terça-feira, março 20, 2018

O peso do tempo

Hoje, numa consulta de rotina, o médico especialista que visitei informou-me de que, de acordo com os seus ficheiros (que coincidem com a minha memória), eu havia recorrido aos seus serviços, pela primeira vez, em 1978. 40 anos! É obra! Até ver, médico e paciente encontram-se bem...

Na conversa, fez-me contudo notar que a minha condição física se tinha alterado significativamente desde então. Como sou hipocondríaco, quis tirar a limpo o que ele pretendia dizer com isso: “É simples! Tem mais dez quilos do que então tinha...”

segunda-feira, março 19, 2018

António Champalimaud


António Champalimaud foi uma figura muito importante no mundo empresarial português do século passado. Com fortes interesses nas colónias e em Portugal, construíu o seu próprio “império” industrial e financeiro, numa luta de afirmação que nem sempre foi cómoda para o regime de então. Quem o conheceu fala do seu mau feitio e de uma atitude permanentemente marcada por alguma aspereza comportamental. O 25 de abril viria a trocar-lhe as voltas, obrigando-o a recomeçar no Brasil a vida empresarial. Mais tarde, como sucedeu com outros grupos capitalistas nacionais, foi-lhe dada a possibilidade de retomar posições nos seus antigos interesses, na privatização de muito do que a Revolução tinha nacionalizado.

No final da vida, António Champalimaud surpreendeu Leonor Beleza, ao confiar-lhe a aplicação, numa fundação que agora leva o seu nome, de uma muito elevada quantia. Em relativamente poucos anos, com a ajuda de Daniel Proença de Carvalho, foi erguida uma obra notabilíssima, que hoje é um centro de referência na luta contra o cancro. Uma obra que orgulha e prestigia o país.

Se fosse vivo, António Champalimaud faria hoje 100 anos. Faz parte da História deste país e, com a sua Fundação, passou a fazer parte do nosso futuro coletivo.

domingo, março 18, 2018

Fechem as embaixadas!





“Não vale a pena tentar explicar, está criado na imprensa um ambiente adverso contra os diplomatas”, foi o que ouvi de antigos e atuais colegas, quando me propus escrever este texto, aproveitando a simpática abertura do CM, a propósito do artigo aqui publicado no passado dia 12, que tinha por título “Diplomatas ganham mais do que Marcelo”. Mas eu sou teimoso.

Desde logo, talvez nos devêssemos interrogar por que razão, se efetivamente há um “escândalo”, o Presidente da República e o Governo não atuam para lhe pôr cobro. Ou será porque, afinal, não há escândalo nenhum? Posso explicar, se o eventual leitor estiver de boa fé e disponível para ler para além dos títulos.

Comecemos por Portugal, embora essa não tenha sido a questão central do artigo do CM. Um diplomata português recebe, ao longo da sua carreira, um salário próximo de um qualquer outro técnico do Estado, embora a sua entrada na profissão o obrigue àquele que é, sem a menor dúvidas, o mais exigente concurso de toda a nossa Administração Pública. Aliás, acabam de ser recrutados novos diplomatas, depois de provas que se estenderam por quase um ano e para as quais se inscreveram 1800 candidatos. Entraram… 30! 

A carreira é longa e, nos casos escassíssimos dos diplomatas que conseguem atingir o seu topo, ao final de 40 anos, o máximo que podem conseguir vir a receber serão 4.362,00 euros ilíquidos - para valores de 5.011,00 para os militares, 5.401,00 para os professores universitários, 5.664,00 para os médicos e 6.130,00 para os magistrados. Se o leitor tiver uma explicação para estas disparidades, gostaria de conhecê-las.

Na situação de reforma, no seu regresso a Portugal, não conheço nenhum embaixador, mesmo no topo da sua carreira, que receba um montante líquido mensal que atinja os 3.000,00 euros. E alguns desses embaixadores de topo recebem bem menos. Imagino que os leitores não saibam. E que até não acreditem. Mas é pura verdade.

Mesmo assim, dirão alguns, não é mau. Repito: estou a falar dos lugares mais elevados da carreira, atingidos por muito poucos. Uma carreira que, no total, não chega a 400 pessoas, num Ministério que gasta bem menos de 1% do OGE. 

Talvez o leitor deva saber que, se acaso um diplomata for casado, o cônjuge terá tido, provavelmente, de abandonar o seu emprego para o poder acompanhar nas longas permanências no estrangeiro. O que significa que, quando a carreira do diplomata chegar ao fim, apenas levará para casa uma única reforma e o seu cônjuge ficará numa total dependência. Sabiam que isto acontece muitas vezes? Tem já havido situações dramáticas de viúvas de diplomatas, vivendo em condições de grande dificuldade.

Mas falemos do estrangeiro, onde os montantes recebidos levantaram o tal “escândalo”. 

Começaria por lembrar que, quando é colocado no estrangeiro, o diplomata não deixa de ter necessidade de manter uma casa em Lisboa. E de a continuar a pagar ao banco. Depois, no posto onde for colocado, salvo se for embaixador, vai ter que alugar uma nova casa, aos preços de arrendamento locais, num mercado para expatriados geralmente bastante caro. Recebe, naturalmente, um abono específico de ajuda para tal fim. Os embaixadores, claro, não recebem esse abono.

O diplomata representa o seu país. No estrangeiro, tem obrigatoriamente de convidar pessoas, para casa ou para restaurantes - colegas de outras embaixadas, figuras locais, portugueses de passagem. Tem de fazer aquilo a que se chama “representação”, essencial para a sua atividade, e, por lei, deve explicar detalhadamente como e por que gastou um montante que, para esse fim, lhe foi destinado. 

Finalmente, se tiver filhos, tem de os colocar em escolas internacionais, mais caras que as restantes, por forma a permitir que, nas sucessivas transferências, haja a possibilidade de prosseguimento dos estudos. O Estado comparticipa naturalmente alguma coisa para esta despesa obrigatória e excecional.

O tal montante “escandaloso” atribuído ao diplomata é, assim, o somatório de tudo isso: do seu salário de base, do subsídio para aluguer de casa (que raramente cobre a totalidade da renda), do montante para representação social (repito, que tem de justificar caso-a-caso) e da ajuda às despesas de educação dos filhos (também parcial face às despesas). 

Se o leitor, o leitor de boa fé, chegou a esta parte do texto merece também que lhe seja explicado que esta é uma carreira que implica sucessivas mudanças de país, às vezes vivendo em cidades simpáticas, outras vezes em lugares insalubres e perigosos, por razões de saúde ou insegurança. Não existe, na Administração Pública portuguesa nenhuma profissão que obrigue a tão drásticas mudanças de vida, de climas, de continentes, a tão grande instabilidade das famílias, todos os quatro ou cinco anos. 

É talvez por saber muito bem tudo isto que o “Marcelo”, referido no título “Diplomatas ganham mais do que Marcelo”, não se cansa de elogiar fortemente o trabalho desta carreira de servidores do Estado, como também o fazem muitos empresários e portugueses espalhados pelo mundo. 

Então, leitor? Fecham-se as embaixadas?

(Texto publicado no “Correio da Manhã”)

Aos domingos


Lembrei-me ao passar por lá, há pouco. Exatamente no local onde fui agredido, por uma primeira e única vez, pela polícia da ditadura (sou um “antifascista” sem história de repressão: foi uma simples bastonada num ombro, que nem uma “negra” deixou), no funeral de Ribeiro Santos, nasceu agora um “Subway”. É no largo com o nome desse estudante, assassinado por um “pide”, em 1972, aqui em Lisboa.

Mas o que é que isso tem de notável? É porque estamos na madrugada de domingo e, em todas essas madrugadas de sábado tardio e domingo a despontar, em Londres, no início dos anos 90, aí pela uma da manhã, eu saía de casa e ia invariavelmente a uma loja da “Subway”, perto da estação de metro de Gloucester Road. Comprava uma braçada de todos os semanários (já) de domingo, acabadinhos de chegar para venda: “Sunday Times”, “Independent on Sunday”, “Observer” e “Sunday Telegraph”. E, sempre, uma bela baguette de pão francês, crocante, acabada de sair do forno. O indiano de turbante que me vendia tudo aquilo olhava-me com um sorriso divertido, estranhando os meus gostos (cumulativos) de imprensa.

Regressava deliciado a casa, sacava do frigorífico uma cerveja, e ali ficava eu “na engorda”, com uma pilha de quilos de jornais, a ouvir música e a ler pela noite dentro, no andar de baixo da minha casa em Elvaston Place. Tenho uma memória boa das noites desses dias.

A imprensa dominical britânica era muito interessante, viva, com “caixas” e extraordinários comentários, numa bela escrita. A vida política local era então movimentadíssima, com Thatcher em declínio, Heseltine e Major à espreita, o “Labour” de Kinnock e depois de John Smith a tentarem a sua sorte no pós “block vote”, que só viria a sorrir anos mais tarde a Tony Blair, acomodado que foi Gordon Brown, com o liberais-democratas de Paddy Ashdown no seu eterno caminho das pedras. E havia o Iraque, e a Bósnia em chamas, e o IRA, com Adams e McGuiness por detrás, a pôr bombas, e a Escócia a pedir ”devolution” e Joe Bossano a berrar em Gibraltar. E a “bloody” Europa, com o odiado Delors, a guerra dos “opt out”. Uma festa! 

Passado o tempo do “respeitinho” a Buckingham, a contenção informativa foi-se diluindo e a imprensa - particularmente a de domingo - “soltou-se” face à família real, começou a tratar das escapadas de Diana, das gaffes de Fergie e, finalmente, dos amores de Charles e Camilla. Foi muito curioso ver essa mesma imprensa hebdomadária - a que correspondiam, respetivamente, na ordem atrás mencionada, nos dias normais de semana, o “The Times”, o “The Independent”, o “The Guardian” e o “The Daily Telegraph” - começar a posicionar-se, no estilo e na ousadia jornalística, já um pouco entre os tablóides e o estilo mais sóbrio dos “jornais-mãe”. Muito iria mudar, nos anos seguintes, nesse mundo em crise dos jornais de papel.

O nosso “Subway” de Santos nem deve ter o “Expresso”, ou mesmo o clandestino “O Sol”. Mas, verdade seja, a julgar pelas sondagens, com isto por cá está transformado numa pasmaceira política, só animada pelo inacreditável grupo de que Rui Rio se rodeou, para que é que são precisos jornais?

sábado, março 17, 2018

Ó vizinha!



Há um belo e muito lisboeta hábito que é chamar ao vizinho ... “vizinho”! Esta prática era e é muito comum nos bairros populares, mas aquele onde eu vivo tem pouco dessa qualidade. Com escassas embora magníficas exceções, a gente que vive nas minhas vizinhanças é, em geral, distante, não se cumprimenta entre si e tem um limitado sentido de solidariedade gregária. Pelo contrário, noto que algumas dessas pessoas, à medida que o tempo lhes foi entrando na vida, se tornaram mais azedas, mais trombudas e visivelmente menos amáveis. Que se há-de fazer?!

Imediatamente ao lado da porta de uma garagem, há um espaço que, nas mais de duas décadas em que por aqui vivo, foi sempre um lugar de estacionamento. Quem quer que ali coloque um carro, não prejudica nunca ninguém. Quando a EMEL, há meses, marcou a zona, esse espaço adquiriu o estatuto de zona “cinzenta”. Seria usável? As pessoas continuaram a colocar lá os carros, sem o memor problema, naturalmente desde que pagassem o estacionamento ou tivessem selo de residente. Já nos bastava a EMEL e um parque diplomático nos terem privado de uma boa dúzia de lugares...

Há semanas, de repente, mas só para mim, as coisas mudaram. Coloquei lá um carro e ele foi bloqueado e rebocado. Paguei a multa. Nos dias seguintes, vi que toda a gente voltou a ali estacionar. Pensei que tivesse sido um infeliz acaso. Por lapso, o meu carro voltou a estar lá umas horas e... surgiu de novo bloqueado. Chamei a EMEL e paguei nova multa.

Na conversa com o homem da EMEL, ficámos a saber: trata-se uma vizinha que telefonou e se queixou de que aquele espaço não é para estacionamento. Terá descoberto isso agora, depois de décadas. O funcionário da EMEL, que reconhece a absoluta inoquidade do uso do lugar, terá interrogado por que razão só se queixava da presença do meu carro, dado que nunca isso acontece aos muitos outros que por lá param. A mulher não o esclareceu sobre esta sanha persecutória, personalizada em mim. O homem da EMEL comentou-nos: “será alguma coisa política?” 

Nã sei, nem quero saber, nem sequer quero conhecer a cara da ácida mulher que, pelos vistos, me “tomou de ponta”. Até para não ter de lhe chamar outras coisas, para além de “vizinha”...

Como as cerejas...


O “Betanzos”, nome de uma simpática vilória da Galiza, é também o nome de um barco que esteve encalhado até há dias junto ao Bugio lisboeta. Agora, resgatado do problema, regressa à sua viagem para Marrocos, com a sua carga de ... areia! Areia para Marrocos? É verdade! É assim a modos como mandar migas para Elvas...

A areia a viajar entre países faz parte de uma das historietas que sempre ouvi na minha família. 

Era o episódio sobre um fulano que, todas as manhãs, se apresentava numa fronteira, de bicicleta, com um saco de areia às costas. Os guardas fronteiriços faziam sempre uma vistoria muito cuidada ao saco, na expetativa de aí encontrarem algum produto de contrabando. Mas nada! Sempre e só areia. E, ao final do dia, lá regressava o tipo, sem o saco, com a cena a repetir-se no dia seguinte.

Terão sido anos a fio nesta saga. Até que, um dia, um dos guardas fronteiriços se reformou e decidiu tentar pôr fim ao mistério que, por tanto tempo, o assaltava. Falou com o misterioso transportador de areia e, garantindo-lhe segredo absoluto, perguntou-lhe o que é que aquilo significava, por que diabo levava ele, dia após dia, um saco de areia para o outro lado da fronteira.

O homem, garantido no seu segredo, explicou. E era muito simples. O saco de areia servia apenas para distrair as atenções. Ele contrabandeava, na realidade, bicicletas. Levava de manhã uma bicicleta velha, que já nada valia, e trazia, à noite, do outro país, uma bicicleta nova, “em folha”, que vendia com grande lucro.

Isto (não) veio a propósito da areia do Betanzos. Porquê? Sei lá! Isto é como as cerejas...

sexta-feira, março 16, 2018

"Um Português brasileiro"

Faria hoje 100 anos Valentim dos Santos Diniz, um cidadão português a quem, em 2009, dediquei, no Brasil, um artigo, sob o título em epígrafe, no "Mundo Português" onde refleti um pouco sobre a comunidade luso-brasileira. Aqui o deixo reproduzido, pro memoria:

"Com a morte de Valentim dos Santos Diniz como que se atenua um pouco a imagem daquilo que Portugal representou para a formação do Brasil, de tudo quanto a matriz lusa contribuiu para marcar a identidade deste país.

Nestes tempos em que dom João e a sua corte por aqui são revisitados com curiosidade, o desaparecimento de um dos últimos grandes patriarcas portugueses no Brasil é talvez um momento adequado para reflectirmos um pouco sobre o que Portugal aqui ainda representa, para além da retórica das caravelas que pontua os discursos nas solenidades.

Passou já algum tempo desde o período áureo em que a comunidade portuguesa tinha uma forte expressão no Brasil – económica, social e até política.

Em particular no Rio de Janeiro e em S. Paulo, personalidades e instituições cuidaram sempre em manter bem alto o orgulho de terem feito parte de gerações que aqui construíram o seu futuro e que, simultaneamente, aqui construíram o seu próprio país.

Com a mudança dos fluxos migratórios portugueses para o espaço europeu, no final dos anos 60, o Brasil deixou de ser o destino prioritário de quantos, em Portugal, recusavam a modorra de uma sociedade fechada e partiam à busca de melhor sorte.

A teimosa ilusão colonial do Estado Novo fez mesmo com que fosse estimulada a migração para a África, que viria a provar-se muitas vezes sem futuro. Foi um erro que alguns pagariam em meados da década seguinte, tendo de sair à pressa de sociedades em convulsão política e social. O Brasil voltou então a ser, para muitos, o porto de abrigo seguro, como o foi para quantos então se sentiram ameaçados pela Revolução dos Cravos.

Essa era já, porém, uma imigração algo diferente da que, durante décadas, ajudara a construir a sociedade brasileira, lado a lado com outras nacionalidades que geraram o “melting pot” da brasilidade contemporânea.

Durante muitas décadas, das aldeias do Portugal profundo, partiram muitos jovens simples à procura do direito à esperança. Os “Brasis”, como a memória portuguesa celebra as Pasárgas de muitas dessas gerações, eram a terra prometida onde tudo era possível, para quem quisesse, com trabalho árduo, deitar a mão ao destino.

Para além da caricatura que o marcou, que sempre por aqui foi uma espécie de humor amargo que o descendente do colonizador originário teve de suportar com esforçada bonomia, creio patente que o imigrante português criou no Brasil uma imagem geral de labor e seriedade, de uma forma de estar na vida que caracteriza aquilo que se viria a decantar como o conceito de pessoa de bem.

Valentim dos Santos Diniz é um bom expoente dessa métrica pela qual se medem os homens de carácter. Empenhado, trabalhador e com uma seriedade à prova de bala, construiu um império de negócio, empregou milhares, ganhou e deu a ganhar dinheiro, foi um notável exemplo de sucesso com seriedade. Foi brasileiro na obra que erigiu, sendo sempre português na alma que estava por detrás desse empreendimento, na saudade da sua Beira natal e na sua crença num certo Portugal.

Encontrei-o algumas vezes, desde que cheguei ao Brasil. Pude expressar-lhe a minha admiração por tudo quanto ele representava para a memória da presença portuguesa neste país. Recordo-me de lhe ter dito que, como embaixador de Portugal, só esperava que os nossos compatriotas que agora iam aportando ao Brasil, com outras motivações e expectativas de vida, pudessem continuar a ser dignos da imagem de seriedade e respeito que os anteriores imigrantes portugueses haviam sabido construir e fixar por aqui.

Valentim dos Santos Diniz foi a prova mais concreta de que a melhor maneira de ser um bom português no Brasil é assumir este país em pleno, é ser e afirmar-se como um leal cidadão brasileiro."

A novela americana


Não se pode dizer que a demissão do chefe da diplomacia dos EUA, Rex Tillerson, tenha constituído uma grande surpresa. Escolhido por ser um nome forte da indústria e uma boa “ponte” para a Rússia de Putin, sabia-se que o antigo CEO da Exxon nunca havia criado com o presidente Trump uma relação de confiança. Tillerson, que era hierarquicamente o primeiro dos membros do gabinete ministerial, constituía um peso demasiado independente para um presidente que gosta de funcionar rodeado de “yes-men”, que detesta quem ponha reticências ao simplismo das suas ideias e à espontaneidade irresponsável dos seus “tweets”. Trump necessitou dele para credibilizar inicialmente a sua equipa, mas sente-se agora suficientemente à vontade para o dispensar.

Ao longo deste tumultuoso ano, várias foram as vezes em que transpiraram diferenças entre os dois homens. Trump ter-se-á cansado de alguém com quem não tinha a menor intimidade, que discordava abertamente de algumas das suas posições em temas internacionais e que, de forma clara, mantinha com ele alguma procurada distância. O facto de Tillerson nunca ter negado que chamou “imbecil” ao presidente num contexto privado, também não deve ter ajudado...

Tillerson saiu, entra Mike Pompeo, até agora diretor da CIA e conhecido membro do Tea Party, ala radical dentro do Partido Republicano. Alguém que tem um historial de ideias confrontacionistas, que se afigura menos adequado a quem vai ter por missão dialogar pelo mundo em nome da América. Mas este é talvez o perfil que, nesta fase, Trump deseja ao seu lado.

Nos meios internacionais, estava criada, ao longo dos últimos meses, a convicção de que, à volta de Trump, independentemente da ciclotímica estrutura, dia-a-dia mutante, da Casa Branca, permaneciam quatro personalidades que funcionavam como uma espécie de “rede de segurança”, compensatória da imprevisibilidade do presidente. E o mundo respirava de alívio por assim ser.

Uma dessas figuras era claramente Tillerson, sendo as restantes militares: o secretário de Defesa, James Mattis, o chefe da Casa Civil, John Kelly, e o assessor para a Segurança Nacional, H. R. M Master. Crescem agora rumores sobre uma possível saída de McMaster, cujos conselhos parece irritarem Trump, falando-se para o substituir do nome do “falcão” John Bolton, antigo e controverso embaixador na ONU, na era George W. Bush. E, no tocante a Kelly, diz-se haver um crescente desagrado por parte de Trump - em especial depois daquele ter decidido retirar a acreditação de segurança ao seu genro. Só Mattis parece de pedra e cal, o que não deixará de ter a ver com o interesse de Trump de manter o melhor relacionamento possível com o setor militar – o único que ele parece respeitar, em particular se olharmos o que fez ao “State Department”, ao FBI e à própria CIA.

Esta coreografia de caras teria muito escassa importância, e seria reduzida a uma curiosidade  à escala americana, se dela não pudessem resultar consequências muito sérias para o mundo exterior. Há dossiês temáticos, como as “guerras” da política comercial ou a atitude face às alterações climáticas que impactam, de imediato, nos interesses dos amigos da América. Há temas vitais para a segurança global, como a articulação com a China ou o formato de relacionamento com a Rússia, bem como a forma de gerir a tensão com a Coreia do Norte ou a atitude perante o acordo nuclear com o Irão, que têm um potencial fortemente disruptor dos equilíbrios internacionais. 

Neste último caso, que Trump deixou já a entender ter sido uma divergência profunda mantida com Tillerson, há que temer que os EUA possam estar prestes a pôr em causa o compromisso laboriosamente conseguido com Teerão, com o apoio dos seus parceiros europeus. Mais do que isso: Trump pode vir a dar, por essa via, luz verde a que Israel faça um “preemptive strike” sobre as instalações nucleares iranianas, hoje sob vigilância da AIEA e, conjugadamente ou não, estimule a Arábia Saudita para titular uma aventura militar sunita contra esse seu comum inimigo. Imagina-se o que poderá ser o “day after” desse conflito.

O mundo está perigoso e o perigo tem um nome.

Regresso à Europa


O discurso que António Costa proferiu em Estrasburgo, somado ao de setembro, em Bruges, representa um momento importante na afirmação europeia de Portugal. O primeiro-ministro de um governo cuja sustentação parlamentar passa pelo apoio de dois partidos anti-europeístas deu uma prova insofismável da sua determinação em colocar de novo Portugal no coração da política europeia. E deixou claro que, não obstante essa aliança conjuntural no plano interno, não prescinde de ter as mãos livres para atuar com imaginação e audácia no quadro europeu. E isso são muito boas notícias para Portugal.

Há que reconhecer patéticas as vozes da oposição neste debate. O CDS europeu está hoje refém, e assim vai continuar, do radicalismo de Nuno Melo, com aquele estudado ar zangado, em busca dos adjetivos mais desagradáveis que consiga descortinar, no seu baralho de acrimónia lexical. Ao seu lado, Paulo Rangel, um homem que, quando quer, pensa bem e tem, a espaços, fogachos europeístas, parece ter já iniciado um percurso tático para a sua recandidatura a cabeça da lista PSD ao Parlamento europeu, o que o obriga a esforços artificiais de demarcação do governo. É em figuras como Carlos Moedas, no seu modo clarividente de olhar o projeto europeu, que hoje assentam as esperanças nessa área política. Rui Rio, se quiser retomar o caminho de um PSD europeísta, não deveria desprezar os conselhos do comissário europeu indicado por Portugal.

Portugal regressou à Europa. Depois de alguns anos de “silêncio” europeu, António Costa tem sabido colocar a voz portuguesa no lugar certo, em Bruxelas e em Estrasburgo. Ao reconhecimento do esforço macro-económico feito por Portugal, surpreendendo pela sua compatibilização com as reposições de rendimentos, somou-se a consagração de Mário Centeno na coordenação do euro. Para quem pensava que o primeiro-ministro português era apenas um pragmático à cata do vento dominante, o seu discurso revelou uma visão ousada dos interesses europeus – das exigências na governação do euro ao imperativo de novos recursos, passando por um conjunto coerente de opções sobre o futuro de certas políticas e sobre a necessidade de uma Europa “ética”.

O nosso país sempre ganhou quando, na Europa, defendeu perspetivas de aprofundamento e de reforço da integração. E quando colocou as suas credenciais europeias sobre a mesa, como António Guterres soube fazer, como António Costa agora fez, por exemplo, ao afirmar que Portugal estava disposto a aumentar a sua contribuição para o orçamento comunitário. 

O primeiro-ministro está, neste domínio, acompanhado, com toda a certeza, pelo presidente da República. Não sendo possível contar com o PCP e com o Bloco, com o radicalismo soberanista do CDS a fechar a porta a qualquer compromisso, que tem a dizer o novo PSD a tudo isto?

quinta-feira, março 15, 2018

Ai Brasil!


As estranhas condições em que teve lugar a morte da vereadora do Rio de Janeiro, atentas as tarefas de contestação da presença militar na cidade a que se dedicava, suscitam sérias interrogações.

O Brasil é uma das maiores democracias do mundo. A imprensa é absolutamente livre, não há presos políticos, os órgãos constitucionais funcionam. Há quem conteste o modo de funcionamento do sistema político e judicial? Claro que sim, mas quem o faz fá-lo sempre com total liberdade. É isso uma democracia.

Por isso, porque a democracia brasileira tem de estar acima de toda a suspeita, e antes que renasçam por ali velhos fantasmas, é muito importante para o bom nome do Brasil que este assunto seja esclarecido com a maior brevidade.

Autónoma


Nos últimos dias tem-se falado por aí da Universidade Autónoma de Lisboa. Prolonguemos essa fala.

Durante quase dez meses, em 2017/2018, o Ministério dos Negócios Estrangeiros organizou um concurso para admissão de 30 novos diplomatas. Inscreveram-se inicialmente para esse concurso 1800 candidatos.

A Universidade Autónoma de Lisboa organizou um curso intensivo de preparação para esse concurso, a exemplo do que outras universidades também fizeram. Coube-me dirigi-lo, com a colaboração de um grupo selecionado de professores, que cobriam todo o espetro de matérias das diversas provas: de Português a Inglês e Francês, de Economia Política a Direito Internacional, de assuntos europeus a temas de segurança, etc. 

Cerca de 20 candidatos escolheram o curso ministrado pela Autónoma. E, desse número, foram admitidos três. Isto é: 10% dos candidatos admitidos pelo MNE foram preparados por nós. Como já no anterior concurso, há dois anos, havíamos tido o gosto de ajudar aquele que viria a ser então o primeiro classificado.

É muito bom ouvir boas notícias sobre a minha Universidade. Onde ainda hoje irei dar aulas de Diplomacia e Negociação Internacional, na excelente licenciatura de Relações Internacionais.

quarta-feira, março 14, 2018

Dietas

Aquele núncio apostólico, o embaixador da Santa Sé num determinado país, apesar de um comportamento irrepreensível, mantinha uma imagem exterior de “bon vivant”, que não se importava de deixar explorar. 

Um dia, entrou numa receção acompanhado por duas belas mulheres, uma de cada lado. Os amigos não tardaram em mandar-lhe umas “bocas”, conhecedores que eram do seu poder de encaixe. 

E ele revelou-se, com esta resposta: “O facto de ter de fazer dieta não impede ninguém, num restaurante, de poder ler e apreciar o menu”...

terça-feira, março 13, 2018

O papel do DN

Por razões que não vêm à liça, não vou aqui falar, como me apetecia, do papel que o “Diário de Notícias” representa, nos dias de hoje, no panorama mediático português.

Mas, como habitual ”consumidor” (pode dizer-se isto?) do jornal, acho que tenho o direito a perguntar: o papel em que o DN anda a ser impresso, nos dias que correm, é o quê? 

A gente pega naquilo, naquelas folhas já a caminhar para o leve cinza, com a consistência dos apertos de mão sebosos e sem garra, e pergunta-se: não há um papel decente onde imprimir o “diário da Moagem” (como lhe chamava Artur Portela Filho)? Não estou a pedir folhas de gramagem quase “almaço”, daquelas em que o fascistóide “A Rua” era impresso nos anos ”da brasa”, mas um papel consistente, que adira ao tato, em que o mudar a folha não nos dê a ideia de estar a enrolar um charro.

Eu sei que o “Le Monde” hebdomadário também nos chega naquele género desvirilizado de folhas, uma versão mixuruca e subdesenvolvida de papel bíblia, mas isso é para poder ser enviado pelo correio, um sistema de distribuição que, como alguns se recordarão, foi também utilizado em Portugal - quando por cá havia Correios! E ninguém hoje confia nos “nossos” Correios, nem para cartões de boas-festas, quanto mais para enviar o DN do dia! 

E o DN não é o “Le Monde”! Mudem-me esse papel, antes que todos nos tenhamos que perguntar qual é, afinal, o papel do DN na imprensa que aí anda.

A noite arménia



“Pede uma mesa no andar de cima, junto à janela. Já não está tempo para se jantar na esplanada”, foi o conselho que dei, pelo telefone, de Lisboa. 

Aquele meu colega chegaria a Yerevan, na Arménia, ido de uma bela cidade europeia, um dia antes de mim. Eu iria daqui. Foi há cinco anos. Ao tempo, eu era diretor-executivo do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa. Ambos intervínhamos numa determinada Conferência internacional. Combinámos jantar juntos no dia da minha chegada. Eu tinha-lhe recomendado um restaurante local.

“Como é que se pode saber, de fonte segura, onde jantar decentemente, lá em Yerevan? Se perguntarmos no hotel dizem-nos uma espelunca qualquer", tinha-se ele questionado.

“Onde se come quase sempre bem é no Ai Leoni. E não fica muito longe do nosso hotel”, respondi.

“Mas tu conheces Yerevan?”, surpreendeu-se ele.

“Conheço lá eu outra coisa! Marca uma mesa no Ai Leoni e vais ver que não te arrependes. O Bruno cozinha lindamente!"

O meu colega tomou nota e, com lógica, levou a minha sabedoria da restauração arménia à conta da minha consabida "mania" dos restaurantes e também dos tempos que eu tinha passado na OSCE - essa organização de segurança sedeada em Viena, cuja representação portuguesa eu tinha chefiado por alguns anos, e que tinha as confusões do Cáucaso, em particular a velha crise entre a Arménia e o Azerbaijão, por virtude do território do Nagorno-Karabakh, na sua agenda prioritária de interesses.

Dias depois, após umas viagens atribuladas, cada um ido do seu lado, lá nos encontrámos no hotel de Yerevan. E, perto do jantar, partimos, com um amigo francês comum, para o “Ai Leoni”, onde a nossa mesa estava devidamente reservada.

Não era muito longe, aí uns dez minutos a pé. Fui indicando o trajeto. “Conheces bem isto”, comentavam, à medida que eu apontava a direção do restaurante, pelas ruas da capital arménia. Eu servia de cicerone, até para as estátuas que íamos cruzando.

Entrámos finalmente no restaurante, a nossa mesa lá estava, chegaram os menus. O nosso amigo comum, francês, pediu conselho: “O que é que recomendas?” Desfiz então o embuste: “Eu? Sei lá! É a primeira vez que venho à Arménia!” 

E, entre gargalhadas, expliquei. Tinha descoberto o restaurante num guia que comprara em Londres. Depois, na internet, vi as fotografias do lugar, bem como o nome do “chef”. Com o mapa da cidade, identifiquei (e decorei) facilmente o trajeto, "apimentando" a história com uns monumentos que também vinham assinalados no guia. 

Contei-lhes então a história de um jornalista americano que tinha escrito um guia sobre um país da América Central, sem nunca lá ter posto os pés. Nos dias de hoje, tudo é possível!

segunda-feira, março 12, 2018


Gastronomia & escritas



Foi em 2010 que a revista “Sábado” me desafiou, através de Edgardo Pacheco, para escrevinhar um conjunto de textos de análise da oferta gastronómica em alguns restaurantes portugueses. Fazia-o sob pseudónimo, tal como o haviam feito, cada um durante um semestre, outros companheiros daquela “aventura”: Daniel Proença de Carvalho, Paula Teixeira da Cruz, Miguel Esteves Cardoso e Ruben de Carvalho. A tarefa ficou concluída no ano seguinte, precisamente como ficara acordado desde o primeiro dia.

Anos mais tarde, regressado de vez a Portugal, a revista “Epicur”, na sua nova versão, publicada quatro vezes por ano, desafiou-me para uma aventura idêntica, através de Mário Rui de Castro.

Também a revista “Evasões”, dirigida por Catarina Carvalho, publicada semanalmente com o “Diário de Notícias” e o “Jornal de Notícias”, me fez idêntico convite.

Nos três casos que referi, as crónicas eram pagas, bem como o custeio de uma refeição para duas pessoas. 

Nenhuma das publicações - e isto é pura verdade - me deu alguma vez a menor dica sobre restaurantes que desejassem que eu escrutinasse. Todas as escolhas foram sempre minhas, com completa liberdade.

Como referi, o meu trabalho para a “Sábado” acabou em 2011. Chegou agora a hora de pôr um ponto final nas outras duas colaborações que mantinha. 

Embora não fosse uma atividade muito intensa, escrever sobre 16 restaurantes diferentes em cada ano, procurando ser rigoroso e justo nas apreciações, constituía já uma tarefa algo pesada. Tivémos assim dois “divórcios amigáveis”, porque com bons amigos fiquei sempre em todas as revistas com as quais colaborei.

Aqui entre nós, devo dizer que sinto uma sensação de recuperação de alguma “liberdade”. Já não vou precisar de fotografar com o iPhone os menus dos restaurantes, pedir à pessoa que partilha a refeição comigo para pedir coisas diferentes das minhas, estar atento e anotar os pormenores do ambiente e do serviço, escrevinhar umas notas para não me esquecer do que pensei de certos pratos. Isto é, vou comer com total à vontade, sem a obrigação de escrita no “day after”. (E também, é verdade, sem me pagarem as refeições e os escritos - mas a liberdade tem o seu preço!)

Significa isto que vou deixar de mandar “dicas” sobre restaurantes? Longe disso! O meu blogue “Ponto Come”, esse lugar errático onde, há bem mais de uma década, tenho deixado notas sobre esta coisa importante que é saber onde se pode comer com satisfação, por aí continuará. Não terá a regularidade do “Duas ou Três Coisas”, mas posso assegurar que continuará a ser “alimentado” - destino natural de um blogue de gastronomia..

Elogio do protocolo


Faz parte de uma certa forma de olhar a vida ter, para com as regras do protocolo, uma atitude de sobranceria e até de algum escárnio. Para essas pessoas, o protocolo não é mais do que um conjunto de picuinhices a que alguns snobes dão importância, mas que, no fundo, são perfeitamente dispensáveis. Quem assim pensa está fortemente errado e, confesso, já deixei de perder com eles o meu tempo e o meu "latim".

Com a profissão que tive por décadas, aprendi que essa "liturgia" e esses rituais de entendimento constituem uma espécie de "código da estrada social" - um conjunto de regras, marcadas pela educação e pelo bom-senso, que facilitam a vida em sociedade e, muito em especial, no seio das organizações. No terreno oficial, uma evidência impõe-se: muitas vezes, o protocolo só se "nota" quando falha... Na vida privada, nomeadamente da empresas, a inobservância de um certo normativo básico pode criar constrangimentos, afetar a imagem dos interlocutores e gerar um ambiente desfavorável para um entendimento.

O protocolo pode variar de país para país, quer se trate do protocolo oficial do Estado, quer das regras, mais ou menos consuetudinárias, que regulam as relações sociais. Com o tempo, muitas dessas regras evoluem - e é importante estar atento a essa mesma evolução, caso contrário as pessoas e as instituições ficam presas a "coreografias" datadas e obsoletas. Mas aprendi que há um conjunto quase permanente e generalizado de modos de comportamento que, se forem observadas com um mínimo de atenção, nos servem um pouco por todo o mundo e são, em geral, bastantes resistentes às modas e ao tempo. No fundo, trata-se de regras de respeito pelos outros, de educação e de bom senso, que acabam por facilitar a vida de todos.

Isabel Amaral é, ao que julgo, a figura portuguesa que mais se tem dedicado a este assunto, fora do mundo oficial do Protocolo do Estado. Com uma diversificada experiência, que também passou já por áreas oficiais, coletou em livro, felizmente agora reeditado, essas suas notas e reflexões, feitas de uma decantação inteligente dessa multiplicidade de contactos e vivências.

"Imagem e Sucesso - guia de protocolo para pessoas e empresas" é um trabalho que eu recomendo francamente a quem tenha interesse ou responsabilidades nesta área. É um livro bem escrito, de leitura fácil, muito claro e com uma componente pedagógica forte.

Como sabe quem por aqui me lê, não é frequente eu recomendar livros, pelo que, quando o faço, é porque tenho para isso boas razões. Como é este caso.

domingo, março 11, 2018

Lembrando o Piorrilha


Marx faz 200 anos no dia 5 de maio. À sua sombra construiram-se belas utopias, tendo-o como pretexto fizeram-se algumas barbaridades. Marx acertou e ainda acerta em muitas coisas, enganou-se noutras. Nada afeta o facto de ter sido, como hoje um consenso de quem se dedica à história das ideias reconhece, uma das maiores figuras de sempre do pensamento económico. 

Como é que cheguei a Marx? Tarde, só aos 20 anos, de forma quase caricatural. Dele tenho (tive, porque já dei muito à biblioteca que acolhe os meus livros) tudo o que escreveu. De que só li parte, claro. Desisti a meio de “O Capital” (Fidel fez o mesmo) e entretive-me com as suas coisas bem mais simples. Fiz parte de uma geração que acompanhou os grande debates, como entre o “Marx jovem” e o outro, atulhei-me de bibliografia marxista e marxiana. Tive sempre uma imensa curiosidade pela personagem. Estive na casa onde nasceu, em Trier, visitei quase todos os locais onde viveu, no pub londrino que frequentava. E, claro, estive, bem cedo, no cemitério de Highgate, onde repousa, depois de ter colocado o mundo em reboliço. Tenho as suas biografias, conheço as histórias da família, sou um fã desse seu excelente “doctor Watson”, que se chamou Friedrich Engels.

Um dia, nos anos 70, a minha mãe veio de Vila Real conhecer uma casa que eu alugara, em Santo António dos Cavaleiros. Numa parede, colada num platex, estava uma imensa fotografia de Marx, que tinha comprado numa loja de Nova Iorque, em finais de 1972. “Então tens por aqui um retrato do Piorrilha?” Não percebi. Ela sabia que o retrato era de Karl Marx e sabia por que ali estava. Quem era o Piorrilha? Fiquei a saber, nesse instante: era um homem, com um imenso cabelo e barba, que, na infância dela, nos anos 20 do século passado, surgia pelas feiras, nas Pedras Salgadas, e que metia medo às pessoas. Pelos vistos eram parecidos. Ambos metiam medo. Marx ainda mete.

sábado, março 10, 2018

Ambições


Assunção Cristas, a quem a catastrófica (falta de) estratégia de Passos Coelho nas eleições autárquicas deu um conjuntural ”vento” na Câmara de Lisboa, diz que quer ser primeira-ministra e que o seu verdadeiro adversário é hoje António Costa. Está no seu pleno direito.

Em política, não existe ridículo. Para quem não saiba, o CDS continua, nos dias de hoje, nas sondagens para umas futuras eleições legislativas, abaixo do Bloco de Esquerda e do PCP, a anos-luz do PSD e, claro, sem conseguir sequer ver à distância o PS.

Se não vive em Lisboa, onde essas coisas são mais difíceis (mas não impossíveis) de medir, convido o leitor a olhar em volta e a inquirir, na sua terra, por onde anda e o que representa o CDS. É que esse partido, em termos práticos, significa muito pouco, a nível nacional. Basta atentar no facto de, nas últimas eleições autárquicas, o CDS, em 308 câmaras municipais existentes, ter obtido apenas 6 presidências, tendo, a nível nacional perdido votos e mandatos, face aos resultados de 2013 - um dado habilmente escondido.

O CDS não deixa, por essa razão, de ser historicamente um partido importante da nossa democracia. Há 44 anos, deu valiosa guardida institucional à direita tresmalhada, enquadrou democraticamente os retornados, foi sendo composto por quadros bem preparados, tem hoje alguns nomes de muita qualidade, foi cooptado (pelo PSD) para o governo, mas é ... o que é! 

Assunção Cristas quer ser primeira-ministra? Também o Sport Club de Vila Real ainda um dia há-de vencer as Champions!

sexta-feira, março 09, 2018

O título e o texto


O passado, hoje


Há dias, no parlamento, o CDS não se associou a um voto de pesar pela morte de Varela Gomes, um militar que combateu, de armas na mão, a ditadura salazarista. Imagino que o pretexto tenham sido as atitudes dessa figura, no período mais conturbado do pós 25 de abril. 

Alguma direita portuguesa passa o tempo a queixar-se de que a esquerda a acusa de colagem ao regime anterior mas, como se vê, perde ensejos preciosos para afastar esse estigma. Isso acontece tanto na ação política como na produção intelectual. Alguma nova historiografia edulcora os crimes do regime salazarista, carregando os tons, em contraponto ácido, nos malefícios da República que o antecedeu. O que esses historiadores dizem de Afonso Costa e correligionários não diverge muito da versão diabolizada que nos foi impingida pelos “historiadores” da ditadura. Depois, não se queixem! 

A eleição de Marcelo Rebelo de Sousa deixou alguma esperança de que, com o tempo, ele pudesse ajudar a direita portuguesa a sair desse seu complexado “guetto”. Nada era expectável de Cavaco Silva, por razões que escuso de desenvolver. Mas seria muito interessante que o segundo presidente civil oriundo da direita política usasse da sua autoridade para ajudar esse mesmo setor a distanciar-se do regime que vigorou até 1974.

Marcelo Rebelo de Sousa nasceu no seio de uma família do Estado Novo. O seu pai, governante com Salazar e Caetano, esteve, contudo, longe do perfil radical de algumas figuras desse tempo. Foi mesmo um governador colonial dotado de abertura de espírito e dimensão social na ação. O jovem Marcelo, ainda em ditadura, revelou-se moderadamente crítico do fechamento do regime, enquanto jornalista do “Expresso”. Mais de quatro décadas depois, o presidente Marcelo já teve gestos muito louváveis na denúncia de barbaridades coloniais e da escravatura.

Na morte de Varela Gomes, o presidente da República qualificou contudo o regime ditatorial com uma bizarra “trouvaille” semântica - uma “ditadura constitucionalizada”. O professor Marcelo prevaleceu sobre o chefe de Estado. Ora a ditadura foi “apenas” uma ditadura: com censura, polícia política, perseguições, prisões, torturas e mortes. 

Alguns dirão, em abono do presidente, que a personalidade de Varela Gomes não ajudava a uma generosidade no gesto. O militar foi um revoltoso no 25 de novembro e era defensor de um modelo de sociedade política muito diferente daquela em que hoje vivemos.

A dimensão das figuras de Estado mede-se precisamente pelo modo com sabem elevar-se acima das polémicas do passado. Esta foi, manifestamente, uma oportunidade perdida. Outras haverá. Esperemos o que o presidente dirá um dia ao país numa visita ao Aljube, a Peniche ou ao Tarrafal. 

quinta-feira, março 08, 2018

RTP


A RTP fez ontem 61 anos.

Desde há algum tempo, passei a integrar o Conselho Geral Independente (CGI) da empresa. Sou, como todos os outros cinco membros, inamovível até ao final do meu mandato de seis anos, salvo em circunstâncias muito excecionais. É o que a lei prevê, como forma de preservar a independência do órgão, procurando isentá-lo dos ciclos políticos.

Ao longo dos últimos meses, tenho acompanhado, com os meus colegas, a vida interna da RTP, tendo falado com todos os responsáveis da rádio e da televisão públicas, tomando conhecimento dos respetivos problemas e anseios. Foram algumas dezenas de horas de estudo de dossiês e de análise da situação interna da empresa.

(Quando se fala de RTP, há a tendência de se pensar apenas na televisão. Ora a RTP, que hoje já não é "Radiotelevisão portuguesa" mas sim "Rádio e Televisão de Portugal", abrange também importante realidade que vive sob a sigla RDP).

Executo esta tarefa “pro bono”, isto é, sem receber a menor compensação financeira. Aceitei o cargo por um mero dever cívico, pela importância que pessoalmente atribuo à necessidade de um serviço público de rádio e de televisão de qualidade e à possibilidade de, à medida dos meus conhecimentos e experiência profissional e de vida, poder para isso dar o meu contributo.

As funções do CGI são “simples”: nomear e exonerar as administrações da RTP e definir, através da fixação de “linhas estratégicas”, o quadro de referência do trabalho da administração para o seu triénio de mandato, velando, em permanência, pela sua execução e verificando, muito em particular, o modo como a televisão e a rádio públicas executam as obrigações de serviço público que decorrem do respetivo contrato de concessão.

Contrariamente ao que alguns possam pensar, não cabe ao CGI nomear, para além da administração, quaisquer outras pessoas no quadro diretor da empresa, nem, naturalmente, intervir na orientação dos programas ou da informação dos canais. 

O dia-a-dia da empresa é-nos relevante no seu todo - seja nos conteúdos, seja nos recursos humanos e financeiros, seja no equipamento - mas o CGI não está vocacionado para o “micro-management” da empresa, que cabe à sua administração, a qual responde perante ele. 

Ao final destes meses, em que passei a estar bastante mais atento às várias dimensões da RTP e da RDP, devo dizer que cheguei a uma conclusão clara: é notável o trabalho que vem sendo realizado pelos profissionais da empresa, em especial se atentarmos os meios de que dispõem e as muitas limitações que hoje afetam a funcionalidade da empresa. Que se impõe que sejam corrigidas, a bem da qualidade do seu "produto".

A minha experiência no CGI tem sido muito interessante. Seis pessoas com “background” muito diverso, oriundas de vários e diversificados setores da sociedade portuguesa, que respondem apenas perante o currículo que levou à sua seleção, sem a menor agenda para além do seu interesse em servirem o interesse público, decidem com uma total liberdade e independência, no quadro de um modelo de governação pouco comum.

As decisões do CGI, porque têm implicações fortes no espaço público, não são necessariamente consensuais, isto é, correm sempre o risco de serem lidas de modo diferenciado pelos múltiplos agentes que atuam nesse mesmo espaço público. É da lei da vida e assim tem acontecido - quer por parte de quantos se preocupam legitimamente com o futuro da RTP, quer no tocante aos detratores da empresa, mais ou menos vinculados a interesses que combatem o serviço público. 

Alguns desses agentes colocam também em causa a bondade do modelo de governação, em vigor desde há três anos, isto é, a legitimidade da própria existência do CGI. Cada um tem o direito de pensar o que entender. Essa é, contudo, uma questão que apenas compete a quem tem a responsabilidade de “desenhar” o quadro normativo e regulatório da RTP, isto é, os poderes públicos democráticos, em especial a Assembleia da República. O CGI limita-se a atuar no quadro legislativo que lhe foi criado e que o regula.

A RTP fez 61 anos. De Camilo de Mendonça, o seu primeiro presidente em 1957, a Gonçalo Reis, que atualmente preside ao seu Conselho de Administração, a RTP (e também a RDP e a sua antecessora Emissora Nacional) passou já por tempos muito diversos, alguns bem convulsos, grande parte deles extremados pela polarização político-partidária. Em tempos revolucionários, mas não só.

Tenho a desvantagem de olhar hoje a realidade da empresa sem grande distância, mas atrever-me-ia a dizer, à luz do que tenho ouvido, que raramente nela se viveu um tempo, como foram os últimos três anos, em que a empresa pôde funcionar com tão grande autonomia e a ausência de indevidas pressões externas. Se há um objetivo que julgo legítimo ter para o futuro esse será o de garantir que a RTP se mantém nessa mesma linha.

quarta-feira, março 07, 2018

Regresso ao passado


Já ali não entrava desde 1955. Como é que eu sei a data? É simples. Foi a primeira vez que vim a Lisboa, no “Foguete”, e fui, com o meu pai, ver um Portugal-Suécia. no Jamor, que o Google me diz que foi em 1955.

(O resultado não foi famoso: perdemos 6-2, com dois golos de José Águas a compensar os 6-0 que Costa Pereira “encaixou” logo na primeira parte. Ah! E jogámos com Matateu, para quem sabe quem foi. É claro que eu não recordo rigorosamente nada do jogo, a não ser, vagamente, o lugar do estádio em que estive).

Voltando à fotografia. Mostra a janela de canto de uma sala de um restaurante da moda, no Camões, aqui em Lisboa, onde hoje almocei. 

Como disse, a última vez que ali tinha entrado foi em 1955. Para uma consulta médica. Eu estava com icterícia. Fiquei “de molho” uns dez dias, em casa de uns primos, na Rua da Paz, entre bifes e um “Mecano” que me enchia os dias. Não faço ideia se a consulta foi naquele andar, se o ”Litrison” terá sido receitado (para o fígado era sempre “Litrison”, não era?) naquela mesma sala.

Mas por que diabo ele vem agora com esta não-história?, perguntará o leitor enfadado deste post. Porque isto são redes sociais, lugar geométrico de tudo aquilo que nos vem à mona e nos dá na veneta contar. E vão com muita sorte em eu ainda ter uma fotografia do dia cinzento. É que podia empanturrá-los com florzinhas ou pensamentos profundos de filósofos da auto-ajuda. Por isso, não se queixem, está bem?

(Nota para curiosos: uma das varandas que a fotografia mostra pertence àquele que é, porventura, o mais “secreto” clube privado de Lisboa. Estive lá há dias, como convidado, mas não posso dizer o nome, desculpem lá!)

O triângulo patético

Será que algum dia os portugueses terão possibilidade de se libertar do triângulo mediático obsessivo a que os noticiários televisivos reduzem o país: política, futebol e “o que corre mal”? 

Será que, afinal, não se passa mais nada neste nosso canto da Europa? 

Regresso em força do “whataboutism”

Já por aqui se falou do “whataboutism”, um conceito anglo-saxónico criado na Guerra Fria mas que, com o tempo, passou a merecer uma utilização bem mais alargada.

Em que consiste? É muito simples: alguém acusa alguém da prática de um determinado ato e este, ou uma pessoa por ele, vai logo buscar, como resposta, outros casos tidos por comparáveis (“and what about...?). A questão já nem é desmentir em absoluto o facto praticado. Tenta-se “absolvê-lo” com a invocação de outros casos de natureza equiparável, procurando com eles gerar um ambiente atenuante para o primeiro caso.

Em português, é quando, perante uma determinada acusação, surge o “Ai é? E então no caso do...?”. Mais linearmente: “Sou vigarista por ter feito isso? Mas tu não disseste nada no caso do...” É sempre uma resposta pobre e basicamente retaliatória, logo desonesta, como argumento. 

Perante uma acusação, a medida da gravidade de um ato deve ser encontrada nesse ato e não numa espécie de “jurisprudência” de delitos. 

Por estes dias, nesse mundo sinistro do pessoal do futebol, o “whataboutism” está a ter horas gloriosas.

terça-feira, março 06, 2018

A asa do Letra



Entre nós, o aeromodelismo foi, por muitos anos, uma atividade com bastantes cultores. Mas não faço ideia como é que as coisas de passam nos dias de hoje. Em Vila Real, recordo-me de que os “furiosos” da construção desses pequenos aviões de madeira, forrados a papel muito fino, trabalhavam numa sala à esquerda de quem entrava no edifício da Mocidade Portuguesa, onde é hoje o Arquivo Distrital, ao fundo da rampa do Calvário. 

O cheiro das longarinas de madeira de balsa, somado com o das colas, ainda vive arquivado na minha memória odorífera. Esse era um trabalho que implicava grande persistência e atenção. Recordo-me de os ver serrar a madeira com instrumentos muito delicados, com precisão milimétrica, tudo depois afinado com lixa e limas muito bem ordenadas, com as delicadas peças a serem depois preservadas com muito cuidado, para a montagem final, feita de encaixes rigorosos, com um total equilíbrio do modelo.

Por um tempo, até porque vivia nas imediações, também andei por lá, fiz uns ensaios, mas, rapidamente, desisti: a precisão, a paciência, o tempo, o cuidado necessário a este tipo de trabalho não “rimava” com a minha proverbial e eterna inconstância. Tinha “mais que fazer”, nessas horas que teria de alocar àquela tarefa, para fazer qualquer coisa de jeito. Mas, devo confessar, senti sempre uma grande admiração por quantos se dedicavam ao aeromodelismo, com uma pena eterna por não ser um deles. (Há duas outras atividades que lamento nunca ter tentado: radioamadorismo e encadernação - fica feita a confissão).

Um dia do final dos anos sessenta, embarquei na “carreira” do Cabanelas, em direção ao Porto, cuja universidade frequentava. Já sentado, vi entrar um colega de liceu, o Letra, com um avantajado avião na mão, fruto do seu trabalho de aeromodelismo, lá pela Mocidade. Ia, com toda a certeza, a caminho de uma competição. Os olhos de todos os passageiros convergiam na “aeronave”, de cores berrantes, que, com todo o cuidado, o Letra fez “voar” com a mão sobre os bancos, até chegar ao seu lugar. Os autocarros não eram, à época, muito confortáveis nem espaçosos, pelo que a tarefa do Letra, para garantir que o avião chegava incólume ao Porto, não se presumia fácil nem cómoda.

À época, as minhas relações pessoais com o Letra não eram as melhores. Num dia de neve, no pátio do liceu, ele tinha-me atirado uma bola de neve que me deixaria um olho negro, levando, da minha parte, a uma reação violenta, que acabou numa troca de socos. O episódio já fora há três ou quatro anos, mas tínhamos deixado de falar. Mas, nem por isso, aquela aventura “auronáutica” do Letra deixava de me ser simpática. Era, de facto, um belo aeromodelo!

Mais de três horas passaram, com as curvas do Marão de permeio, seguidas da paragem tradicional no Arquinho, em Amarante, para “meter alguma coisa”, no Príncipe. A trombuda mulher das regueifas, com o seu bigode de marca, fizera entretanto a sua rotineira passagem pelo corredor da camioneta, na venda à passagem em Valongo. Estávamos, finalmente, a chegar ao Porto. À entrada na garagem, à chegada à Batalha, ainda o autocarro não estava estacionado e já quase toda a gente se tinha levantado dos lugares, retirando as sacas e outros pertences, morta por colocar um ponto final naquela longa e cansativa viagem. 

Foi então que o pior acabou por acontecer: ao tirar uma saca, do espaço para bagagens sobre os bancos, completamente desastrado, passei uma “secante” à asa do avião do Letra, rompendo-a da carlinga e deixando-a pendente pelo papel vegetal a que estava colada. O Letra rugiu uma imprecação audível em toda a camioneta e o seu olhar fuzilou-me, com (compreensível) ódio, vendo talvez no meu gesto um desproporcionado desforço ao pretérito episódio da bola de neve. 

Eu estava mais do que embaraçado. Tudo não passara de um infeliz azar. Balbuciei umas desculpas atrapalhadas, que era tudo o que me saía. Não tinha havido, da minha parte, a menor intenção no gesto descuidado que tivera. Isso não impediu que tivesse saído do autocarro dabaixo de sobrolhos carregados de alguns passageiros, bem chocados com a minha indesculpável incúria. Imagino como reagiriam se soubessem do meu anterior conflito com o pobre aeromodelista! 

Dele, do Letra, que muito provavelmente falhou o campeonato por minha causa, guardo uma última imagem: o seu ar desencantado, dentro da camionete, através dos vidros, olhando o resto do avião pousado nas suas mãos.

Saí “de fininho” da garagem do Cabanelas, rumei ao Lar Universitário onde me alojava e nunca mais na vida voltei a ver o Letra. E nunca lhe pedi suficientes desculpas. Mas o rebate de consciência ficou-me para sempre.

segunda-feira, março 05, 2018

Renzi


Ainda há escassos meses Matteo Renzi era uma imensa “esperança” para a Europa do futuro.

Demitiu-se, há pouco.

Isto anda tão depressa...

‘Investimento público”



“Investimento público” é uma expressão que convoca sentimentos interessantes. E contraditórios.

Por muito tempo, quem nisso falasse era colado a despesismo, dívida pública, resgate, Sócrates e outros “diabos” recorrentes.

Um dia, chegou a S. Bento António Costa. E, afinal, o “diabo” não veio. A pergunta, feita pelos mesmos que antes se alimentavam politicamente da tragédia, anda aí agora: “Então não há investimento público?”.

“Quem lhes atasse um arado!”, como se dizia na minha terra para certas “aves”...

Os nossos Óscares


Não foi há muitos anos, mas já lá vai muito tempo, “if you know what I mean”. No bar Procópio, essa ímpar instituição lisboeta de copos, conversas & companhias, um seleto júri decidia anualmente a atribuição de uma mão cheia de “Procópios”, oferecidos a figuras que se destacavam no teatro, no cinema, no jornalismo, na literatura, na televisão, etc. E até na política. Havia uma festa, sem passadeira vermelha, onde eram entregues esses prémios. Eram belos, esses dias! 

“Sedona” Alice Pinto Coelho: agora que o turismo sopra o seu vento de cifrões, fazendo andar o barco na boa direção, não seria de se arranjar um “sponsor” (eu trato disso!) para se voltarem a fabricar as estatuetas da autoria do nosso genial António Antunes? Back to business? 

Democracia na Europa


Há poucas horas, a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, integrei um grupo que discutiu o tema “Fortalecer a Democracia na Europa”, sob a moderação de Vitor Martins, antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus.

Foram cerca de três horas de excelente e útil debate, sobre um tema nada fácil, muito polémico, mas essencial.

Do painel de convidados faziam parte Pieyre-Alexandre Anglade, deputado francês especialista em assuntos europeus, Miguel Poiares Maduro, professor universitário no Instituto Europeu de Florença e antigo ministro, e Laurent Cohen-Tanugi, vice-presidente do Instituto Jacques Delors. 

A Conferência foi aberta por Isabel Mota, presidente da Gulbenkian, seguida do vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans, tendo sido encerrada pelo antigo PM italiano e atual presidente do Instituto Jacques Delors, Enrico Letta, e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.

O tema central da Conferência prendia-se com os desvios aos princípios europeus - em matéria de democracia, Direitos Humanos, respeito pelo Estado de direito, liberdade dos media, etc, que hoje se verificam crescentemente em alguns Estados da União, refletindo sobre o modo como este tema deve ser tratado a nível europeu e nacional.

Foi uma bela discussão. Devo dizer, com franqueza, que raramente dei por tão bem empregue o meu tempo.

domingo, março 04, 2018

A novidade


No dia de hoje, fala-se muito da fórmula de governo encontrada para a Alemanha, para os próximos quatro anos: será uma coligação entre os conservadores da CDU e os social-democratas do SPD.

Tenho a sensação de que, depois de todos estes meses de discussões, há muita gente que já nem se recorda de qual é a “coloração” do governo que continua no poder na Alemanha, há bem mais de quatro anos. Eu lembro: CDU-SPD...

O acagaçado


  

Naquele ano de 1984, o embaixador de Portugal em Angola, António Pinto da França, decidira fazer uma deslocação oficial a Benguela, onde tínhamos um consulado e uma significativa comunidade. Eu acompanhá-lo-ia. Ao saber dessa ida, um empresário português, de seu nome Pena, proprietário de uma avioneta, piloto com grande experiência desde o tempo colonial, ofereceu-se para nos levar na viagem de ida, sendo o regresso feito num voo regular pela TAAG. A paisagem única que esse voo privado proporcionava era o principal aliciante. 

Em regra, não tenho o menor medo de viajar de avião. Já experimentei companhias aéreas bem “sinistras”, já usei cintos de segurança que se apertavam com um nó, vi portas de aeronaves que fechavam com mecanismos improvisados, durmo que nem um anjo com turbulência. O meu grande receio é sobreviver num acidente, pelo “estado” em que posso ficar depois de “aterrar”. Mas aquela ida a Benguela não me estava a “cheirar bem”.

O Arlindo era um piloto de helicópteros da Força Aérea portuguesa, que eu conhecia dos tempos do MFA e que, por esses anos, estava a trabalhar em Angola. Numa das noites anteriores à viagem, tive-o a jantar na minha casa de Luanda. Quando lhe contei a aventura em que estava prestes a embarcar, alarmou-se: “O quê! Num monomotor? Sobre a ‘banheira’? Vocês são malucos!”

Não percebi o que ele queria dizer com aquilo da “banheira”. Com um mapa de Angola em frente, explicou-me. Um avião daquele tipo voava a uma altitude relativamente baixa. Porque, na zona entre Luanda e Benguela, havia várias regiões com forte presença da Unita, cujos guerrilheiros podiam ser tentados a mandar umas rajadas de metralhadora para o aparelho, o mais provável era o piloto decidir “cortar” pelo caminho mais curto, pelo meio do mar, pela “banheira”. Ora isso seria muito arriscado, porque um monomotor, se acaso tivesse uma avaria, despenhava-se, sem apelo nem agravo, no Atlântico. “Eu, se fosse a ti, nem ia nem deixava que o embaixador fosse”.

No dia seguinte, procurei convencer o António Pinto da França da insensatez da viagem. Qual quê! O seu espírito aventureiro estava já mobilizado e nada o demovia. E riu-se das minhas preocupações.

Nessa tarde, por um acaso, o Pena vinha ver-me ao meu gabinete, por um outro assunto. Decidi então inventar uma mentirola inocente. Disse-lhe que o embaixador se me mostrara algo preocupado com um eventual trajeto sobre o mar, mas que não lhe queria dizer isso diretamente, para não parecer que estava a pôr em causa o seu sentido de responsabilidade. Assim, tanto quanto possível, e para o sossegar, pedia-lhe que a viagem fosse sempre feita sobre a linha de costa. (Eu, cá por mim, “preferia” um tiro da Unita aos dentes dos tubarões). Mas pedia-lhe que o assunto ficasse “entre nós”. O Pena acedeu, sem especial reação e eu fiquei menos ansioso.

Dias depois, o embaixador e eu, com as respetivas mulheres, bem como a adida comercial da embaixada, Élia Rodrigues, lá fomos no pequeno avião do Pena, a caminho de Benguela. Eu ia ao lado do piloto, com os quatro passageiros atrás. A viagem corria normalmente, com ele a mostrar-me, divertido, umas praias onde, no passado, tinha aterrado de emergência... Comecei, contudo, a inquietar-me, e mais nervoso fiquei, quando, a certa altura, o vi guinar bem para cima do mar, distanciando-se da costa, provavelmente para evitar alguma zona tida como perigosa em matéria de segurança.

“Ó senhor Pena! Veja lá não se afaste muito!”, alertei. Ele então voltou-se e, falando sobre a barulheira do motor, berrou, lá da frente, para o António Pinto da França: “O senhor embaixador importa-se que eu fuja um pouco da costa, por uma meia hora?”. Eu estava furibundo e mais fiquei quando ouvi o meu embaixador responder: “O amigo Pena é que sabe! Tenho plena confiança em si.”

O Pena percebeu, nesse segundo, quem é que, na realidade, tinha dúvidas sobre a opção do trajeto. E voltando-se para mim, disse: “Afinal, parece que o ‘acagaçado’ aqui é o senhor doutor...”

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...