Viviam-se os primeiros anos da década de 90. Estava colocado na nossa embaixada em Londres. Um dia, um jornalista do "Expresso" de quem me tinha tornado um bom amigo, Benjamim Formigo, perguntou-me se acaso eu não quereria escrever, para as páginas da secção internacional que dirigia, alguns artigos de opinião, sob pseudónimo.
A tentação era grande, mas tinha uma natural limitação: não podia escrever sobre política externa portuguesa. Essa era uma linha vermelha que, por razões deontológicas óbvias, não ultrapassaria.
O Benjamim e eu combinámos então a criação de dois pseudónimos temáticos.
Um seria dedicado à abordagem de temas europeus e questões internacionais em geral. O outro nome abordaria apenas temas africanos, que, à época, muito me interessavam e estavam na moda na nossa imprensa. E, claro, eu não seria remunerado por essas tarefas.
Para o primeiro tipo de comentários, criei o nome de "Mark Kraëlsky".
Soava bem! Como é que cheguei a esse nome? Semanas antes, eu tinha andado à procura de alguém que pintasse a sala do apartamento onde vivia, em Londres. Não podia gastar muito dinheiro, porque os salários de então dos diplomatas portugueses no Reino Unido andavam pelas ruas da amargura. Uma amiga, Valerie Dawson, uma atriz que hoje aparece com frequência nas nossas televisões, a quem eu tinha falado no assunto, disse-me que conhecia um trolha polaco que podia fazer esse trabalho por um preço razoável. Falei com o homem, acordámos o pagamento e, dias depois, as minhas paredes resplandeciam. O polaco chamava-se "Mark Kraëlsky" ou algo similar que passei a grafar dessa forma (confesso que nunca vi um nome polaco escrito assim...). Como então me disse que o seu último biscate tinha sido pintar o hall de entrada de um edifício da Universidade de Londres, decidi, ao adotar o seu sonoro nome, colocar-lhe um asterisco à frente e, no final dos textos, inseria "* Universidade de Londres". Havia tantas universidades em Londres... Nos tempos atuais, com o recurso ao Google, esta mentirola de Polichinelo só duraria umas horas!
O outro pseudónimo, utilizado para abordagem de temas africanos, era bem mais prosaico - "João Urbano".
Por essa altura, no "Semanário", um jornal que, sem sucesso, ao tempo procurava rivalizar com o "Expresso", e onde então preponderava a figura de Marcelo Rebelo de Sousa (que, no "Semanário", utilizava vários pseudónimos, alguns subscrevendo artigos que chegavam a contestar outros escritos pelo mesmo autor...), surgia um regular opinador sobre política africana que assinava como "Carlos da Mata". Julgo que se tratava de um pseudónimo (o meu amigo João Amaral ainda um dia vai satisfazer a minha minha curiosidade sobre quem é que afinal estava por detrás desse nome) que era usado por mais do que um escriba. E se ele era "da Mata" eu passei a ser "Urbano". E assim escrevi no "Expresso" uns tantos artigos como "João Urbano"...
Verdade seja que não era essa a primeira vez que assinava textos, sob pseudónimo, no "Expresso". Anos antes, creio que em 1988, num mano-a-mano com o meu colega António Dias, havia subscrito dois artigos sob o então assumido pseudónimo de "Luiz da Cunha", homónimo daquele que é historicamente considerado o "pai" da diplomacia portuguesa - a figura setecentista de D. Luiz da Cunha. Esse artigos, escritos num tom elegantemente respeitoso, embora um tanto gozão, eram atribuídos pelo jornal a um "coletivo de diplomatas portugueses" (a bem dizer, bastam duas pessoas para fazer um "coletivo"...) e prendiam-se com modestas reivindicações corporativas da nossa classe profissional, num tempo em que a nossa associação sindical primava pela modéstia e ineficácia na sua ação.
Esses dois textos, nos dias subsequentes à respetiva publicação, tiveram a virtualidade de abalar a placidez das conversas pelos claustros das Necessidades. O ministro era João de Deus Pinheiro. O seu chefe de gabinete, António Sequeira Nunes, foi ter comigo: "Cheira-me que tu deves saber quem são os tipos que assinam como "Luiz da Cunha"!" Ele pensava que eram muitos... Ri-me e comentei: "Pois sei, mas não será da minha boca que ouvirás os nomes deles. Mas faço-te uma proposta: se me disseres quem são os meus colegas que tu suspeitas que podem ser os "culpados", e se acaso tiveres a perspicácia de acertar em algum deles, eu prometo confirmar. É o máximo que posso fazer". E pelo chorrilho de diplomatas que o António então avançou, como "suspeitos" daquela moderadíssima ação reivindicativa - nomes nos quais, estranhamente, nem eu nem o António Dias figurávamos -, acabei por vir a saber quem estava no "index" de potenciais dissidentes por parte do gabinete do ministro...
Sob o nome de "Pedro Leite de Noronha" eu ainda viria a escrever uma célebre carta ao diretor que o "Expresso" publicou. Mas essa é uma historieta que conto nas páginas 306/307 do meu livro "Antes que me esqueça". Façam o favor de comprar o livro e lá poderão lê-la!
6 comentários:
Detalhe menor: a Universidade de Londres existe mesmo, na forma de uma federação de dezassete universidades londrinas, como UCL, Royal Holloway, LSE, SOAS e várias outras bem conhecidas. Na prática, tem razão: um autor daria normalmente como afiliação o nome da universidade membro e não o da federação em si.
"...alguns subscrevendo artigos que chegavam a contestar outros escritos pelo mesmo autor...)".
Não é possível, não pode ser.
É que não é de todo pessoa para isso.
Aliás não conheço ninguém - e se eu conheço gente! - que pudesse alguma vez sequer imaginado uma coisa dessas.
PS- Além do Benjamim, de que já falei aqui, também conheci o António Sequeira Nunes, de quem guardo a memória de uma excelente pessoa, apesar dos nossos contactos terem sido mais esporádicos.
Obrigado Francisco Seixas Santos pelos textos que escreveu em 2023, foram momentos inolvidáveis.
Bem Haja
Saudações Natalicias
A propósito da Universidade de Londres e da LSE, de que fala AV.
Ando a rever o “Yes, Minister” (21 episódios em 3 DVD – de 1980 a 1984) e já vou a meio da sequela “Yes, Prime Minister” (16 episódios em 4 DVD – de 1986 a 1988), dois episódios por dia depois de jantar com o whiskysito.
Assim como leio “Uma Campanha Alegre” de Eça de Queiroz de 10 em 10 anos para confirmar que 100, 110, 120, 130 anos depois estamos iguais como “gentes” - o que é bom numas coisas e é mau noutras – também revejo esta série com alguma periodicidade para confirmar que não há nada de novo no mundo da política.
Ora a LSE (London School of Economics and Political Science) aparece por lá muitas vezes nas conversas, pois cada vez que os de Oxford e Cambridge querem “menosprezar” alguém vão dizendo coisas do tipo “não admira, andou na LSE”, o que dá sempre cenas engraçadas porque o Primeiro-Ministro (Jim Hacker) diz com aquele ar inolvidável “Foi onde eu andei!”, para consternação (e arrependimento) geral.
Manuel Campos, bons hábitos: a série, a leitura, e o whyskisito.
‘Oxbridge’ tem snobismos, mas na verdade todas as avaliações de qualidade da investigação no Reino Unido ao longo dos anos têm demonstrado que a excelência é demonstrada em muitas e diversas instituições em todo o País.
AV
Só constatei as referências que na série são feitas aos que frequentaram LSE por parte das personagens fictícias de uma série de humor com quase 40 anos.
Se conhece a série, sabe que é uma crítica mais ou menos "feroz" aos hábitos e costumes próprios lá daqueles meios naquela época, incluindo o snobismo que não era um exclusivo da Universidade A ou B, mas de todo o tipo de instituições com mais nomeada.
E isto acontece por toda a parte, aqui também certos cursos tirados em Lisboa eram "diferentes" do mesmo curso tirado no Porto que, por sua vez, era "diferente" do tirado em Coimbra (ainda hoje isso acontece).
PS- Tenho outros excelentes hábitos: não vejo TV e deito-me às 3 da manhã.
Quando muito raramente algo me interessa, minha mulher grava e vejo nas "folgas" de outras actividades que me interessam mais.
A maior parte das pessoas nem imagina o tempo de vida adicional que estas práticas me trazem.
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