domingo, abril 02, 2017

Não é a "finest hour"


Foi Churchill quem cunhou a expressão “the finest hour”, para designar esse tempo em que, com estoicismo e sacrifício, o povo britânico ajudou a vencer a barbárie nazi.  Nos dias que correm, por mais auto-convincentes que os discursos de Westminster possam parecer, este é um tempo muito menos glorioso e bastante mais temeroso. Embora, para a Europa em geral, também esteja longe de ser um bom momento.

A entrada do Reino Unido para a Europa comunitária, de que a França seria o principal objetor, representou um gesto de pragmatismo político, levado a cabo por uma classe dirigente que percebia que o país tinha tudo a ganhar, pelas oportunidades que isso trazia ao seu pendor globalista « avant la lettre », com a integração num clube que se projetava de forma crescente no cenário internacional. “Se não os podes vencer”, através de uma EFTA débil, “junta-te a eles”. Foi uma adesão pragmática, com os meios industriais e financeiros por detrás, mas que, há que reconhecer, teve um assumido pendor oportunista.

Não obstante o referendo consagrador da adesão, a opinião pública britânica deu sempre sinais de uma grande reticência face ao projeto europeu. Nisso foi, em permanência, seguida e estimulada por uma imprensa que diabolizou cada passo integrador, visto como usurpador da sacrossanta soberania das instituições da ilha. Os políticos, poucos dos quais ousaram enveredar por um proselitismo mobilizador em favor do projeto europeu, acabaram grande parte das vezes por se colar ao euroceticismo que sempre foi o “politicamente correto” dominante no país. Claro que houve exceções, períodos em que certas figuras políticas se mostraram de pendor mais europeísta. Mas isso foi sempre sol de pouca dura, num ambiente em que quase já se não estranhava que a imprensa tablóide apelidasse de “federastas” quantos se mostravam favoráveis ao projeto integrador.

Para o Reino Unido, desde o primeiro momento, viveu-se uma batalha de permanente disputa com Bruxelas, vista como fonte de todos os males e vícios, de onde os seus dirigentes regressavam sempre tentando bramar vitórias, fosse no “rebate” financeiro compensatório, fosse na obstrução aos avanços nos tratados. Os governos ingleses, hipocritamente, iam-se calando quando a sua imprensa clamava contra as “ingerências” legislativas de Bruxelas, fazendo esquecer que esse acervo se foi criando sob os olhos e o voto complacente dos seus representantes, à mesa dos conselhos de ministros.

Margareth Thatcher foi a cara mais evidente do confronto aberto com Bruxelas, numa atitude popular (e populista) que contrastou, com êxito, com a imagem de europeísmo envergonhado, e quase culpabilizado, de seus antecessores, de Edward Heath a James Callagham, com Harold Wilson dividido. John Major seguiu-a e clamou “game, set and match”, quando regressou de Maastricht com o grande « opt out » de uma vitória que foi pírrica.

Só Tony Blair viria a mudar um pouco o tom, pretendendo mostrar aos britânicos que uma nova Europa podia ser criada sob forte influência britânica. O líder trabalhista contava com o alargamento ao Centro e Leste europeu, que Thatcher já favorecera, como um fator diluidor da temida homogeneidade da Europa continental, para o que jogava também com o peso da « special relationship » com Washington. Estava certo nisso no plano político, como ficou patente na « carta dos oito » na crise do Iraque, mas a sua ambição vivia desligada da realidade essencial dos equilíbrios intracomunitários. E a sua progressiva debilitação interna não permitiu que Londres fosse colocado no « the heart of Europe », como proclamava.

Depois, foi o que se viu. Gordon Brown foi um parêntesis, Cameron um irresponsável ponto final, bem pouco glorioso. Theresa May tem agora uma tarefa quase impossível.

Como europeu, deste lado da Mancha, só posso desejar que, no fim do jogo, Londres venha a ter saudades de Bruxelas. As boas lições, as mais das vezes, saem caras.

5 comentários:

Anónimo disse...

Caro Embaixador, penso que a sua visão para o porvenir do Reino Unido é motivada mais por um desejo que lhes corra mal (que confessa) do que por reflexão cuidada e pensada. Vê o assunto sob o prisma dum Europeu Continental com o inerente «bias» decorrente dum certo sentimento de afronta e despeito por uma sociedade ter desdenhado uma das suas meninas dos olhos. Em seu abono, porém, há que dizer (enfatizar) que não esconde os seus desejos de que corra mal e não tenta fazer passar por reflexão ponderada o que assume ser um seu desejo.

Pessoalmente vejo a questão de forma bem diversa e, aliás, «I'm putting my money where my mouth is». Penso que haverá alguma turbulência de duração não superior a dois anos após a consumação do divórcio e depois o Reino Unido progredirá de forma célere, com uma economia muito mais dinâmica do que a da generalidade dos países da Europa à excepção, talvez, da Alemanha e pouco mais. E isto num cenário da UE continuar a existir, cenário pelo qual, de todo em todo, não ponho as mãos no fogo. Se a UE entrar mais ainda num cenário de desagregação ou mesmo, apenas, paralisia, as coisas serão provavelmente bem diversas.

All in all a minha visão do Brexit é aquela expressa de forma magistral no cartoon que linko abaixo.

https://grrrgraphics.files.wordpress.com/2016/06/brexit_ben_garrison.jpg?w=640&h=458

Anónimo disse...

Este post é bastante mais lúcido que o de Pedro delgado Alves. Não se perde nada com a saída do RU da UE e adesão da Escócia. Como Campinos disse e bem quando Medeiros e Barreto saíram do PS "o partido fica mais puro". A UE também.

Anónimo disse...

pois ... acho que jamais me esquecerei, por exemplo, dos miudos esfomeados a pedir comida nas cantinas em certas escolas portuguesas, nem da porcaria que a banca arranjou, nem da fruta que atiraram fora por ser de um formato diferente do ideal da burocracia, nem do desemprego e do suicidio.
Adoro a Europa mas o Brexit talvez ajude a UE a ser menos idiota e prepotente !?

Anónimo disse...


Their finest hour... (This was their finest hour)

dor em baixa disse...

Penso que a linha principal da política externa britânica não mudou: vigiar a Europa Continental com vista a que nela se não forme uma grande potência.
Quando se constituiu a CEE houve francas hipóteses de vir a tornar-se numa grande potência. Se se tratasse de uma potência militar o UK faria tudo para a defrontar e vencer. Não se pondo a questão do uso da força, aderiu sem convicção e colocou-se na posição cética.
No estado em que se encontra a UE a saída foi a melhor solução e a mais lógica. Mas se a UE vencer a crise e triunfar o UK vai ter um grande problema pela frente e não vejo como é que a sua linha de orientação vai resolvê-lo.

Poder é isto...

Na 4ª feira, em "A Arte da Guerra", o podcast semanal que desde há quatro anos faço no Jornal Económico com o jornalista António F...