domingo, março 20, 2022

Geopolítica na areia

Vai ser muito interessante perceber - e não deve demorar muito - a razão pela qual o presidente do governo espanhol decidiu fazer o gesto que fez, ao favorecer as pretensões marroquinas na questão do Saara Ocidental. Sanchez habituou-nos a nunca dar ponto sem nó.

Lá se vai o mito…


Havia uma velha tese de sociologia política empírica que dizia que dois países que tivessem lojas da McDonald’s nunca entrariam em guerra entre si. Foi arquivada.



Diz o Provedor do “Público”

 


Bateu uma saudade…


O Acordo Ortográfico, visão IKEA

 


Moldova, claro

 


Heróis da terra

Nunca a famosa frase de Marx de que “a História ocorre uma vez como tragédia e se repete como farsa” (ou coisa parecida) se aplicou melhor do que à comparação entre os “viriatos” fascistas e os revolucionários lusos de esquerda que foram para a guerra civil de Espanha e os sete voluntários “nacionalistas” portugueses que se ofereceram para a Ucrânia mas que, afinal, decidiram vir de volta, quando perceberam que aquilo era mesmo “a doer”.

Este tipo é um pouco estranho!

Há dias, num jantar, referi, perante um grupo de amigos, que havia um ministro do atual governo cuja voz eu nunca tinha escutado. (Enganei-me: afinal, são dois).

E também disse que, desde o início da pandemia, nunca (repito, nunca!) tinha ouvido o mais pequeno comentário de qualquer especialista, político ou jornalista sobre o tema: a Covid é uma questão a que me mantenho, em absoluto, alheio em matéria informativa, desde março de 2020. Creio, aliás, que raramente alguém ouviu da minha boca a menor referência ao assunto, muito menos qualquer comentário nas redes sociais. Tomei os cuidados recomendados, vacinei-me e foi tudo.

Finalmente, também esclareci, para espanto geral dos circunstantes, que, praticamente desde há dois anos, havia deixado de ver noticiários nas televisões portuguesas. Essa assumida “abstinência informativa” em língua portuguesa, havia sido, aliás, uma das razões que me tinha levado a abandonar, a meio do meu mandato de seis anos, o lugar que ocupava no Conselho Geral da RTP (embora eu continuasse a ver alguns outros programas). Como recente exceção, admito que tenho assistido (com agrado, mas moderação quantitativa), na CNN Portugal, a alguma informação sobre a guerra na Ucrânia: informação, raramente comentários. Mas, às vezes, confesso, faço uma leve cedência e ouço aquilo que eu próprio lá vou dizer, como comentador contratado que sou…

Disse o que disse, nesse jantar, sob palavra de honra, com a minha mulher como fiel garante da veracidade. “Mas, então, como é que faz para se manter atualizado?”, perguntou uma amiga, presente nesse jantar. É muito simples: excetuada essa tal coisa da pandemia (tema do qual persisto em me manter persistentemente alheado), noto que há muitos bons canais de televisão em outras línguas e que a internet me dá, nos dias de hoje, sobre tudo quanto me importa, toda a informação de que necessito. E vivo lindamente assim!

Este tipo é um pouco estranho, devem estar alguns a pensar…

sábado, março 19, 2022

O Joel e o Carlos


Conhecer-se-iam, o Joel e o Carlos? Apostaria que sim.

Ambos morreram ontem, marcados por graves doenças que os tinham incapacitado, desde há anos.

Eram dois estilos muito diferentes de pessoa, embora unidos pelo constante sorriso, pela ironia inteligente, pela sabedoria, pela cultura, pelo culto da conversa. E por um imenso espírito solidário.

O Joel Hasse Ferreira era pausado e calmo. Transportava serenidade. 

O Carlos Pinto dos Santos era agitado e nervoso. Era o movimento em pessoa.

O Joel olhava as coisas da política com moderação.

O Carlos teve sempre a Revolução dentro de si. 

Em comum, tinham também a circunstância, que me era importante, de serem ambos meus amigos. 

Que dias, estes!


sexta-feira, março 18, 2022

Tropa


Já não nos juntávamos há mais de dois anos. É a minha tertúlia de “implicados no 25 de Abril”. Estava lá gente do Exército, da Marinha e da Força Aérea, entre os quais um general, um almirante e até um tenente na reserva fardado com uma camisola da cor dos cravos. Foram mais de duas horas magníficas, de histórias e de opiniões. Curiosamente, à saída, dei-me conta de que a política portuguesa e a guerra na Ucrânia não foram temas que viessem à conversa.

Revisas

A Rússia tem vindo a ser acusada de “revisionismo” da ordem política internacional, isto é, de tentar rever os equilíbrios a que, num certo momento, nem que fosse pela força das coisas, dera sinais de se ter acomodado. (Mas, por favor!, peço que não abramos uma discussão sobre isto, porque esse não é o objeto deste texto.)

Há dias, ao ouvir numa televisão um consagrado especialista em questões internacionais utilizar o termo, claramente nesse sentido, contra a política atual de Moscovo, tive um “déjà vu”. 

É que eu já tinha ouvido aquela mesma pessoa a utilizar esse exato termo, mas com outro bem diferente sentido, embora também com um caráter pejorativo, face ao governo de Moscovo. 

Mas isso tinha sido há 50 anos! 

Essa pessoa era, então, maoísta. Acusava, por esse tempo, o Partido Comunista da União Soviética, de que o “nosso” PCP era então um discípulo fiel, de se afastar da leitura ortodoxa do marxismo, deslizando para a “social-democracia” de figuras como Kautsky e Bernstein, então diabolizada por aqueles que Cunhal considerava estarem afetados pela “doença infantil do comunismo”. Para esses radicais maoístas dos anos 70, a URSS e o PCP eram então “revisionistas”. Na linguagem de café dessa época, o pessoal do PCP não passava de “um bando de revisas”! “Revisa” era uma abreviatura depreciativa em voga…

Uma coisa é certa: Moscovo, por uma medida ou por outra, está condenada a ser “um bando de revisas”!

quinta-feira, março 17, 2022

Vai e vem

Ao anúncio, ontem, no FT, de cedências ucranianas face aos russos, sucede, hoje, uma notícia noutro sentido, no Guardian, moderando as expetativas. De facto, o tom do presidente Zelensky no Congresso dos EUA e o novo pacote de ajuda militar de Biden não rimam com aquele anúncio.

Kremlinologia

Chegam sinais da Rússia de que as divergências em setores do regime que se opõem à guerra na Ucrânia estão a testar os nervos do presidente Putin. A “kremlinologia” dos nossos dias é fraca, pelo que se não sabe se isso pode vir a abalar o poder vigente. “À suivre!”

Da série: “Preparemo-nos! Ide!”

Repetindo o que alguém disse algures, os países ocidentais, que estimularam até ao limite o desejo das autoridades ucranianas de integrarem as instituições europeias e de segurança transatlântica, já deixaram muito claro que defenderão a Ucrânia até ao último soldado… ucraniano!

Bond, volta Bond!


Agora que isto está a ferro e fogo com a Rússia é que decidiram acabar com o James Bond! Esta malta não as pensa!

Ucrânia


Por mais uma semana, o podcast ”A Arte da Guerra”, a minha conversa com o jornalista António Freitas de Sousa para o “Jornal Económico”, tem o tema da Ucrânia no centro. A esse propósito, falaremos das margens de compromisso que se desenham, do papel da China e dos impactos na política interna americana.

Pode ver aqui.

quarta-feira, março 16, 2022

Uma coisa é a Ucrânia, outra coisa são as sanções

A Rússia pode vir a obter uma abdicação parcial da soberania da Ucrânia (aceitação da não entrada na NATO, estatuto diferente para os territórios no Donbass, talvez um passo institucional favorável aos seus interesses na Crimeia, admissão de um período de continuidade de presença militar no país, etc). 

Porém, mesmo na hipótese desse compromisso vir a ser obtido, o que representará sempre uma relativa rendição da Ucrânia, nunca conseguirá que o mundo ocidental venha a levantar a esmagadora maioria do pacote de sanções.

É que as sanções à Rússia, se foram claramente espoletadas pelo ataque à Ucrânia e para o punir, vão, de futuro, ter um outro objetivo: conseguir conter, enfraquecendo-a, a capacidade económica e estratégica de um ator político-militar que revela ser um poder que põe em risco a perspetiva ocidental da segurança europeia.

O objetivo

A Rússia nunca terá encarado outro cenário que não fosse executar uma invasão militar da Ucrânia. Sabia que o ocidente nunca aceitaria as “condições” formais que apresentou e usou um imaginário “genocídio” no Donbass como pretexto puramente artificial. O objetivo da Rússia era destruir as infraestruturas ucranianas, militares e estratégicas, e garantir que a Ucrânia se acomodava a um estatuto de soberania limitada. Conseguiu o primeiro objetivo e pode estar prestes a obter o segundo. Terá, no entanto, de avaliar se o preço que está, e vai continuar a pagar, terá compensado o que obteve ou obterá.

Linguagem e expressão

Eu uso, com toda a clareza, a expressão “agressão militar russa à Ucrânia” e acrescento, quando acho necessário e me apetece, que tal foi feito feito “sem qualquer provocação” e “sob falsos pretextos”. Mas também admito, sem o menor problema, que outros usem uma linguagem diferente, que tenham outra e até oposta perspetiva, e que a exponham na comunicação social. A liberdade em que gosto de viver é isso mesmo.

Ide!

Na minha terra, em 1961, aquando da partida das primeiras tropas para a guerra colonial, ficou famosa a exortação de um capelão aos "bravos rapazes": "Preparemo-nos para a guerra! Ide!" 

Ao ver o afã com que alguns apelam para que "se" avance para combate na Ucrânia, lembrei-me disso.

Odessa


A fotografia é da famosa cena do massacre na escadaria de Odessa, no filme mudo ”O Couraçado Potemkin”, de Serguei Eisenstein, de 1925. 

Vi o filme, creio que no Cinema Império, 49 anos depois de ter sido produzido. A cena é longa, mais de 10 minutos. Na parte final, a que a imagem se refere, um carrinho, com uma criança dentro, desce, descontrolado, através dos degraus, depois da mãe da criança ter sido alvejada. Lembro-me de que Eisenstein pontua o percurso do carrinho com imagens das pessoas abatidas.

A cidade ucraniana de Odessa, por essa e por outras razões de memória pessoal e da História da Europa, é uma das localidades do mundo que sempre me apeteceu conhecer - e que nunca visitei. Agora, vai ser difícil.

terça-feira, março 15, 2022

O tempo

Este texto é para gente com alguma idade.

Lembram-se do 25 de Abril? Claro que se lembram! O tempo que já passou depois dessa data, não é? Vai para quase meio século. Só gente com mais de 60 anos tem memórias sólidas desse tempo de transição entre a ditadura - que começou nos militares do 28 de maio, depois seguiu com Salazar e caiu com Caetano - a democracia dos cravos vermelhos.

E agora pensem: só daqui a dois dias é que o período democrático, inaugurado pela Revolução de Abril, irá igualizar, em tempo, o período do regime ditatorial inaugurado em 28 de maio de 1926.

Já pensaram bem no que isso significa? Portugal viveu uma das mais longas ditaduras do mundo - e não venham com versões edulcoradas de um regime que censurou, excluiu, prendeu, torturou e matou gente!

Esqueçam!

Desde há meses que os promotores de um blogue pró-russo, de extrema direita, deixam, em tentativas de comentário, quase todos os dias, e sob vários heterónimos, consecutivos links para publicações feitas nessa plataforma. Fazem-no, quase sempre, embrulhando essas ligações em insultos de vária ordem, com expressões racistas, anti-semitas, anti-europeias e, claro, muito anti-americanas. Mal eles sabem que o botão “delete” terá sido inventado para dar o destino devido às suas coisas! Nunca abro as coisas oriundas dessa gente! E gabo-lhes a paciência de continuarem a escrever, talvez na esperança de que eu, um dia, me distraia e ajude à sua propaganda. Se assim é, esqueçam!

Sarilhada

Vou dizer o que pode ser tido como uma banalidade, mas que é o que sinceramente sinto: as decorrências do ataque russo à Ucrânia estão a começar a deslizar para o que pode ser uma grande sarilhada à escala global. Desejo estar a ser pessimista.

Ucrânia


Ao final da tarde de ontem, tive um grande gosto em participar, conjuntamente com o professor Azeredo Lopes, numa palestra organizada pela Associação de Estudantes da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, dedicada à guerra na Ucrânia.

Foi interessante observar como o tema pode, na serenidade de um ambiente académico, por iniciativa dos estudantes, ser tratado de uma forma rigorosa, sem que as emoções empurrem o debate para um qualquer radicalismo argumentativo. Que diferença face ao modo crispado, às vezes algo censório, como o assunto tem vindo a ser abordado por aí!

Jorge Silva Melo (1948-2022)

 

segunda-feira, março 14, 2022

O país da estrada velha


As redes sociais acabam por ser, frequentemente, um vale de nostalgias. O “antes é que era bom” é, por aqui, o mote costumeiro. As pessoas não se dão conta de que, em regra, a idade tende a cristalizar apenas as memórias positivas. Por isso, as saudades são, quase sempre, apenas as saudades que temos de nós mesmos, nesses outros tempos, em que éramos mais novos, mais saudáveis, sem tantas preocupações, com os nossos ainda junto a nós, em que o futuro, em que tudo parecia possível, estava ainda à nossa frente. 

Lembrei-me disso nestes dias em que, tendo de viajar entre a “Invicta” e Vila Real, decidi, metade à ida, metade à volta, para contrariar a rotina, fazer uma “rota de saudade” pela velha estrada que, no passado, era a única ligação entre o Porto a Amarante, quando a A4 nem miragem era. 

Descontado para estas contas o dédalo do Marão, nesses outros tempos eu quase que conhecia de cor todo aquele percurso, as curvas, os poisos de comida, as lojas à beira da estrada (ainda lá está o inesquecível Bazar Fatinha, na Travanca), as “bombas” de gasolina, os cruzamentos, até algumas árvores que marcam a paisagem. De início, ia por ali em carros de familiares, depois nas camionetas do Cabanelas, mais tarde ao volante. 

Fiz aquilo “mil vezes”. Em todas essas vezes, tive tempo para olhar para tudo, para a Assembleia de Penafiel, para os bombeiros de Baltar (hoje, vi que mudaram de sítio), para uma farmácia, perto de Paredes, numa moradia que eu tinha como modelar: sempre achei que a farmacêutica devia viver em cima e que seria muito cómodo descer, a meio da manhã, para ver como ia a caixa. E, divertido que ia, dei comigo a esperar que uma senhora de forte buço nos viesse vender regueifas, como então o fazia, com elas penduradas no braço, numa higiene pré-ASAE, entrando nas camionetes “de carreira” ou em vendas à berma da estrada. 

De repente, caí em mim, parei a retrospetiva e olhei para tudo aquilo com olhos de ver.

Já experimentaram refazer aquela estrada, sem nostalgias? De Amarante até Ermesinde ou Rio Tinto? Já repararam no horror da maioria daquela paisagem, entre o suburbano degradado e o rural em quase total descaso? Já olharam bem alguns monstros arquitetónicos com que, a cada passo, deparamos, o alumínio das marquises, as cores sinistras e inimagináveis de muitas das casas, as ruínas frequentes, os muros caídos, os azulejos de gosto abaixo de péssimo que enchem as paredes? 

Dá vontade de pedir uma espécie de sindicância estética, requisitar fundos europeus para demolir alguns daqueles monstros ou, como um dia me dizia um amigo apocalíptico, num passeio pelo Algarve, “só um saudável terramoto podia resolver isto”. 

Eu não iria tão longe na cruel metáfora. Mas é desse Portugal, desses “bons tempos”, do país da “estrada velha”, que alguns ainda têm saudades? 

Deixo-os com a imagem de uma esquina arruinada da Tabopan, da Abreu, perto de Amarante, onde, não muito longe, me lembro de haver uma fábrica de caixões. Este é bem a imagem desse Portugal já “falecido”. 

Viva o futuro, caramba!

domingo, março 13, 2022

Sauditas

Em apenas 24 horas foram executadas 81 pessoas na Arábia Saudita: mais pessoas do que em todo o ano de 2021, quando 67 pessoas foram sujeitas à pena capital, ou em 2020, quando o número foi de 27.

As acusações dos condenados iam desde terrorismo a terem “crenças desviantes”.

Não há nada como apanhar o mundo distraído com outras notícias, devem ter pensado lá por Riade.

Tolerância

Ao olhar o que vai pelas redes sociais, percebe-se que a tolerância para aceitar a legitimidade da livre expressão de perspetivas que contradigam aquilo que alguns pensam começa a ser já um bem escasso no mercado das ideias.

Regular o caos

Até a condução de uma guerra, com todos os horrores que ela sempre implica, revela alguma coisa sobre dignidade de um Estado - ou a falta dela. Não é por acaso que nos lembramos de Wiriamu ou de My Lay. A Rússia será sempre medida pelo que fizer na Ucrânia.

Kherson

De entre as muitas e às vezes microscópicas pulsões para “independência” no espaço ex-soviético, confesso que nunca tinha lido nada sobre as ambições da região de Kherson, na Ucrânia, no sentido de se transformar numa “república popular”. Mas estamos sempre a aprender.

Da série…


… das fotografias que gostaria de ter feito. 

Salut, Alain Krivine!


Acabo de ler que morreu, há poucas horas, Alain Krivine. Tinha 80 anos.

"Sabes quem é aquele tipo, ali na mesa do canto? É o Alain Krivine". A mesa onde Krivine estava sentado era a mesma da histórica fotografia de Sartre e de Simone do Beauvoir, no Café de Flore, em Paris. O amigo que me fazia a revelação, nessa noite de há cerca de 10 anos, era o António Silva, com quem a estúpida lei da morte me não deixa agora comentar este episódio, que me trazia à memória outros tempos.

As tardes no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, respondendo aos deputados, durante a presidência portuguesa da União Europeia de 2000, tinham alguma graça. 

O secretariado-geral do Conselho preparava-nos umas respostas em "langue de bois", para as perguntas enviadas por escrito pelos deputados, com antecedência. A "emoção" estava, assim, nas réplicas a que os parlamentares perguntadores têm direito, feitas de improviso, muito mais "livres" e, às vezes, fugindo claramente ao tema da pergunta. 

Devo confessar que me dava um certo gozo exercitar a minha criatividade discursiva nas respostas a essa segunda parte de cada intervenção. Quase tanto como olhar, de viés, para as caras ansiosas dos funcionários do Conselho, que tão ciosamente haviam preparado as respostas "by the book" e que viviam esses momentos de liberdade do representante da presidência com clara expetativa e burocrática angústia.

Entre os deputados eleitos para o PE houve e há figuras gradas da política passada de vários países, muitos ministros e até primeiros ministros e presidentes da República - como Mário Soares. Mas aqueles que me "saíram em rifa", nesse semestre de 2000, foram quase sempre obscuros parlamentares, com nomes algumas vezes muito estranhos, de sonoridades gregas, eslavas ou nórdicas. É que esse tempo é utilizado, quase sempre, para afirmação da devoção desses deputados a causas muito específicas, o que lhes permite uma saliência mediática de que os seus colegas mais conhecidos já não necessitam.

Numa dessas longas tardes de Estrasburgo, ouço o presidente do parlamento anunciar: "Dou a palavra ao deputado Alain Krivine". Acordei do marasmo com aquela menção e, de imediato, procurei, no imenso areópago quase vazio, colocar um retrato no nome acabado de anunciar. O nome de Alain Krivine dizia-me alguma coisa. Figura histórica do trotskismo francês, havia sido candidato à presidência da República, não me passando a mim pela cabeça que fosse então deputado europeu.

Três décadas antes, no início da década de 70, numa visita a Paris, eu fora levado por amigos a assistir a um comício da "Ligue Comuniste Revolutionnaire", que teve lugar na "Mutualité", perto da Sorbonne. (O Joaquim Pais de Brito e o António Belém Lima, estavam então comigo e lembrar-se-ão. Tal como o faria o José Carlos Serras Gago, se, entretanto, não tivesse partido). 

A LCR era um grupo trotskista com certa expressão na esquerda francesa e, embora as teorias de Trotsky pouco me dissessem, achei graça assistir a um comício dessa extrema-esquerda - num tempo em que, em Portugal, apenas a União Nacional e a sua sucessora Ação Nacional Popular reuniam em público sem medo de vigilância policial.

A pergunta que Krivine fez à presidência portuguesa foi, como era de esperar, violenta e agressiva, sobre uma temática que já não recordo. Devo confessar que tenho ideia de que a minha resposta foi mais "soft", nostalgicamente atenuada pela memória de um passado no qual, embora de forma menos radical, eu também acreditava em que os "amanhãs" poderiam vir a cantar. Depois, infelizmente, foi o que se viu...

Naquele final de tarde, no Flore, perguntei ao Francis, que vagueava patronalmente entre as mesas, o que é que Alain Krivine estava a beber. Era um Chablis. Pedi outro para mim. Afinal, como dizia Voltaire, "les beaux esprits se rencontrent".

Hoje, na noite chuvosa de Vila Real, não tenho um Chablis à mão. Sirvo-me de um Bushmills! Salut, Alain Krivine!

Os russos dos mares do Sul


Há quase duas décadas, quando vivia em Viena, fui convidado, pago pela OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), para intervir numa conferência em Sharm el-Sheikh, no extremo sul da península do Sinai, no Egito, organizada em cooperação com uma entidade egípcia ou internacional cujo nome já não recordo. 

Passávamos os dias encafuados em salas fechadas, em graves discussões sobre temas de segurança, com um belo sol, lá fora, a apelar ao baldanço. Mas eu era "keynote speaker" e tinha de levar muito a sério o convite que me tinha sido formulado. Só ao final da tarde é que me aventurava a dar um breve mergulho no Índico. 

A cidade de Sharm el-Sheikh não tem, ao que me lembro, a menor graça, é um mar de hotéis, uns melhores do que outros, todos aproveitando as águas macias e transparentes do Índico, cheias de corais, às vezes, com alguns tubarões, é verdade. 

Mas nem tudo foi banal, nesses dias que por ali passei. Pernoitar no deserto, sob as estrelas, com momentos rituais de absoluto silêncio, bem como visitar o curioso mosteiro de Santa Catarina, na base do Monte Sinai, que eram trajetos obrigatórios para quem ia a Sharm el-Sheikh, foram momentos únicos. 

Recordarei para sempre uma conversa com um padre espanhol do mosteiro, que me falou longamente da sua experiência egípcia, da vida na solidão daquele deserto, e de como isso o tinha feito olhar o conceito do tempo com outros olhos. 

A segurança, ao que parece, impede hoje fazer essas viagens pelo deserto, a exemplo do que também se passa agora no nordeste do Sinai, um deserto onde já não é possível fazer o interessante percurso, atravessando o Suez, entre o Cairo e Al Arish, uma magnífica praia, com hotéis bastante "délabrés", não muito longe da fronteira de Rafah, perto do acesso egípcio à faixa de Gaza. 

Numa das noites de Sharm el-Sheikh, depois de um jantar, resolvi fazer um percurso exploratório pelo hotel onde decorria a conferência e estava hospedado, um imenso espaço desenhado em forma de crescente. Andei pelos jardins e, em certo momento desse passeio, deparei com um local que me pareceu ser um bar. Dele emanava boa música, gente com um ar de turistas, divertidos e ruidosos, com algumas mulheres muito bonitas. Entrei e dirigi-me ao balcão a pedi uma bebida. Notei que alguns dos circunstantes, eles e elas, me olhavam com alguma curiosidade. 

A barwoman que me serviu, que notei que era tudo menos egípcia, perguntou a minha nacionalidade. Satisfeita a curiosidade, explicou-me que, embora me pudesse servir um copo, aquele era "um bar para russos". Ela também o era e, de facto, foi nesse momento que notei que, à volta, tudo estava escrito em cirílico. Quase de certeza, a única pessoa não-russa que por ali parava era eu. Fora a estranheza pela minha inusitada presença, nada de particular se passou. Acabei de beber calmamente o meu whisky e zarpei para o "meu" lado do hotel, com registo de memória desse instante curioso. 

É que, por esses dias, eu havia-me esquecido de que Sharm el-Sheikh, desde o fim da União Soviética, se tinha transformado num local muito popular de férias para os russos de classe média (os que têm mais dinheiro vão para destinos mais glamorosos). Havia por ali vários hotéis praticamente "só para russos" e, naquele em que eu estava hospedado, havia alas que lhes eram totalmente destinadas. Eu é que me perdera por lá, por engano.

Agora, com as sanções financeiras a limitar os seus movimentos, os cartões de crédito cancelados, as férias em risco e as consequências da guerra prestes a fazerem sentir-se de forma muito pronunciada na vida das classes médias do país, os turistas russos devem ter abandonado Sharm el-Sheikh. E como a sanções têm um inevitável efeito “boomerang”, a economia e o turismo egípcios irão sofrer com isso. Nada de bom sai de uma guerra.

sábado, março 12, 2022

Construtores involuntários

Na velha ironia europeia, costuma dizer-se que ao dois idealizadores das Comunidades, Jean Monnet e Robert Schuman, é justiça somar o nome de José Estaline, por ter sido o medo à URSS um dos cimentos essenciais para este inédito processo de cooperação mais estreita entre nações.

Não sabemos se se concretizarão as ambiciosas ideias integradoras que saíram da cimeira da UE de Versailles. Se isso vier a suceder, um outro líder de Moscovo, igualmente por más razões, acabará por ter também o mérito de ser reconhecido como um “construtor” europeu.

O regresso de Lula

Lula parece estabilizar a sua liderança nas sondagens. Repetirá a vitória de há 20 anos, embora o PT pareça mais radical do que então? A bipolarização da sociedade brasileira nunca foi tão forte e o poder de Bolsonaro, e daquilo que ele ainda representa, não deve ser desprezado.

As batalhas de Zelensky

Há quatro batalhas que Zelensky parece já ter perdido: a da entrada para a NATO, a da adesão à UE, a da zona de exclusão aérea e a das sanções abrangerem gás e patróleo. A Rússia parece agora determinada a que ele perca a batalha de Kiev.

A ter em atenção

Começa a ser evidente que as forças armadas russas começam a tomar posições e a destruir linhas de abastecimento à Ucrânia, ligando, em especial, à Polónia. Se acaso houver incidentes entre russos e não- ucranianos envolvidos nessas ações, as coisas podem escalar num instante.

Massa tenra

Sou do tempo (isto é, até há semanas) em que o mundo dos negócios europeu estendia passadeiras rubras, com menor ou maior desprezo e sobranceria social, aos multimilionários (oligarcas já está muito gasto…) russos. Agora, de repente, eles passaram a ter peste. Estranho mundo!

… e a França aqui tão perto!

A Ucrânia tem-nos desviado a atenção, mas há uma pré-campanha presidencial a decorrer em França. Assisti, há pouco, a um debate entre a candidata da direita democrática, Valérie Pécresse, e a figura surpresa da extrema-direita, Éric Zemmour. Nem imaginam a violência das palavras!

Cair na rede

O que mais me surpreende é que gente sensata e que devia ser adulta deixe que, no seu quadro de relações pessoais, as redes sociais se tenham transformado numa espécie de “second life”, aí gerando afetividades e ódios, zangas e abraços. Cresçam, caramba!

Os filhos ilegítimos de Trump

Há cerca de dois anos, escrevi no “Jornal Económico” o artigo que a seguir reproduzo. Hoje, por razões de oportunidade, apetece-me repeti-lo. A grande diferença, face ao momento em que o publiquei, é que Trump já não está na Casa Branca, sendo hoje uma nostálgica saudade para as pessoas que retrato no texto:

”Não sei como se chamam, nem sei como chamar-lhes. É uma raça política estranha, que vive num registo cheio de contradições, se calhar em sintonia com este estranho e novo tempo – o qual, no discurso ácido de que agora se alimentam, chega a parecer velho. Às vezes, parecem de uma esquerda radical, outras vezes chegam a tresandar a uma direita velha e relha.

O fim do mito soviético, enterrado nas pedras do muro derrubado em Berlim, tornou muitos deles órfãos de um passado político do qual, curiosamente, nem sempre haviam sido seguidores incondicionais. Mas a desaparição ou falência de um certo tipo de partidos, em países onde a esperança já teve melhores dias, acabou por conduzi-los à “terra de ninguém” onde hoje vivem.

É difícil catalogá-los numa mesma prateleira, sendo que o único denominador comum entre todos parece ser a sua sedução por modelos autoritários, a recusa da globalização e a identificação caricatural que fazem das democracias liberais com o neo-liberalismo mais maléfico. Têm dois alvos de eleição: a Europa integrada, tida como símbolo do regresso da Alemanha ao lugar de comando, e um mundo ocidental sob a matriz da NATO.

O principal farol que os ilumina é a figura de Vladimir Putin, visto como o chefe da resistência a um mundo que diabolizam. Alguns alimentam uma discreta sedução por figuras como Orbán. Se lhes perguntarem por Lukashenko, dirão que é para manter no lugar, quase apenas e só porque o líder bielorrusso desagrada àqueles que eles detestam. O Donbass é um seu lugar de culto e o teste do algodão é a resposta à pergunta sobre se a Crimeia é ou não legitimamente russa.

Erdogan é simpático a muitos. Maduro a outros tantos. Apoiam quem mantiver Cuba “do outro lado”. Olham com bonomia divertida a Coreia do Norte, pela irritação que provoca em quem eles não gostam. No Médio Oriente, protegem Assad e o Irão. Mas não é isso contraditório com a simpatia por Ancara? A lógica não é o seu forte e mandam às urtigas a coerência.

A irónica novidade é que Donald Trump é o grande culpado da sua reconciliação episódica com os Estados Unidos – depois de uma vida que alimentaram contra o satã yankee. Por isso, detestam a América de Biden, os democratas, tidos por cúmplices de uma Europa feita à medida dos interesses que desprezam. Se pudessem, davam cabo de Schengen, recuperavam o sentido nacional, último bastião do novo “no passarán”. Por essa razão, bateram palmas ao Brexit, vendo o afastamento do Reino Unido como uma oportunidade para diluir uma União Europeia que já não têm como projeto redentor.

É bem revelador do estado a que chegaram as coisas ouvir e ler esse discurso de sobrolho cerrado, adjetivando duramente os adversários, numa onda de desespero que, há que reconhecer, deixou de ter um porto político seguro de abrigo. Alguns andam pelas graves trincheiras das redes sociais, outros palestram declarações chocantes.

Uma coisa me parece evidente. Esses órfãos políticos são hoje os filhos ilegítimos de Trump. Pelo menos, até ver.”

sexta-feira, março 11, 2022

É de justiça…


… reconhecer que a cidade do Porto, cada vez mais, nos surpreende, em termos de bons restaurantes: o 1828, no fabuloso espaço WOW, em Gaia (não me peçam para explicar como lá se chega, mas o GPS ajuda), e o excelente Real by Casa da Calçada (no espaço do antigo Garça Real, na Praça D. João I) são dois dignos acréscimos à oferta restaurativa portuense.



11 de Março


Hoje é dia 11 de março. Nesta mesma data, em 1975 (caramba, já há 47 anos!), ocorreu uma tentativa frustrada de golpe de Estado, liderada pelo general Spínola. Nessa mesma noite, reuniu-se uma Assembleia do Movimento das Forças Armadas, com uma configuração um tanto atípica. A Revolução sofreu uma aceleração. Há tempos, o historiador António Louçã e a RTP ouviram-me sobre alguns acontecimentos dessa data, que, de certo modo, testemunhei por dentro. Pode ver aqui.

quinta-feira, março 10, 2022

Ex-excluídos

Vai ser muito interessante constatar que certos Estados, que estavam sob pressão devido ao seu comportamento desviante face às regras da comunidade internacional, pelo facto de estarem a ser conjunturalmente relevantes na crise ucraniana vão passar a ser olhados com outros olhos.

Vejam essa vesícula!

Há gente, aqui pelas redes sociais, que apenas publica textos ácidos, “naming names” sempre de forma acusatória, agressiva, revelando estar de mal com a vida. Podemos perceber que as coisas não lhes estejam a correr de feição, mas façam um esforço, caramba! E olhem pela vesícula!

A Oeste, nada de novo

A Ucrânia foi agredida pela Rússia por ter pensado que a sua vontade de vir a ter um destino (e uma segurança) ocidental seria apoiada, até ao fim, pelo ocidente. Já nas “primaveras árabes” essa mesma grande ilusão havia dado no que deu. Em ambos os casos, foi um equívoco trágico.

Conversas

Para além da questão da suspensão de hostilidades para corredores humanitários, não há uma verdadeira negociação entre a Ucrânia e a Rússia. Mantem-se um diktat russo, que apenas aguarda uma rendição ucraniana.

Exame prévio

É minha impressão ou aqui pelo Twitter começa a prosperar a ideia de que há certas opiniões que não têm direito a ser ouvidas? Vivi, em outros tempos, num país em que quem tinha ideias heterodoxas era, muito simplesmente, censurado. É isso que querem reeditar?

Artigo 5°

O Artigo 5° do tratado constitutivo da NATO é vulgarmente lido como implicando uma automática reação bélica conta o agressor de um deles. Não é bem assim. Ele obriga a “assistir” os países atacados, com ações “tidas por necessárias, incluindo o uso da força armada”.

Gastronomia

O que é a Academia Portuguesa de Gastronomia? É uma associação privada, com estatuto de "utilidade pública", composta por um núcle...