A Monarquia acabou em Portugal em 5 de outubro de 1910, com a implantação da República - a segunda surgida na Europa, depois da França, descontado o caso especial da Suíça.
O último rei de Portugal, o jovem dom Manuel, acompanhado da sua mãe Amélia, exilou-se então perto de Londres, onde viria a morrer em 1932.
Não deixou descendentes, tendo, ainda em vida, concordado em que, para o caso de uma hipotética restauração do regime, fosse retomado o ramo familiar do rei dom Miguel. Este, curiosamente, havia sido derrotado no terreno das armas pelo ascendente direto de dom Manuel, dom Pedro IV, sob acusação de usurpador do trono.
Depois de terem tentado sem sucesso, durante a primeira República, derrubar militarmente o novo regime, com o natural apoio do soberano exilado, os monárquicos portugueses colocaram todas as suas esperanças na possibilidade da Ditadura Militar, implantada em 1926, poder vir a abrir caminho à ansiada retoma do sistema.
Durante o Estado Novo, Salazar, cujas simpatias pela Monarquia eram evidentes, jogou com o apoio dos esperançados monárquicos para consolidar o seu poder. Tudo indica que o pragmatismo o terá levado, contudo, a considerar que o risco de provocar um abalo constitucional, pela reintrodução da Monarquia, era grande. Por isso, no único momento da vida do Estado Novo em que a questão se colocou de forma mais clara para alguns setores do regime - aquando da morte do presidente Carmona, em 1951 -, optou por afastar em definitivo a possibilidade de uma restauração monárquica.
Curiosamente, seria Marcelo Caetano, que havia sido um propagandista monárquico, a titular essa sua posição, no Congresso da União Nacional então realizado. Verdadeiramente, a hipótese de restauração da Monarquia portuguesa morreu aí, em termos de exequibilidade.
Essa atitude de Salazar, que foi muito sentida no campo monárquico, o qual, contudo, maioritariamente nunca dele se afastou, viria a abrir caminho à progressiva gestação de uma linha monárquica democrática contra o Estado Novo.
Entretanto, Salazar, depois de ter tido diversos gestos de simpatia para com a mãe do último rei, e em jeito de compensação, autorizou a que o representante da família Bragança regressasse a Portugal, de onde esse ramo fora banido pela República.
O seu descendente, dom Duarte, dito "duque de Bragança" (os títulos nobiliárquicos foram abolidos por lei, logo em 1910, e só subsistem hoje nos círculos saudosistas da Monarquia e por cortesia social que alguns entendem dever manter) é filho dessa figura, de dom Duarte Nuno, do ramo miguelista dos Bragança, nascido na Áustria e que sempre falou mal português (o que, há quem diga, terá sido um argumento mais para justificar a sua não consideração como potencial rei).
Leio hoje na imprensa que um grupo de monárquicos e outras pessoas que, não o sendo necessariamente, a eles se associaram, pretende institucionalizar na lei um lugar protocolar para o representante da família Bragança.
Ao atual representante dessa família, reconhecido pela esmagadora maioria dos monárquicos portugueses (embora não por todos) como a pessoa que, numa hipotética restauração da Monarquia, poderia vir a assumir o trono, tem vindo a ser concedida alguma atenção e a atribuição informal de lugares protocolares, em cerimónias oficiais, facto que, não raramente, provocou reações de desagrado por parte de titulares de cargos da República, confrontados com exageros cometidos nessa discricionariedade casuística.
São sempre decisões "ad hoc", regidas pelas regras da educação e do bom-senso (e às vezes, da falta dele) e, não vale a pena escondê-lo, pela curiosa circunstância de, creio que quase sem exceção, a chefia do Protocolo de Estado, numa divertida e nunca assumida "conspiração", ser quase sempre confiada a diplomatas com propensão monárquica. A regra, contudo, já consuetudinariamente consagrada, tem sido convidar dom Duarte para muitas cerimónias, variando apenas o lugar que lhe é atribuído.
O leitor deve estar a estranhar a palavra "perdigões" no título deste texto. Eu explico.
Ainda ao tempo do Estado Novo, a expressão era utilizada no Protocolo de Estado para designar aquele género de figuras para as quais, não existindo um lugar automático na lista oficial de personalidades, com hierarquia protocolar entre si, havia que "encaixar", em especial nos banquetes e em certas cerimónias de natureza oficial ou semi-oficial. Esse é um problema permanente com que ainda hoje o Protocolo de Estado se defronta, face à frequente delicadeza que decorre das decisões que é obrigado a assumir neste domínio.
Num certo tempo do "marcelismo" dos anos 70, a esse tipo de figuras, cartas "fora do baralho" protocolar, alguém passou a dar a designação de "perdigões". Porquê? Porque Azeredo Perdigão, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, era uma das recorrentes personalidades desse género, para as quais sempre era importante encontrar um lugar protocolar, à luz do bom-senso.
De certo modo, o que a iniciativa dos monárquicos pretende evitar é que dom Duarte continue a ser um "perdigão" protocolar e que, de caminho, a importância da sua família para a História de Portugal seja reconhecida de forma oficial nas cadeiras das cerimónias - já que o assento no trono já lá vai há muito.
Um século passado sobre o fim da Monarquia e quase meio século decorrido sobre o termo ao banimento, num gesto de grandeza histórica por parte da nossa República, que decorre da constatação objetiva da inocuidade política atual do herdeiro da família Bragança, acomodando o gosto que isso pode dar aos ainda crentes caseiros na fé monárquica, não me chocaria* que o protocolo da República se livrasse de um "perdigão" e desse um lugar, sem exageros nem excessos, ao primogénito da família que, entre 1640 e 1910, se sentou no trono português. E escrevo isto como "feroz" republicano que sou.
* (escrevi "não me chocaria". Espero que alguns plumitivos que só sabem ler "as gordas" não venham dizer que faço parte dos proponentes da solução)