quinta-feira, dezembro 07, 2023

Um homem de coragem


Em bom rigor, foi numa noite, no início de 1969, na rua Barata Salgueiro, em Lisboa.

Semanas antes, Mário Soares tinha regressado a Portugal, por decisão de Caetano, que pôs fim à sua deportação em S. Tomé, por cerca de um ano, determinada por Salazar.

Soares quis testar, bem cedo, a genuinidade da "primavera marcelista", organizando, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, uma sessão "de esclarecimento", como então se dizia muito. Pelo boca-a-boca de certa Lisboa, o evento chegou-me aos ouvidos e fui lá, movido pela curiosidade de conhecer a figura de quem então bastante se falava.

À hora marcada, algumas dezenas de pessoas, tinham-se juntado à porta da Sociedade. Vi Soares chegar, com um pequeno grupo. Constatou que o edifício, ao contrário do previsto, estava fechado. Minutos depois, surgiu o capitão Maltez, da polícia "de choque". À frente de todos nós, entrou num diálogo seco com Mário Soares. Maltez ter-lhe-á dito que, "por ordem do senhor ministro", a sessão não poderia ter lugar. Recordo bem a interpelação jocosa de Soares: "Que ministro é que deu essa ordem? O da Agricultura?"

A tensão começou a subir e, como era de regra, ouviram-se palavras de ordem desagradáveis para o regime. Maltez mandou então avançar a polícia, que nos "varreu", rua abaixo. Um grande jarrão, à entrada de um vizinho restaurante chinês, atrás do qual me refugiei com uma amiga, ia sendo vítima colateral da subsequente fuga dos circunstantes.

Eu tinha acabado de conhecer Mário Soares e a sua coragem.
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Testemunho prestado ao "Diário de Notícias", num conjunto de 34 convidados, sob o lema comum "O dia em que conheci Mário Soares", da data dos 99 anos do seu nascimento. Não conhecia a fotografia inserida pelo jornal, que reproduzo, obtida em outubro de 2002, durante o lançamento de um livro meu, que Mário Soares prefaciou.

7 comentários:

Lúcio Ferro disse...

Vinha a descer a rua do colégio, cerca de 2010, vindo da Reitoria da UL e Soares estava a chegar a casa. Acompanhado apenas de outro homem, que presumo fosse segurança. Num impulso, estuguei o passo, acerquei-me e dirigi-lhe a palavra: Doutor Mário Soares, permite-me que lhe aperte a mão? Parou, mirou-me, e respondeu: Quem é você, donde vem e porque me quer apertar a mão? Meio desconcertado, repliquei: sou um cidadão comum, venho da Reitoria e quero apertar-lhe a mão, porque o senhor é uma das pessoas mais importantes do país! Sorriu e fez pouco caso: Não diga baboseiras, que você já é crescido. Estendeu-me mão, firme, apesar da idade. O que mais me impressionou não foi o aperto, foi a forma como os seus olhos me mediram de alto a baixo, estudando-me, lendo-me. Sorriu aprovadoramente, balbuciei um "obrigado" e seguimos os dois à nossa vida. Nunca esqueci, é um daqueles encontros que guardo com muito carinho.

manuel campos disse...


Li “Le Portugal Baillonné – Témoignage” na 1ª edição francesa da Calmann-Lévy, edição do 1º trimestre de 1972.

Meu Pai viajava bastante em serviço para Paris nesses tempos e trouxe-o acabadinho de ser posto à venda (aliàs a 25 de Abril de 1974 ele estava lá e conseguiu voltar no primeiro avião, pelo que se percebeu na altura houve pessoas que resolveram adiar o regresso a ver como paravam as modas, houve muitas vagas de última hora).

Li-o em cafés e esplanadas, ainda que devidamente protegido (ele e eu) com uma capa adequada, não fosse assim era capaz de não ter conseguido acabar de o ler tão depressa pois, para além de outros pormenores de sómenos vistos à distância de 51 anos mas que não o eram assim tão pouco na altura, eu era oficial miliciano nesses tempos.

Não sei qual dos meus irmãos terá ficado com este exemplar.
Eu tenho, como é evidente, a 1ª edição portuguesa de 1974.
De notar que, como o próprio Mário Soares diz no Prefácio da edição portuguesa, o livro editado em França dois anos antes é “uma versão encurtada” deste.

Flor disse...

Manuel Campos
O Sr. Embaixador publicou um post sobre este livro, quer ver? "segunda-feira, abril 24, 2017
"Portugal Amordaçado""

manuel campos disse...


Flor

Muito obrigado, fui agora ler, não me lembro de ter lido na altura, teria decerto fixado dado o tema.
O livro foi posto à venda em França nos primeiros dias de Abril de 1972 (penso mesmo que no primeiro dia).
Por cá terá sido quase de certeza o Sr. António Barata que o "distribuíu".


Anónimo disse...

A propósito, também eu conheci Mário Soares ao vivo numa "sessão de esclarecimento" da CEUD em 1969 para as eleições desse ano, no Teatro Vasco Santana na Feira Popular junto à Praça de Entrecampos.
Era habitual frequentador desse teatro dirigido por Luzia Martins e Helena Felix e, uma vez habituado ao local, decidi ir ao teatro para aquela peça inusual. Fui cedo e já estava cheio de gente; fiquei de pé encostado à parede de fundo, junto à porta de saída. Havia muito burburinho acerca de caras conhecidas da Pide no interior e polícia no exterior. Na mesa já estavam o Magalhães Godinho e o Sotto Mayor Cardia e o Soares nunca mais chegava.
Chegou, por fim, passada larga e mal humorado e começa o discurso descascando na situação política e no Marcelo Caetano e passados uns minutos surgem camiões carregados de legionários que, juntamente com a polícia presente, desatam à bordoada e levam tudo à frente que foge e se escapa como pode. Nesse comício o Cardia levou uma cacetada na vista, de que já padecia, e nunca mais recuperou até quase cegar.

PS: Durante anos frequentei este teatro na passagem de ano, que abria nesse dia, e juntava nessa noite cinco, seis pessoas; a peça terminava à meia noite e os atores todos do teatro brindavam ao Ano Novo connosco.

jose neves

afcm disse...

Um Homem de coragem e desassombro, sem dúvida. E com garra e rasgo e galhardia.

Mas também um Homem com sorte, muita sorte !( como diria o Woody Allen).

Faz falta - para agitar este marasmo de mediania que nos envolve e controla, qualquer que seja o espectro político.

(P.S. : nunca votei PS )

Nuno Figueiredo disse...

muito bom, esse restaurante. encontrei lá 1X o João Salgueiro, com a namorada.

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