Foi nos anos 70. Estava sozinho na minha sala de trabalho, no MNE. Os restantes colegas haviam já saído para o almoço.
O telefone tocou. A voz masculina era de alguém jovem. O tom era algo agreste, sem vontade de expressar um mínimo de cortesia. O pedido feito era relativamente simples de satisfazer: fornecer o número de telefone de casa de um determinado embaixador português, no estrangeiro.
Estranhei o facto de a pessoa ter ligado exatamente para o serviço onde eu estava colocado, embora nós nos ocupássemos das relações económicas com a área regional onde a embaixada se situava. Porém, as telefonistas ou o serviço de pessoal do MNE seriam as entidades mais indicadas para dar aquela informação. Referi isso ao meu interlocutor, até porque não estava a apreciar a forma pouco delicada como ele se me dirigia, mas igualmente porque os números de telefone das residências dos embaixadores não eram públicos, pelo que a regra era não serem indicados, salvo em circunstâncias justificadas.
- Sou filho do embaixador. Ou você me quer dar o número do telefone ou não quer!
Voltei a não apreciar o tom mas, porque conhecia o pai, um homem amável e muito cordial, fui procurar o número. Ditei-o, o filho do embaixador repetiu-o e desligou o telefone, sem agradecer. Imagino que terei ficado furioso, mas logo esqueci o assunto.
No dia seguinte, à conversa com colegas, um deles disse-me:
- Já sabes do filho do embaixador "fulano"? Suicidou-se, ontem.
- A que horas? - perguntei, para legítimo espanto de todos, intrigados com a minha especiosa curiosidade.
- Parece que foi a meio da tarde.
Desde esse dia, procuro recordar a voz desse rapaz, que vivia sozinho em Portugal. Devo ter sido das últimas pessoas com quem ele falou. Terá chegado a contactar o pai? Nunca tive coragem de lhe perguntar e agora é tarde, porque também ele já desapareceu há muito, aliás de uma forma com o seu quê de trágico.
A condição diplomática introduz, às vezes, fortes tensões nas famílias, fruto de separações a que obriga, dos isolamentos que provoca e dos desequilíbrios que potencia. A instável vida dos diplomatas está longe de ser o mar de rosas que alguns, de fora, mitificam.