilsson que, nesse mesmo ano, lançou o primeiro dicionário de Norueguês-Português. 

A embaixada prestava o apoio possível (que era muito pouco) a esse núcleo lusófilo, que tinha quatro ou cinco alunos. O grande discípulo de Nilsson, também docente de Português, era o tradutor da nossa embaixada, o professor Johan Jarnaes.

Um dia, num intercâmbio universitário, um consagrado professor da Universidade de Coimbra foi a Oslo proferir uma conferência, a convite do departamento de Português. Quando, na véspera, num jantar que lhe foi oferecido na residência, constatámos que a palestra era sobre uma temática muito técnica, ligada à utilização dos pronomes reflexos num certo tipo de frases, e que seria proferida exclusivamente em português, assaltou-nos uma preocupação: quem iria estar presente na conferência? Quem, entre os noruegueses, conseguiria segui-la?

A nossa preocupação tinha fundamento. No início da sessão, lembro-me bem!, prudentemente organizada numa pequena saka, estavam presentes, para além da embaixada "em peso" - isto é, quatro pessoas... - e de uma funcionária do então Fundo de Fomento de Exportação (a quem eu havia pedido o favor de vir), um representante da secção espanhola (meu amigo pessoal, um pouco "arrancado a ferros") e oito noruegueses, entre os quais Nilsson e Jarnaes. 

A palestra lá foi andando, por um pouco mais de meia hora, em estilo académico cerrado, debitando teses complexas. O tom era monocórdico, o assunto era mais do que críptico, mesmo para nós, portugueses, que estoica e patrioticamente íamos resistindo à chatice. 

O embaixador e eu sentávamo-nos na primeira fila, fingindo estar atentos, desertos por que aquilo terminasse. Íamos sentindo, atrás de nós, a sala a esvaziar-se, à medida que o tempo passava. No final, para além dos organizadores e dos funcionários da embaixada, notei que restava, num canto, uma figura de olhar fixo, que eu notara desde o primeiro momento. Um aluno? Era um homem de quarenta e tal anos, com ar visivalmente norueguês. Quem seria esse admirável cultor nórdico da língua portuguesa, que fora capaz de seguir atentamente aquela difícil palestra?

No dia seguinte, na embaixada, comentávamos o evento. Perguntei então ao Jarnaes quem era aquela figura estranha - mas decididamente simpática! - que havia resistido até ao fim da conferência e que ajudara, na medida do possível, a atenuar a escassez de público e a aridez do evento. 

O nosso dedicado Johan Jarnaes, uma pessoa encantadora que hoje vive a sua reforma em Kongsberg, explicou-me então, algo embaraçado: era um seu amigo, cego, que ajudava na secção espanhola e que ele próprio encaminhara de volta à sua sala, no fim da conferência. Tinha-lhe pedido para vir, para "compor" o nosso público... Estava explicada a "persistência" do homem. 

Não obstante toda sua dedicação à língua portuguesa, de que aspirava poder vir a ser professor titular na universidade, no termo do reinado de Kåre Nillson, o Português de Jarnaes era muito artificial e pouco prático. Aparentemente, só tinha estado em Portugal uma única vez, por dois dias, pelo que dependia bastante daquilo que lia e do que captava no seu contacto connosco. Porém, como o pessoal português que trabalhava na embaixada, com exceção do embaixador e de mim próprio, falava correntemente norueguês, as suas hipóteses de aperfeiçoar a língua eram muito limitadas.

Meses antes de eu chegar a Oslo, Jarnaes tinha sido o involuntário causador de um pequeno incidente diplomático: traduzira para português, de um editorial do jornal oficioso trabalhista, o "Arbeiderbladet", um adjetivo qualificativo sobre o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro que Lisboa considerou ofensivo. O embaixador Fernando Reino foi instruído para "tirar satisfações" dessa agressão semântica. Com uma análise mais fina da questão, veio a ficar claro que o termo usado pelo jornal era passível de mais do que uma leitura. Jarnaes acabou como o bode expiatório do incidente. Fernando Reino fervia, sempre que se falava disto.

Nas minhas conversas com Jarnaes, um profissional empenhado, de quem fiquei amigo e com cuja família cheguei a andar a apanhar cogumelos na sua casa de Kongsberg, dei-me conta de que, com frequência, procurava utilizar uma linguagem que ele supunha ser o modo corrente de falar, no dia a dia, em Portugal. Porque não tinha um comando capaz da nossa língua, tinha muita dificuldade em avaliar os contextos em que se podiam utilizar certas palavras e expressões. E isso dava lugar algumas confusões. Lembro-me de eu mesmo ficar um pouco embaraçado quando, um dia, lhe perguntei pela mulher, uma simpática checa que saíra de Praga em 1968, fugindo da invasão soviética. A sua resposta foi: "A gaja está boa". Vi-me em apuros para explicar delicadamente ao Jarnaes que não era adequado, mesmo na linguagem portuguesa mais informal, que ele se esforçava por mimetizar, referir-se dessa forma à sua própria mulher.

Um dia, apareceu na secção consular da embaixada uma voluptuosa criatura feminina, creio que norueguesa, para tratar de um qualquer assunto. Os poucos que estávamos por lá na ocasião (éramos mesmo muito poucos, na embaixada), entre os quais eu e o Jarnaes, olhámos para senhora com a devida admiração e com o apreço estético que considerámos adequado. Quando ela saiu, sorridentes, não retivemos alguns comentários elogiosos das formas e da beleza da utente. Imagino que a Luísa Ringstad se tenha divertido com a impressão que a senhora causara nos homens presentes. Tenho absoluta certeza que o José Manuel dos Santos, pessoa sempre muito dedicada a essa temática, tenha feito um comentário algarvio qualquer. Pela minha parte, terei dito qualquer coisa contida, para preservar a minha autoridade de chefe. Mas toda essa contenção se esvaiu, e houve uma imensa gargalhada coletiva, quando ouvimos o Jarnaes sair-se com uma frase que podia ter sido dita por alguém numa revista do Parque Mayer, nos anos 40 ou 50, em absoluto desligada do vocabulário comum dos anos 80 que então começavam: "Era uma lasca!"

Agora, nestes dias em que Alasca é uma palavra tão referida, veio a propósito a "lasca" que o Jarnaes foi buscar ao seu vocabulário português. Nunca mais esqueci, por via do Jarnaes, aquela "lasca" na terra do bacalhau. Aqui fica a historieta, com um abraço ao Jarnaes, à Luísa e ao José Manuel, por onde quer que andem.

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