sábado, agosto 09, 2025

"Espíritos zainas e marranicas"!


Naquela que em tempos idos foi a casa da minha avó paterna, em Viana do Castelo, um belo edifício frente à doca onde hoje se acolhe uma fundação musical, existia uma sala conhecida como o "escritório". Esse espaço, por quase dezena e meia de agostos, transformava-se sazonalmente no meu quarto de férias. 

Recordo-me que, à volta da improvisada cama, para além de uma pequena escrivaninha, havia três armários envidraçados, dentro dos quais reluziam belos livros encadernados, que tinham pertencido ao tio Túlio, que tinha morrido antes de eu nascer. Desde então, Túlio da Mota, de seu nome mais completo, passou a ser para mim um membro da família envolto em algum mistério.

O tio Túlio fora casado com a minha tia Regina, irmã do meu pai, pessoa de quem eu gostava bastante, que havia sido figura marcante da minha infância e juventude, e que morreu já nos anos 90 do século passado. Tenho uma vaga ideia de ter ouvido dizer que o tio Túlio era bastante mais velho do que a minha tia e que era viúvo quando com ela casou.

A figura severa desse misterioso tio Túlio olhou-me, por anos, da parede, de uma fotografia em que ele aparecia com ar grave, vestido com uma farda, que eu imaginava cinzenta, de tenente da Cruz Vermelha. Ao lado, num outro caixilho, tilintavam as suas condecorações, que, em pequeno, eu me divertia em fazer chocalhar. 

Soube sempre muito pouco sobre o meu tio Túlio. Hoje, inesperadamente, soube um pouco mais.

Quando, por curiosidade, fazia sobre ele uma busca no Google, vim a encontrar, numa edição da revista cultural municipal de Vila Real, a "Tellus", a informação de que o meu tio Túlio tinha tido um papel destacado em Vila Real, durante a "pneumónica", a "gripe espanhola", em 1918 e 1919, como "tenente-comissário da Cruz Vermelha em serviço na nossa terra". 

A revista recupera uma entrevista dada por ele a "O Vila-Realense", um jornal local muito importante à época. O trabalho do tenente Túlio da Mota, nesse tempo difícil e trágico, é ali altamente elogiado. Para além da curiosidade - que praticamente só a mim interessa - desse meu tio ter estado destacado na terra onde nasci, Vila Real, e depois ter vivido e morrido na minha segunda terra, Viana do Castelo, apetece-me recuperar esta "pérola" que encontrei numa das resposta que deu na entrevista. Era a contestação a uma acusação de que o hospital de Vila Real estaria a dar alta aos "griposos" antes destes estarem totalmente a salvo da doença:

"Assevero-lhe que nenhuma pessoa honesta e séria é capaz de propalar tão miserável falsidade. Uma tal atoarda só pode conceber-se em espíritos zainas e marranicas, manifestamente rebeldes a tudo que seja verdadeiro, boatando e blaguando sempre, consoante é próprio de quem vive e medra desocupado". 

Bela resposta!

O tio Túlio poderia talvez ficar contente se soubesse que este seu sobrinho é hoje, lá na Vila Real onde ele ajudou a salvar gente, o feliz proprietário de uma das preciosidades daquela biblioteca que rodeava os sonhos de uma infância feliz de férias em Viana: a coleção completa dos volumes da "Ilustração Portuguesa", encadernada a couro, com "ferros" dourados, onde brilha o seu "ex-libris".

E fico a dever para sempre ao tio Túlio os preciosos "espíritos zainas e marranicas"...

7 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

G'anda resposta!

PS: Os entusiastas da formas ortográficas arcaicas vão adorar esse recorte de jornal, nessa altura essa escrita também já estava na obsolescência.

João Cabral disse...

Acho que é preciso um dicionário para ler esta publicação. E mesmo assim, acho que ficarei na mesma.

João Cabral disse...

Formas ortográficas arcaicas... De repente lembrei-me do inglês e do francês, será que eles são mais atrasados porque não mudam a forma como escrevem?

ematejoca disse...

Gostei de conhecer os preciosos “espíritos zainas e marranicas” do tio Túlio.
Não sou entusiasta de formas ortográficas do tempo dos meus antepassados, mesmo assim, li o recorte do jornal sem precisar de dicionário e sem qualquer dificuldade.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

João Cabral,
Não misture alhos com bugalhos.

sts disse...

Pois eu não preciso de dicionário nenhum para ler Português.

João Cabral disse...

Exacto, é por isso mesmo que designar uma ortografia como arcaica não tem nenhum sentido.

Pousio

Os comentários a este blogue andam muito agitados. Em lugar de ter de os selecionar, acho mais avisado suspender a sua aceitação. Até ver.