sábado, abril 08, 2017

O trono e os perdigões


A Monarquia acabou em Portugal em 5 de outubro de 1910, com a implantação da República - a segunda surgida na Europa, depois da França, descontado o caso especial da Suíça.

O último rei de Portugal, o jovem dom Manuel, acompanhado da sua mãe Amélia, exilou-se então perto de Londres, onde viria a morrer em 1932.

Não deixou descendentes, tendo, ainda em vida, concordado em que, para o caso de uma hipotética restauração do regime, fosse retomado o ramo familiar do rei dom Miguel. Este, curiosamente, havia sido derrotado no terreno das armas pelo ascendente direto de dom Manuel, dom Pedro IV, sob acusação de usurpador do trono.

Depois de terem tentado sem sucesso, durante a primeira República, derrubar militarmente o novo regime, com o natural apoio do soberano exilado, os monárquicos portugueses colocaram todas as suas esperanças na possibilidade da Ditadura Militar, implantada em 1926, poder vir a abrir caminho à ansiada retoma do sistema.

Durante o Estado Novo, Salazar, cujas simpatias pela Monarquia eram evidentes, jogou com o apoio dos esperançados monárquicos para consolidar o seu poder. Tudo indica que o pragmatismo o terá levado, contudo, a considerar que o risco de provocar um abalo constitucional, pela reintrodução da Monarquia, era grande. Por isso, no único momento da vida do Estado Novo em que a questão se colocou de forma mais clara para alguns setores do regime - aquando da morte do presidente Carmona, em 1951 -, optou por afastar em definitivo a possibilidade de uma restauração monárquica.

Curiosamente, seria Marcelo Caetano, que havia sido um propagandista monárquico, a titular essa sua posição, no Congresso da União Nacional então realizado. Verdadeiramente, a hipótese de restauração da Monarquia portuguesa morreu aí, em termos de exequibilidade.

Essa atitude de Salazar, que foi muito sentida no campo monárquico, o qual, contudo, maioritariamente nunca dele se afastou, viria a abrir caminho à progressiva gestação de uma linha monárquica democrática contra o Estado Novo.

Entretanto, Salazar, depois de ter tido diversos gestos de simpatia para com a mãe do último rei, e em jeito de compensação, autorizou a que o representante da família Bragança regressasse a Portugal, de onde esse ramo fora banido pela República.

O seu descendente, dom Duarte, dito "duque de Bragança" (os títulos nobiliárquicos foram abolidos por lei, logo em 1910, e só subsistem hoje nos círculos saudosistas da Monarquia e por cortesia social que alguns entendem dever manter) é filho dessa figura, de dom Duarte Nuno, do ramo miguelista dos Bragança, nascido na Áustria e que sempre falou mal português (o que, há quem diga, terá sido um argumento mais para justificar a sua não consideração como potencial rei).

Leio hoje na imprensa que um grupo de monárquicos e outras pessoas que, não o sendo necessariamente, a eles se associaram, pretende institucionalizar na lei um lugar protocolar para o representante da família Bragança.

Ao atual representante dessa família, reconhecido pela esmagadora maioria dos monárquicos portugueses (embora não por todos) como a pessoa que, numa hipotética restauração da Monarquia, poderia vir a assumir o trono, tem vindo a ser concedida alguma atenção e a atribuição informal de lugares protocolares, em cerimónias oficiais, facto que, não raramente, provocou reações de desagrado por parte de titulares de cargos da República, confrontados com exageros cometidos nessa discricionariedade casuística.

São sempre decisões "ad hoc", regidas pelas regras da educação e do bom-senso (e às vezes, da falta dele) e, não vale a pena escondê-lo, pela curiosa circunstância de, creio que quase sem exceção, a chefia do Protocolo de Estado, numa divertida e nunca assumida "conspiração", ser quase sempre confiada a diplomatas com propensão monárquica. A regra, contudo, já consuetudinariamente consagrada, tem sido convidar dom Duarte para muitas cerimónias, variando apenas o lugar que lhe é atribuído.

O leitor deve estar a estranhar a palavra "perdigões" no título deste texto. Eu explico.

Ainda ao tempo do Estado Novo, a expressão era utilizada no Protocolo de Estado para designar aquele género de figuras para as quais, não existindo um lugar automático na lista oficial de personalidades, com hierarquia protocolar entre si, havia que "encaixar", em especial nos banquetes e em certas cerimónias de natureza oficial ou semi-oficial. Esse é um problema permanente com que ainda hoje o Protocolo de Estado se defronta, face à frequente delicadeza que decorre das decisões que é obrigado a assumir neste domínio.

Num certo tempo do "marcelismo" dos anos 70, a esse tipo de figuras, cartas "fora do baralho" protocolar, alguém passou a dar a designação de "perdigões". Porquê? Porque Azeredo Perdigão, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, era uma das recorrentes personalidades desse género, para as quais sempre era importante encontrar um lugar protocolar, à luz do bom-senso.

De certo modo, o que a iniciativa dos monárquicos pretende evitar é que dom Duarte continue a ser um "perdigão" protocolar e que, de caminho, a importância da sua família para a História de Portugal seja reconhecida de forma oficial nas cadeiras das cerimónias - já que o assento no trono já lá vai há muito.

Um século passado sobre o fim da Monarquia e quase meio século decorrido sobre o termo ao banimento, num gesto de grandeza histórica por parte da nossa República, que decorre da constatação objetiva da inocuidade política atual do herdeiro da família Bragança, acomodando o gosto que isso pode dar aos ainda crentes caseiros na fé monárquica, não me chocaria* que o protocolo da República se livrasse de um "perdigão" e desse um lugar, sem exageros nem excessos, ao primogénito da família que, entre 1640 e 1910, se sentou no trono português. E escrevo isto como "feroz" republicano que sou.

* (escrevi "não me chocaria". Espero que alguns plumitivos que só sabem ler "as gordas" não venham dizer que faço parte dos proponentes da solução)

19 comentários:

Portugalredecouvertes disse...


penso que sim, que seria bom criar linhas paralelas e não propriamente concorrentes
nessa matéria!
bom fim de semana Sr. Embaixador

com o seu post, aprende-se um pouco mais desse período da historia de Portugal, que não é muito ensinado porque já aparece no fim do livro !

Angela

APS disse...

Permita-me referir que, embora minúsculo, S. Marino creio ser a mais antiga república europeia. Sendo assim, Portugal seria o terceiro país europeu com regime republicano.

Jaime Santos disse...

O nome 'perdigão' fez-me lembrar o poema homónimo de Camões... Não há mesmo mal que lhes não venha :-) ...

Anónimo disse...

João Amaral escreveu um livro sobre as circunstâncias do casamento do anterior duque de Bragança onde, a certa altura, se relata as instruções dadas por Salazar a João Amaral ( tio) sobre a atitude que deveria ser tomada pelo Estado em relação ao duque. Cito de memória: o duque de Bragança é um príncipe português chefe e representante de uma casa que em Portugal foi a casa real. Devemos assim dar-lhe exatamente o tratamento correspondente. Nem mais, nem menos.
João Vieira

Rui C. Marques disse...

Entre outras razões para o meu ritual quotidiano que é a leitura do blog,esta:aprendo sempre qualquer coisa nova.

Anónimo disse...

Já houve uma tentativa de incluir o D. Duarte na lista de Protocolo da parte de alguns deputados, entre os quais, se não err, Manuel Alegre. Conclui-se que era difícil colocar um perdigão antes dos deputados, o que o relegaria em "quantidade " para um lugar remoto. Pelo que se considerou que o mais sensato era deixar as coisas como estavam e, no fundo, seguir o critério do Salazar.
Fernando Neves

Anónimo disse...

Os ditos monárquicos hoje em dia são reaccionários até dizer chega. De um saudosismo que aflige! Viva a República!

Anónimo disse...

Mário Soares, que era PR, foi ao casamento do duque de Bragança. Achei bem.

JPGarcia

Francisco Teixeira disse...

Sem dúvida que aceito e respeito que ao Sr. Embaixador não lhe chocaria que o Protocolo se livrasse de um perdigão. Porém a mim chocar-me-ia...
Hoje e sempre Viva a República Portuguesa!
Francisco F. Teixeira

Anónimo disse...

JPGarcia, não é de casamentos que aqui se trata.
Sobre o assunto, o post do senhor embaixador é uma amostra do nosso peculiar nacional-porreirismo. Dito de outra maneira "por mim, tudo bem, dêem-lhe lá um lugar oficial". Por mim, tudo bem também. Mas já agora, tenho a curiosidade de saber se em França e em Itália, por exemplo, está consagrado nos protocolos de estado um lugar para os pretendentes ao trono desses paises.

Anónimo disse...

Diplomata, sempre me incomodou profundamente o privilégio dado ao comércio aquando da sua passagem pelas Necessidades... Para depois de ministro acabar numa empresa do ramo. Incomoda-me a condescendência em Portugal para com Portas a pretexto de que "é muito "Inteligente". fico contente por saber agora que é investigado e espero que isto dê em alguma coisa. Convenhamos que estamos agora melhor servidos com Santos Silva que com Portas ou Machete.

Anónimo disse...

O anónimo da 10.12 não percebeu.

JPGarcia

Augie Cardoso, Plymouth, Conn. disse...

O pais de FAZ DE CONTA.

Anónimo disse...

Más o autor deste blogue ainda é embaixador? Pensei que já estava reformado.

Anónimo disse...

Tema delicado tratado, neste post, com a usual urbanidade e qualidade do texto.

Sim, será possível ao Protocolo de Estado regulamentar O Lugar do representante da extinta Monarquia Portuguesa.

Mais difícil será, para já, as diferentes correntes Monárquicas -bem assim como os representante do Clero e do Povo- acordarem em que é o seu incontestado representante.

Lembremo-nos que, como bem realça o autor do post, D. Manuel II terá " ... concordado em que, para o caso de uma hipotética restauração do regime, fosse retomado o ramo familiar do rei dom Miguel..."....

"Concordado", a ser verdade, já de si é um termo dúbio, vago. Estará bem documentado e credivelmente testemunhado?. Mas.
Na verdade "concordado" em tal contexto, não é uma figura que conste no regimento das "Cortes", e do seu exclusivo poder de nomear Rei, em caso de interruipção dinástica. Também não consta da prática. Tal gesto, em caso de interrupção dinástica como foi morte sem directo, incontestado, herdeiro, é um poder exclusivo das Cortes.
Dos representantes, credênciados para o efeito, da Nobreza, do Clero, do Povo.

Esperemos, portanto, calmamente pelo resultado das próximas Cortes. Que aliás até podem proclamar Rei qualquer cidadão português, plebeu, fidalgo ou mesmo que pertença ao Clero, como já aconteceu.
O Lugar, simbolicamente criado, poderá ficar vazio à espera de legitmo, incontestado, titular.

Anónimo disse...

Na sucessão a Dom Afonso Costa O Absolutista, seria agora Dom Marcelo O Selfista...

Anónimo disse...

Por mim, qualquer coisa está bem desde que mudem a bandeira, que tem uma cores feias todos os dias!!!

Anónimo disse...

Peço desculpa mas em 1910 os republicanos esqueceram-se de abolir um título de nobresa o qual eles não conheciam. Era o título de Dom. Por isso ainda existe.
O que faz a ignorância.
Depois das trapalhadas do século XIX houve nobres que recusaram ser titulados barões, viscondes, condes, marqueses ou duques mas aceitaram ser titulados Dom.

Anónimo disse...

Anónimo das 13.13,
o Augusto Santos Silva é um péssimo MNE. Veja-se esta vassalagem ao EUA sobre as Lages, pior ainda a sua posição sobre o ataque não autorizado das NU na Síria de "compreensão", do seu apoio inqualificável sobre o CETA, que divide o PS, basta ver o que o eurodeputado Pedro Silva Pereira tem sobre esta matéria, (para já nem falar da sua atitude sobre a porcaria do Aborto Ortográfico).

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...